Soutelinho da Raia
|
Recebi há dias, graças à amabilidade de uma boa amiga, uma notícia
extremamente auspiciosa e lisonjeira para um inveterado amante da Galiza e de
Portugal como eu: a descoberta, feita por duas pesquisadoras galegas,
professoras María Díaz Bernárdez e Paloma Gómez Varela, no Arquivo Histórico
Provincial de Lugo, oriundo do Colexio da Señora da Antiga Casa de Monforte de
Lemos, de vários fragmentos do Livro da Montaria do Rei de Portugal, Dom João
Primeiro, o de Boa Memória, fundador da Dinastia de Avis, fragmentos redigidos
na Corte Real, entre 1415 e 1433.
Se a saúde mo permitir, na minha próxima visita a Portugal, que espero
venha a acontecer num futuro não muito longínquo, tudo farei para regalar os
meus olhos famintos de novidades exóticas na contemplação desses fragmentos
(confesso que uma das coisas que mais prazer me dá na vida é passar horas
esquecidas a saborear o encanto de um manuscrito medieval, decorado com
iluminuras. E então se esse texto é da autoria de um escritor português, e para
mais de sangue real, e ainda por cima do rei fundador da dinastia mais gloriosa
de Portugal, o prazer aumenta de intensidade).
Para que se compreenda a principal razão de ser do meu entranhado amor pela
Galiza, explico que a aldeia em que nasci e em que passei a minha meninice e
parte da adolescência é Soutelinho da Raia, um dos três chamados “Povos
Promíscuos” da longa fronteira entre Portugal e a Espanha, assim denominados
por estarem sitos em território português e espanhol, desde a Idade Média, pelo
que tiveram de ser objecto de um tratado entre Portugal e Espanha, celebrado em
1864, como já foi referido noutro texto. Nos termos desse tratado, todas as
casas de Soutelinho da Raia passaram a constituir parte de Portugal, não
podendo construir-se nenhuma casa a menos de cinquenta metros da raia, com
excepção do quartel da Guarda Fiscal, construído junto à linha da fronteira, a
qual, por sinal, dada a ausência de rios ou riachos, era puramente
convencional, demarcada por um marco de granito, enterrado no solo, o qual tinha
de um lado esculpido um P (para Portugal) e do outro um E (para Espanha), como
também já foi referido noutro texto.
Em virtude do meu estatuto de raiano puro e do meu convívio de toda a hora
com os galegos, a começar pelo pároco, o Padre José (j pronunciado por nós
guturalmente, à castelhana, e não à portuguesa nem à galega (x), não sei bem
por quê, fui objecto de troça, durante os primeiros dias, quando, menino e
moço, dei entrada no seminário. É que em Soutelinho da Raia, à excepção da Dona
Marquinhas, a professora, com formação de Escola Normal, e de uma ou outra
pessoa que, por uma razão ou por outra, como os meus pais, tinha podido fazer
umas andanças prolongadas fora da santa terrinha, ninguém oralmente fazia
qualquer distinção entre o b e o v. Para efeitos de pronúncia só existia o b.
Neste contexto, jamais esquecerei o que uma vez pude testemunhar, quando
minha mãe me autorizou a passar um dia na escola primária – e única - de Don
Pepe -, professor da aldeia galega mais próxima da minha (a um quilómetro e
meio de distância, aproximadamente), chamada Videferre. Quando chegou a hora de
fazer ditado, sempre que a palavra lida por Don Pepe se escrevia com b ou com
v, lá vinha sempre um aluno mais atrevido e brincalhão a dirigir-se a Don Pepe
nestes termos: - “Maestro, esta palabra se escribe con b de buey o con b de
vaca.” Ao que Don Pepe respondia sempre, bem-humorado, invariavelmente: -
“Cuando te devuelva el dictado corregido, ya lo verás.” (Para os que porventura
não saibam, informa-se que, no tempo da ditadura de Franco, a língua oficial de
todas as Espanhas e, portanto, a única língua ensinada nas escolas, era o
Castelhano.)
