quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

André Ventura semiotizado.






A fotografia de André Ventura numa igreja, em atitude de oração, é do fotógrafo Bruno Gonçalves, do Sol. São conhecidas as circunstâncias em que o repórter a captou, mas interessa-me primordialmente a própria fotografia (Figura 1). As circunstâncias, ou contexto, são relevantes para a conotação que aqui faço, que é validada pelo facto de André Ventura, presidente do partido Chega, ter reproduzido a notícia do Sol, encimada por esta imagem, no seu mural no Facebook. A análise não põe em causa o carácter jornalístico da fotografia. 


Figura 1

Na imagem, vemos o interior de uma igreja. Ao centro, André Ventura está ajoelhado. Foi captado em plano médio, do tronco para cima, o que permite em simultâneo uma intimidade do observador com o observado e a distância necessária para significar a oração em retiro. Veste fato escuro, com camisa branca e gravata vermelha, que assinala por uso habitual a sua filiação futebolística pelo Sport Lisboa e Benfica. Ventura está de perfil; pela disposição dos bancos, o observador compreende que olha na direcção do altar. Do punho direito esquerdo destaca-se o brilho de um botão de punho. Uma das mãos está pousada no banco de madeira, a outra está junto da boca. Não há mais ninguém visível. Depreende-se que não decorria uma celebração. Ao fundo, na parede de mármore, iluminada, destaca-se uma imagem de Santo António. De ambos os lados do santo, dois medalhões de mármore representam passos da Paixão de Cristo: do lado direito o momento em que Cristo é atraiçoado, do lado esquerdo, a crucificação. Ao nível do busto de Ventura encontra-se ao fundo a figura de outro santo, que adiante identifico. O gesto da mão de Ventura parece indicar o momento em que terminou o sinal da cruz. Ventura beija o dedo, um ritual que representa o cumprimento a Jesus Cristo. Não faz parte do sinal da cruz, caiu em desuso, mas é ainda comum entre as classes populares do Interior e também entre sectores católicos tradicionalistas. A fotografia foi tirada do corredor central da igreja. Ao lado de Ventura, o fotógrafo baixou-se para não o captar de cima para baixo, dado estar ajoelhado. Se o não tivesse feito, a fotografia perdia o normativo jornalístico e estético pretendido, que por norma capta o ser humano ao nível dos olhos. Contudo, o fotógrafo colocou a câmara abaixo da linha horizontal da cabeça de Ventura, obtendo deste modo um quase imperceptível contrapicado, em que o observador o vê ligeiramente de baixo para cima. É possível que, de novo, o objectivo do fotógrafo fosse o sentido estético, dado que pôde, assim, incluir na íntegra a imagem de Santo António, o que não teria conseguido se a câmara estivesse numa posição horizontal em relação a Ventura. Para obter o plano médio de Ventura incluindo a totalidade da imagem de Santo António, precisava do ligeiro contrapicado, o que acaba por transmitir uma posição de superioridade do observado face ao observador. Na composição, o perfil da face de Ventura ocupa o centro. Os dedos da mão e a cabeça de Ventura situam-se ligeiramente a cima do eixo vertical, como mandam as regras. Deste modo, traçando as diagonais do rectângulo, o que domina o triângulo superior é a cabeça de Ventura e a figura de Santo António (Figuras 2 e 3). 



Figuras 2 e 3


Ventura está virado para o lado esquerdo, que, na leitura de textos visuais ou verbais, corresponde ao início. A imagem transmite, pois, uma orientação de Leste para Oeste, contrária à realidade, por estar esta igreja urbana orientada sensivelmente Norte-Sul, o que o observador comum desconhece. Na fotografia, a luz vem de Oriente, a inspiração divina vem de Oriente. Esta representação é comum na arte religiosa ocidental e já foi aproveitada na fotografia de propaganda, como na imagem de John F. Kennedy igualmente rezando, sentado ou de joelhos, de perfil, com o olhar em direcção a Oriente, de onde vem a luz que ilumina o político norte-americano, o primeiro católico eleito para a Presidência dos EUA (Figura 4; fotografia de Yousuf Karsh, 1960). 


Figura 4

O perfil pode ter diversos significados. No caso em análise, como na fotografia de Kennedy, representa um desligamento entre o sujeito representado e o observador. O olhar de Ventura para o altar fá-lo parecer desinteressado do observador (e do fotógrafo). O vector do olhar, o mais importante na imagem, acentua a espiritualidade do que é mostrado, neste caso a fé católica de Ventura, que ele tem repetido na sua propaganda política. O olhar em frente também transmite confiança e igualdade na relação com Deus, enquanto o olhar para baixo significaria uma relação desigual, com o político numa posição inferior. É o que sucede noutra imagem captada pelo repórter no mesmo instante e que ele divulgou, a preto e branco, no seu mural no Facebook, em 25 de Outubro de 2019, no dia anterior à publicação da reportagem no Sol (Figura 5). 

