quarta-feira, 28 de março de 2012

A violência conjugal.

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Por acto conforme às leis da Natureza, nasceu Maria Amélia em data que não posso precisar. Teve cólicas, paixonetas, mas lá cumpriu o fim que a Providência lhe quis destinar: casar. Dois anos passados sobre a celebração matrimonial, nascia de Amélia o primeiro rebento do casal. Isto deveu-se, claro está, aos progressos da Medicina. Sendo o pai biológico seu marido legítimo, foi logo o casal  chamado ao posto da Guarda Nacional, e de imediato se lavrou auto da singular ocorrência. Não realizou a Guarda, porém, posterior averiguação, nem do insólito facto houve grande notícia na social comunicação. Com o decurso dos anos, mais quatro varões surgiram de Amélia e suas vísceras. Raparigas? Nenhuma para a certidão. Com tão banal existência, não mereceu Maria Amélia o interesse da Ciência. De resto, nem ela nem seu marido questionaram vez alguma a crença monoteísta, sobrevivendo à erosão dos dias na  mais harmónica das monotonias. Para piorar as coisas, não frequentaram  os seus filhos as drogas leves,  tertúlias da Literatura ou as partidárias juventudes. Apenas Jorge, o primogénito, acalentou, ainda muito moço, a vaga esperança de uma secretaria de Estado. Mas entretanto surgiram as maiorias absolutas dos Navajo. E, com elas, esfumou-se o que restava de Idealismo do lar de Maria Amélia e família. Em sincronia perfeita com o fim dos fundos comunitários, concluíram os rapazes os seus cursos, todos superiores. Outrora, nos bancos da universidade, Jorge e irmãos pensaram concorrer ao Erasmus, mas a família toda preferiu abrigar-se da chuva no alpendre do Sr. Cosme. Em rigor se reconheça que a vivenda cósmica não possuía alpendre de espécie alguma, sendo a citada estrutura, isso sim, um «avançado» de casa, de clandestino alumínio, idêntico a tantos milhares que abundam por essa província fora; e que, nas cidades, adquirem a forma de marquises. Enquanto aguardavam o passar da chuva, que era o tempo dela, Jorge, sempre Jorge, colocou a si mesmo uma inquietante dúvida. Que era: havendo tantos «avançados» em tão pequeno país, não admirava às consciências mais esclarecidas que o atraso nacional perdurasse há tantos séculos? Do marido de Amélia, que esta nunca soube se amava, atestou o pároco ao bispo que ele sempre a respeitou a ela, dentro e fora de portas (agora reforçadas devido a recente aumento de criminalidade). Uma vez, é certo, chegou atrasado ao jantar, que naquela morada  se processava infalivelmente às oito, no ponto do telejornal. Alegou o esposo retardatário ter ido à vila buscar uma bilha de gás Cidla para o primo do Canadá. Eis o único facto que intrigou Maria Amélia em mais de quarenta anos de comunhão de vida. Pôs-se então, qual sufragista, matutando no sentido da sua existência terrena, enquanto pendurava a roupa no stendhal de fora. Desta meditação, porém, não alcançou conclusão. Pelo menos, não concluiu Amélia de forma operativa. Em todo o caso, tirou-se de cuidados e foi ao centro de saúde, que ainda os havia na época. Por prescrição da médica de família, uma doutora de piercing, começou dar em força, à socapa das madrugadas, nas quadras e trava-línguas de Herberto Helder («Vírgulas na neve batendo nas rosas. / Ww, tt, aspas, parêntesis sensíveis.», de 1963, «A um grito em baixo corresponde logo / um grito em cima», de 1966, ou «Essas pinças na cabeça entre as meninges / extraindo», de 1981). Eis o único devaneio secreto a que se entregou Maria Amélia  em mais de quarenta anos de comunhão de vida.  Passados uns meses de terapia poética, o casal regressou ao normal: o sexo ocasional e a companhia de Panchito, um galgo de louça. Apesar de eslava, a doutora do piercing acertara em cheio: desde então, no mais íntimo de Amélia até  aquele casamento parecia preferível à poesia de Herberto.  Maria Amélia e marido mantiveram-se pois juntos, numa indolor habituação de décadas, até serem ambos vitimados por um trágico acidente da sinistralidade rodoviária. Ao funeral do casal compareceu a cunhada, azeda e zangada,  mas consta que até chorou. Entretanto, Jorge, sempre Jorge, abrira gabinete de advocacia em Braga. Filhos, teve dois, um casalinho. Ambos, sublinhe-se, viram a luz do dia no Noroeste do país,  onde tiveram muitas e novas oportunidades. Graças a elas, o rapaz lá vai na carreira de traficante-consumidor, e a Jéssica, dizem, alterna na raia. Tudo isto ocorreu estando Maria Amélia já falecida e, portanto, imune à pressão dos mercados financeiros.         
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António Araújo

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