Acabadas de escrever estas palavras, veio-me à mente o que uma vez me
aconteceu, durante o meu ano de noviciado na Congregação Salesiana, onde por
vários anos fui aspirante, noviço, professo, clérigo, filósofo, teólogo e
professor, de votos temporários, durante seis anos, primeiro, e perpétuos,
depois. “Veio-me à mente” e perguntei-me logo como poderia encaixar o que me
veio à mente nesta entrada do meu Diário, datada do dia 5 de Março do Ano do
Senhor de 2014, sem ferir aquele mínimo de lógica interna que qualquer texto
deverá ter. E a resposta não se fez esperar, o que não é muito de espantar para
quem sempre teve um pequeno fraco pelo sofisma. Poderia, como tantas vezes
tenho feito, começar mais ou menos assim: “Neste contexto...”. Mas já recorri
tantas vezes a este chavão, inclusivamente uma vez nesta prosa, que achei que
devia procurar lançar mão de outro estratagema. E concluí que a coisa afinal
nada tem de complicado, se me lembrar de definir o género literário Diário à
minha maneira: uma espécie de manta de retalhos, onde cabem todas as espécies
de panos e trapos, como aquelas que vi fazer à minha avó materna, a última tecedeira
da minha terra, ou então, recorrendo a uma imagem culinária, uma espécie de
caldo de pedra onde se podem misturar os mais variados produtos alimentícios e
condimentos, em que minha avó materna era também perita.
Aí vai o que me veio à mente, como disse na primeira linha do parágrafo
precedente. E noto agora, com certo agrado, que afinal o que vou narrar não vem
lá muito puxado pelos cabelos, visto à luz do meu confessado amor pela Galiza,
desde que me conheço, amor enunciado no início da entrada deste dia. O facto aí
vai. Um dia, certamente um domingo, deu-nos na cabeça a um grupo de noviços,
mais inclinados para as belas letras, organizar um recital informal de poesia.
Se bem me lembro, uns optaram por Camões, outros por Diogo Bernardes, outros
por João de Deus e por Antero de Quental, e houve quem optou por Bocage. Mas,
naturalmente, por um Bocage penitente, bem-comportado, edificante, pois em
autocensura todos nós éramos, não noviços, mas peritos exímios. Eu, saudoso da
minha longínqua Galiza, optei por Rosalía de Castro, escolhendo três dos seus
poemas de um livro que o dito Maestro Don Pepe de Videferre me tinha dado e que
eu guardava com grande estima e folheava, clandestinamente, com certa
frequência. Santo Deus! O que eu tive de ouvir da boca má e feia e ferozmente
irada do meu Mestre de Noviços, um castelhano da execranda escola de
Torquemada. Que Rosalía de Castro não era poeta espanhola. Que a língua em que
escrevera era uma língua morta. Que se a minha intenção era homenageá-lo a ele,
meu Mestre, que o fizesse recitando poesias em castelhano bem castiço, como,
por exemplo, as de San Juan de la Cruz ou de Fray Luis de León. Que lhe
passasse imediatamente para as mãos – eu diria manoplas – de asceta intolerante
a minha antologia das assim chamadas poesias de Rosalía de Castro e que nunca
mais me atrevesse a proferir na sua presença um verso dela ou de qualquer outro
poeta de língua galega. E quando eu ingenuamente imaginava que as cortinas
estavam corridas e que o nefando drama havia terminado, eis que o meu
zelosíssimo Mestre de Noviços, Padre Alfonso Nácher, se volta para mim, com os
olhos ainda em fogo, e me pergunta se eu não tenho por acaso mais livros em
galego. Que não: que não tinha. Mas que, por acaso, tinha o Don Quijote, em
castelhano, com que o generoso Maestro Don Pepe também me havia presenteado. O
quê? Que lho passasse imediatamente para as mãos, pois o Don Quijote não era
livro apropriado para um noviço da Congregação Salesiana. E eu, que
candidamente imaginava que ia receber um louvor por continuar a aperfeiçoar a
língua que eu estudava, por mim, desde a minha infância, não tive outro remédio
senão prometer-lhe que assim o faria, ao mesmo tempo que, mentalmente,
impetrava aos sagrados e venerandos manes de Cervantes que dessem mau dormir e
atormentassem noite e dia esse abominável obscurantista, ele que, dotado de uma
inteligência acima do vulgar, estava quase a concluir o curso de engenharia,
quando optou por entrar numa ordem religiosa. E depois de me fulminar com os
seus olhos de velho inquisidor, o meu Padre Mestre virou-me malcriadamente as
costas, sem dúvida para ver se eu tinha estômago para superar mais uma prova a
que ele tão feroz e impiedosamente sabia submeter os noviços.
