VPV
foi a enterrar e toda a gente disse que ele era um génio. O que talvez não
tenha sido dito é que, se tivesse sido outro a morrer, VPV não teria a
grandeza de carácter de ter dito o bem que disseram dele. E isso
deve ser dito.
Quando vi a página em branco no Público de sábado, também dei por mim a pensar o que diria nesse espaço. Acho que é divertido imaginar Vasco Pulido Valente a comentar as reacções à morte de Vasco Pulido Valente:
«Sem entusiasmo, lembro a evidência: as prosas que aí pululam não têm um módico de originalidade, nem de interesse. Como se previa, desde sexta-feira, não houve criatura que não se desentranhasse em panegíricos ao Dr. Pulido Valente. A muito custo li, por perversidade íntima, tudo o que se publicou nos jornais, louvando o defunto e garantindo que era puro como a neve e inocente como a Virgem. Infelizmente, a ninguém ocorreu a futilidade da coisa.
Estes putativos “obituários” (se merecem o nome) não passam de delíquios pueris que a populaça, hoje como ontem, sempre aplaudiu com o pasmo dos simples. No séc. XIX, que o analfabetismo pátrio desconhece por grosso, já era comum as personagens menores escreverem sobre a morte das “figuras gradas” do regime. A I República, com típica irresponsabilidade, cultivou expeditamente o género, para agradar ao republicano médio nas querelas com os caciques de província. E o “Estado Novo” prolongou docemente o desastre, por obra e graça de um punhado de nulidades, a que hoje (muito justamente) ninguém liga. Em Oxford, cheguei a discutir o assunto com Raymond Carr, a quem recomendei pressurosamente que lesse antes o 'Adeus, princesa'. Nem isso o salvou da desgraça.
Veio o “25 de Abril” e, no meio das trapalhadas da “revolução” e do PREC, esta veneranda tradição entrou em declínio. Os “controleiros” do PC não podiam consentir que a exaltação de indivíduos concretos obscurecesse as heróicas conquistas do “povo”. Fatalmente, a saloiice indígena viria a recuperá-la. Como se esperava, o advento do Dr. Cavaco faria ressurgir o género, a par da ladainha do “bom aluno” com que o nefasto camponês de Boliqueime, coitado, pretendia pastorear a pátria e impressionar a “Europa”. Chateaubriand dizia que, mais triste do que envelhecer, é envelhecer num mundo que não se reconhece e de que não se gosta. Tragicamente, em nenhuma destas cabeças penetrou a mais remota sombra de hesitação ou dúvida. O resultado, como de costume, não se recomenda. Não fui feito para isto.»
A grandeza de carácter seria relevantíssima se estivéssemos a falar da madre Teresa de Calcutá. Não estamos. As pessoas falaram do historiador, que foi pioneiro, do colunista, que foi incansável, e do prosador, que foi inexcedível entre os contemporâneos. E não falaram de trincas e mincas lisboetas. Fizeram bem.
VPV não teria a grandeza de carácter de ter dito o bem que disseram dele ??
Acho que teve. Raramente escreveu sobre si, excepto quando fez 50 anos e achou por bem falar de doenças. Escreveu muito sobre os Outros e respectivo carácter ou gana.
E por que VPV sempre evitou a conversa das «dinâmicas dos processos», quase sempre fisgou personagens com história sem nunca esquecer de lhes procurar o carácter e o drama das escolhas(ou não escolhas) que fizeram história.
Naturalmente, falava bem e falava mal dos tais outros; o mais das vezes mal. Por acaso a maioria dos escrevedores públicos falou mal de VPV no seu momento RIP (tal como o malomil aqui o fez). Por acaso.
Ah, o dizer bem, o dizer mal... Que tem o ser ou nao ser genio que ver com a grandeza de caracter? Esta posta aqui no Malomil parece-me especialmente tinhosa.
