O
livro do cardeal guineense Robert Sarah em defesa do celibato dos padres, com
um texto no mesmo sentido do Papa Emérito Bento XVI, ocupou uma boa parte da
comunicação social esta semana. Naquilo que ameaçou tornar-se a escrita em
directo do guião da sequela do filme de Fernando Meirelles, os possíveis
problemas que resultam da coexistência de dois ou mais papas tornaram-se pela
primeira vez evidentes desde a histórica renúncia de Bento XVI, em 2013.
Viram
a luz vários artigos interessantes sobre a matéria, alguns ainda a quente e sem
o conhecimento de factos que vieram entretanto a ser revelados. O Cardeal Sarah
não enganou o Papa Emérito mas terá havido, segundo o Prefeito da Casa
Pontifícia, um “mal-entendido” ou, evocando uma expressão em voga há uns anos,
um “erro de percepção mútuo”. Numa expressão generosa, um amigo meu considerou
que nesta questão terão sido todos “homens santos”.
Esta
imagem dos “homens santos” fez-me recordar uma série de anjos que vi no meu
recente regresso a Roma. Aparecendo com diferentes idades, sexos e
(des)composturas, o anjo é porventura a criatura mais omnipresente em toda a
cidade – em cada ponte, em cada fachada, em cada altar, em cada tecto, num
triunfo do barroco que tornou os anjos o adorno por excelência. Nem todos os
anjos têm, contudo, o ar dócil e inocente que identificamos com a santidade que
pretendem evocar e rodear. Algumas feições surpreendem não pelo enlevo mas
antes pela determinação, pela angústia ou por um certo ar de desafio.
O
celibato sacerdotal é um dos temas que move a opinião pública com indómito fervor,
normalmente em defesa da abolição do mesmo, como se fosse uma solução óbvia e
da maior simplicidade. É um pouco como se o celibato fosse uma ofensa que a
Igreja causa à sociedade e que deve, por isso, ser sacrificialmente oferecido
para reparação dos males do mundo.
É
uma decisão que cabe ao Papa ou até ao conjunto dos bispos, embora cada um seja
livre de ter a sua opinião – sobretudo se for fundamentada e esclarecida. Vejo,
da minha experiência paroquial e da minha experiência familiar, que
dificilmente um padre terá a mesma disponibilidade para a comunidade se tiver
família. Mas é uma discussão complexa, onde o aspecto prático da escassez de
padres poderá acabar por tornar inevitável uma determinada solução.
Como
bem referiram alguns artigos esta semana, o próprio Papa Bento XVI permitiu a
existência de sacerdotes casados, quando sejam ordenados na Igreja Anglicana
(que desde há 500 anos tem sacerdotes casados, nem por isso escapando aos
problemas dos abusos sexuais) e tenham já família constituída no momento em que
são acolhidos na Igreja de Roma.
Por
contraste, o Papa Francisco fez, já no seu Pontificado, uma defesa clara e
apaixonada do celibato, como nos recordou o departamento de imprensa do
Vaticano esta semana, na primeira reacção ao livro do Cardeal Sarah, então
ainda em co-autoria com o Papa Emérito:
“Vem-me à mente aquela frase de São
Paulo VI: ‘Prefiro dar a vida antes que mudar a lei do celibato’.”
O
mesmo comunicado do Vaticano antevê aquela que poderá ser a solução da questão
levantada no recente Sínodo da Amazónia, ao completar a citação do Papa:
“Pessoalmente, penso que o celibato é
uma dádiva para a Igreja. (...) Não estou de acordo com permitir o celibato
opcional. Haveria qualquer possibilidade apenas nos lugares mais remotos; penso
nas ilhas do Pacífico... [...] Haveria necessidade pastoral, e o pastor deve
pensar nos fiéis.”
Independentemente
da complexa questão de fundo – que pode mesmo não encaixar na mais clássica
divisão entre reformistas e conservadores, no sentido em que certamente haverá
muitos padres “reformistas” que defendem a manutenção do celibato – o que
certamente não ficará igual depois desta semana é a consciência de que da
renúncia de um Papa e da consequente convivência de vários Papas podem resultar
muitos problemas, como bem ilustra o magnífico artigo “Na solidão de si mesmo”
que o António Araújo serializou no Diário de Notícias.
O
anjo mais intrigante nesta pequena e modesta série de fotografias é o que
aparece coroado com a tiara papal. Está na fachada de São João de Latrão, a
basílica pontifícia por excelência, a catedral onde o Bispo de Roma tem a sua sede, a sua cadeira episcopal, e da qual
toma posse após a eleição na Sistina. O anjo evoca, pois, o Papa – pois só o
Papa usa a tiara. Mas sob os caracóis exuberantes, está um olhar que parece ser
de desafio, até de alguma insolência.
Não
é insolência que se espera de um Vigário de Cristo, embora se possa esperar
desafio. Clemente XII, o papa cujas armas o dito anjo coroa na fachada da
Basílica, resolveu problemas financeiros dos Estados Papais e excomungou o
cardeal corrupto que os causara. O seu antecessor, Bento XIII, é apresentado
como um asceta que apreciava a beleza das celebrações litúrgicas e com
dificuldade em governar a Igreja. Será que a história se repete?
Muitos
quiseram ler a assinatura do Papa Emérito no livro do Cardeal Sarah como um
desafio à autoridade plena do seu sucessor, a mesma autoridade que Bento XVI
prometeu respeitar no momento da sua renúncia, em 2013. Saber até que ponto o
Papa Emérito percebeu o impacto da sua posição e até que ponto ela influenciará
a decisão de Francisco sobre o celibato, são questões que teremos de aguardar
para esclarecer – na pior das
hipóteses, num novo filme de Meirelles.
Mas
nas expressões destes anjos romanos, de angústia, de desafio, de bonomia e de
mera contemplação podemos adivinhar certamente o que terá passado pelas faces de
protagonistas e espectadores deste episódio que ao longo desta última semana
entreteve jornalistas e vaticanistas, infiéis e fiéis, cardeais e papas.
Ademar
Vala Marques
(fotografias
de Novembro de 2019)
"SALTEM BARROSANI"
ResponderEliminarD. Frei Bartolomeu dos Mártires;
quem o quiser saber assim de
uma forma mais divertida, leia
o livro de Aquilino Ribeiro.
Não sendo certo que tenha
defendido a dispensa do
celibato para os pobres padres
do Barroso – “Saltem
barrosani” (ao menos para os
do Barroso). Isto, supostamnete, num dos concílios de trento.