Falei acima da Dona Marquinhas e parece-me ser este o momento de a
apresentar ao hipotético leitor destas reminiscências da minha meninice e da
minha adolescência. Morava numa casa grande, quase senhorial, toda construída
de granito muito bem trabalhado, cuja entrada principal estava separada da
entrada da nossa casa por um velho chafariz público. Vivia com uma irmã, a Dona
Aninhas, separada há vários anos do marido espanhol e mãe de dois filhos – o
Rubens, robusto, fragueiro e boémio, e o Fernandinho, anémico, caseiro e
mimado.
A Dona Marquinhas era solteirona. Quando, pelos seis anos, entrei pela
primeira vez para a escola, já ela devia andar pelos seus sessenta anos. Mais
baixa que alta, a atirar um pouco para o roliço, com o cabelo todo branco,
penteado em toitiço, de rosto muito branco e austero, era a imagem de uma velha
rainha sem trono. Nunca a vi senão vestida de preto, o que aliás se aplicava
também à irmã, que era mais alta e esbelta que ela.
Como disse anteriormente, a Dona Marquinhas era professora de escola
normal, de uma cultura fora do vulgar, e quem a visse não podia imaginá-la a
desempenhar outra profissão na vida que não fosse a do magistério. Como a
aldeia, por aquele tempo, só tinha à volta de umas quatrocentas e cinquenta
almas, era ela a única professora, responsável pelas quatro classes, em que
consistia a escola primária daquela época. Em casos excepcionais, raríssimos,
como os de doença, a Dona Marquinhas era substituída pela irmã, a Dona Aninhas,
com o estatuto de professora regente, a qual, para azar dos alunos, era má como
as cobras, alérgica ao sorriso e a um simples gesto de amabilidade, e recorria
à palmatória com uma prodigalidade de nos fazer arrepiar de medo, só de vê-la
entrar na sala de aula.
O edifício em que se encontrava a escola consistia em rés-do-chão, primeiro
andar e um velho sótão. No rés-do-chão funcionava uma loja de bugigangas, onde
se vendia um pouco de tudo, desde tecidos a agulhas, a dedais, a tesouras, a
louças, a toda a espécie de apetrechos de casa. Essa loja era explorada pelo
cunhado da Dona Marquinhas e primo direito de minha mãe, o Tio Domingos Pires
(Tapado de alcunha, e, portanto, conhecido por Domingos Tapado), que aliás era
o dono de todo o edifício. A escola funcionava no primeiro andar, o qual tinha
duas grandes salas. Todos os alunos ocupavam a mesma sala (servindo a outra
para objectos de arrecadação, tais como velhos mapas, mesas e bancos
quebrados). Nas primeiras carteiras, a contar da secretária a que se sentava a
professora, sentavam-se os alunos da quarta classe; vinham a seguir os da
terceira classe; depois os da segunda; e por último os da primeira.
Para concluir este breve excurso memorialista, quase sem nexo,
acrescentarei apenas que, segundo voz corrente, no Concelho de Chaves, a que
pertencia a freguesia de Soutelinho da Raia, não havia melhor escola primária.
Competentíssima e briosa, a Dona Marquinhas tinha a fama e o proveito de ver,
ano após ano, aprovados, muitos com louvor e distinção, todos os alunos da
terceira e quarta classes que levava a exame, realizado oficialmente, com pompa
e circunstância, em Chaves, sob a direcção de engravatados e empertigados
inspectores escolares.
António Cirurgião
Dá gosto lê-lo. Obrigado.
ResponderEliminarPrezado Sr. Dr. José Meireles Graça,
EliminarBem haja pelas generosas palavras.
Cordiais saudações.
AC