Quando vi a página em branco no Público de sábado, também dei por mim a pensar o que diria nesse espaço. Acho que é divertido imaginar Vasco Pulido Valente a comentar as reacções à morte de Vasco Pulido Valente:
ResponderEliminar«Sem entusiasmo, lembro a evidência: as prosas que aí pululam não têm um módico de originalidade, nem de interesse. Como se previa, desde sexta-feira, não houve criatura que não se desentranhasse em panegíricos ao Dr. Pulido Valente. A muito custo li, por perversidade íntima, tudo o que se publicou nos jornais, louvando o defunto e garantindo que era puro como a neve e inocente como a Virgem. Infelizmente, a ninguém ocorreu a futilidade da coisa.
Estes putativos “obituários” (se merecem o nome) não passam de delíquios pueris que a populaça, hoje como ontem, sempre aplaudiu com o pasmo dos simples. No séc. XIX, que o analfabetismo pátrio desconhece por grosso, já era comum as personagens menores escreverem sobre a morte das “figuras gradas” do regime. A I República, com típica irresponsabilidade, cultivou expeditamente o género, para agradar ao republicano médio nas querelas com os caciques de província. E o “Estado Novo” prolongou docemente o desastre, por obra e graça de um punhado de nulidades, a que hoje (muito justamente) ninguém liga. Em Oxford, cheguei a discutir o assunto com Raymond Carr, a quem recomendei pressurosamente que lesse antes o 'Adeus, princesa'. Nem isso o salvou da desgraça.
Veio o “25 de Abril” e, no meio das trapalhadas da “revolução” e do PREC, esta veneranda tradição entrou em declínio. Os “controleiros” do PC não podiam consentir que a exaltação de indivíduos concretos obscurecesse as heróicas conquistas do “povo”. Fatalmente, a saloiice indígena viria a recuperá-la. Como se esperava, o advento do Dr. Cavaco faria ressurgir o género, a par da ladainha do “bom aluno” com que o nefasto camponês de Boliqueime, coitado, pretendia pastorear a pátria e impressionar a “Europa”. Chateaubriand dizia que, mais triste do que envelhecer, é envelhecer num mundo que não se reconhece e de que não se gosta. Tragicamente, em nenhuma destas cabeças penetrou a mais remota sombra de hesitação ou dúvida. O resultado, como de costume, não se recomenda. Não fui feito para isto.»
Muito bom e amplamente merecido.
ResponderEliminarBoas
(Re) Ver o que VPV escreveu aquando dos desaparecimentos de Manuel de Lucena e de João Bénard da Costa, por gentileza...
ResponderEliminar(Re) Ver o que VPV escreveu aquando dos desaparecimentos de Manuel de Lucena e de João Bénard da Costa, por gentileza...
ResponderEliminarA grandeza de carácter seria relevantíssima se estivéssemos a falar da madre Teresa de Calcutá. Não estamos. As pessoas falaram do historiador, que foi pioneiro, do colunista, que foi incansável, e do prosador, que foi inexcedível entre os contemporâneos. E não falaram de trincas e mincas lisboetas. Fizeram bem.
ResponderEliminarVPV não teria a grandeza de carácter de ter dito o bem que disseram dele ??
ResponderEliminarAcho que teve. Raramente escreveu sobre si, excepto quando fez 50 anos e achou por bem falar de doenças. Escreveu muito sobre os Outros e respectivo carácter ou gana.
E por que VPV sempre evitou a conversa das «dinâmicas dos processos», quase sempre fisgou personagens com história sem nunca esquecer de lhes procurar o carácter e o drama das escolhas(ou não escolhas) que fizeram história.
Naturalmente, falava bem e falava mal dos tais outros; o mais das vezes mal. Por acaso a maioria dos escrevedores públicos falou mal de VPV no seu momento RIP (tal como o malomil aqui o fez). Por acaso.
Ah, o dizer bem, o dizer mal... Que tem o ser ou nao ser genio que ver com a grandeza de caracter? Esta posta aqui no Malomil parece-me especialmente tinhosa.
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