Figura 5

O segundo vector mais importante é o da mão esquerda na boca, que remete para o seu silêncio e, por extensão, para a oração mental, confirmando, com o perfil, que a relação mostrada — a que Ventura pretendeu criar — é entre ele e o divino. Apesar da distância e dessa relação de Ventura com o que lhe está à frente, na imagem cria-se outra relação, entre ele e Santo António, pela composição, já atrás referida, e cuja envolvência se completa pelo fechamento referencial de ambos na mesma área da imagem, pelo braço do santo num movimento que abraça o que está — na imagem — à direita do observador, movimento que termina com o candeeiro atrás de Ventura. O centro da imagem, resultando da composição e do enquadramento, forma um triângulo: Santo António, o santo do lado esquerdo e Ventura (Figura 6). Este está no lugar que o observador imagina de outra figura católica na organização estética deste altar. Quem são os dois santos que, na predela, acompanham este altar lateral? Do lado esquerdo da imagem é S. Nuno de Santa Maria, ou seja, Nuno Álvares Pereira elevado a santo. Traz a capa de carmelita, um livro e a espada. Tapado por Ventura, está S. João de Deus, santo português nascido em Montemor-o-Novo em 1495, protector dos pobres, padroeiro dos doentes, dos hospitais e dos enfermeiros. Ao substituir na imagem S. João de Deus na triangulação do altar dos santos portugueses, Ventura fica no seu lugar, criando visualmente uma nova trindade, confirmada pela composição da imagem: Santo António, São Nuno e Ventura — uma trindade portuguesa, por acréscimo abençoada e iluminada.  O lugar que Ventura ocupa na igreja (de S. Nicolau, em Lisboa) aparenta ter sido escolhida com precisão, para permitir o enquadramento que vemos na foto. Dificilmente terá sido coincidência, pois Ventura conhece bem esta igreja, dos seus tempos de estudante, tendo vivido numa residência anexa e servido como acólito mas, mesmo que o fosse, é irrelevante, pois o que conta é o que o observador vê: Ventura em triângulo religioso com santos portugueses: um deles pregador e popular, o primeiro santo nascido em Portugal; outro militar, salvador da independência em Aljubarrota; outro (escondido) protector dos pobres e dos serviços de saúde. Em consequência, a fotografia pode funcionar como propaganda de Ventura, mesmo não tendo sido essa a intenção do fotógrafo. A intenção é aqui irrelevante; o que conta é o que se vê e como se é levado a ver, pela composição dos referentes no rectângulo da imagem. Essa função de propaganda existiu no momento da captação, em 25 de Outubro de 2019, no primeiro dia de Ventura como deputado, quando convidou media para o acompanharem de manhã, incluindo à Igreja de S. Nicolau, função que ficou selada quando Ventura usou o link do artigo do Sol de 22 de Fevereiro de 2020 no seu mural no Facebook, no dia seguinte. De representação do seu catolicismo, a fotografia passou, no mural, a representação de um catolicismo superior ao da própria Igreja Católica, e a contra-corrente, como ele se apresenta também na política. Comentando a notícia, intitulada «D. Manuel Clemente cancela audiência a André Ventura», escreveu no Facebook: «Custa ver que o sistema está corrompido e a usar todas as armas baixas contra o CHEGA. Mas a mim, pessoalmente, custa-me ainda mais ver a Igreja, que também é a minha Igreja, deixar-se condicionar e intimidar pelo poder instalado. Não foi isso que Cristo nos ensinou. Mas eu sei que a voz do Povo é a voz de Deus, e essa voz está cada vez mais perto de mim.» Quer dizer, não só a Igreja, representada pelo cardeal-patriarca, está intimidada pelo poder instalado, como o alegado cancelamento da audiência (poderá ter sido adiamento) é considerado por Ventura um ensinamento contrário a Cristo; mais ainda, a voz do Povo, com maiúscula, está em crescendo próxima de Ventura e, por antítese, mais longe da Igreja, ou esta mais longe dela. Apesar de o Patriarcado negar qualquer relação do adiamento ou cancelamento com declarações de Ventura sobre o caso Marega, Ventura preferiu reagir de imediato e considerar o cancelamento ou adiamento da audiência com D. Manuel Clemente «um dos episódios mais tristes» da sua vida política. Deste modo, a fotografia serve este discurso, pois mostra Ventura em contacto directo com Cristo, que está em todos os altares, e sem a mediação da Igreja, de que não se vê nenhum ministro na imagem. Santo António, doutor da Igreja, português de Lisboa, e com uma popularidade extraordinária, que atravessa quase oito séculos de História, santo milagreiro, também ele falava sem ser ouvido por quem devia. Essa atitude, que o Padre António Vieira utilizou para o seu sermão de Santo António aos Peixes — aos peixes, «já que os homens se não aproveitam» —, é indirectamente retomada por Ventura: se a hierarquia da Igreja não o ouve, falará aos peixes, isto é ao Povo com maiúscula. O político apresenta-se, assim, como vítima, igualmente da Igreja que «é também a minha». Sente-se atraiçoado pelos seus e crucificado, como Cristo no dois medalhões na Igreja de S. Nicolau visíveis na fotografia. O gesto mediático de visitar a Igreja de S. Nicolau, a posição cirúrgica ao lado do altar dos santos portugueses e o aproveitamento posterior da fotografia de um repórter fotográfico revelam alguém com uma capacidade invulgar de utilizar a imagem, com objectivos simbólicos. A fotografia, captada num momento organizado para os media, fica a significar a sua mediatização como político de fé, perseguido e injustiçado como Cristo, líder contra-corrente, capaz de falar directamente com ele e com o povo, sem aparente intermediação, e identificado com santos portugueses. A fotografia, pelo poderoso significado iconográfico que permite, diz mais do que o que pode ser dito, diz mais ainda do que o próprio Ventura diz, e ele diz muito pelo discurso verbal. Julgo que voltaremos a vê-la. 


Eduardo Cintra Torres









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