Lisboa,
2 de agosto de 1944
Almoço e jantar com Ribeiro Couto. Tudo bem. E
no fim uma sensação de extremo cansaço e aborrecimento, de fim, de fim, de fim.
Disse que era difícil me desenhar, tinha alguma coisa que não se pegava e a
doçura. Que eu tinha três coisas: ____________: infância, vida profunda e
alguma coisa áspera. Disse: animalidade banhada de luar. Queixo saudável. Deus
meu me perdoai, me dai real paz.
(Clarice. Desenho de Ribeiro Couto, 2-8-44)
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Não sei, talvez só em choque com os
outros se tenha amor por si mesma.
Lisboa, 3 de agosto de 1944
Ontem – lanche com [Moscoso?], almoço
e jantar com Ribeiro Couto, numa quinta e a beira do mar. Depois fomos a um
lugar de ouvir fado, depois fomos à feira, bar Sevilha. Voltei 2 da madrugada e
dormi até 1 de hoje. Hoje jantei com R.C. e Maria Archer.
(Este
não é sopa)
Esparadrapo
Naftalina
Um ou dois vestidos
Naftalina
Um ou dois vestidos
Sola
de sapato
Sapato
preto
Expressões
italianas
Fazer
as unhas antes de ir
A
única coisa firme e boa na vida é estar mais ou menos contra todo o mundo e só
ser de e com algumas. O que não exclui amizades, humanidade, piedade etc.
João
Gaspar Simões
Rua
da Artilharia, 44 – 4º andar
Não, não, eu não perdi
minha vida, mas falei demais
Lisboa,
4 de agosto de 1944, sexta-feira
Acordei quase dez horas. Ontem jantei em Cacilhas com Ribeiro Couto e Maria Archer. Fiz compras de manhã, fui à casa de Ribeiro Couto, almocei com ele, li capítulo dos bonecos de barro. Só de tarde ele disse quanto gostou. Disse que a mim não adianta dar conselhos, que sem ter experiência eu sei de tudo. Coisas agradáveis e bem observadas, já ouvidas ou sentidas. Depois do almoço ele me mudou. Hotel mais barato é melhor. “Sem aqueles homens do Hotel Astoria, no hall, admirando você embasbacados”. Mudei-me para o parque Palacio. Li todo o romance de Maria Archer. Saudade de M. Fui jantar em Bucelas – paisagem nítida e cor-de-rosa ovelhas – olivais – Tejo –
negros
dormindo na rua. Negrinhos com ar carioca metidos em togas, em passo ligeiro de
malandro. Carnaval, Hollywood, os livros exóticos estragaram um pouco essa
primeira impressão que poderia ser extraordinária.
Uma das melhores coisas interiores é sentir que hoje ainda não é amanhã, que amanhã fatalmente virá, mas que hoje é inteiramente hoje.
Uma das melhores coisas interiores é sentir que hoje ainda não é amanhã, que amanhã fatalmente virá, mas que hoje é inteiramente hoje.
Vilas econômicas – Citael, Citael, sobretudo Citael
– Ela sorriu pra mim, quando não sorri para quase ninguém. Diz a madrinha
qu’ela achou-me engraçada e sem razão, com meus cabelos assim e tão novinha,
acrescentou. Voltei uma hora, vou dormir, ler um pouco. Amanhã, trabalhar no
meu livro, fazer o possível para suportar sem excessiva inquietação essa semana
que vem até ir a Nápoles – Estado de viagem, de espera, de saudade, de
projetos, de inquietação e ignorância e ansiedade. Tania, minha irmãzinha, eu te
amo. E minha Elisa também. Marciazinha está dormindo agora. M. já deve estar em
Nápoles. Quero que ele sinta tanta falta de mim quanto eu dele. Por culpa dele,
porque ele sempre arranja um jeito de ler minhas notas, nada posso dizer a seu
respeito. No entanto, há bastante. Boa-noite.
Lisboa,
dia 8 de agosto de 1944
Que coisa desagradável, desagradável, desagradável. Ribeiro Couto jantou comigo na casa dele, já pela segunda ou terceira vez. Não vi nada demais nisso, ele me tratava como camarada, e eu até ficava com medo que ele estivesse saindo comigo de má vontade, só por dever de ser delicado. Fez duas poesias sobre mim, e disse que fez muitas outras por causa de mim. Que há muito tempo isso não sucedia. Que ele ia sentir minha falta. Que eu era estranha e curiosa. Mil vezes, a propósito de tudo, me dizia como ele era discreto, como o principal era a reputação. Que o fato de eu ter ido à casa dele, aos olhos dos outros, era como se eu tivesse dormido com ele. Por isso era melhor não dizer a ninguém. E hoje me fez fazer um papel chatíssimo, obrigando-me a fingir que era uma americana, para um amigo dele, “defendendo minha reputação”. Que nojo, que cansaço. Já há dias notava que ele se
aproximava
um pouco de mim. Hoje andou de braço comigo – tão desagradável meu papel. E
depois, enquanto na feira esperávamos a roda, segurou-me em mão, procurou
encostar não na fazenda mas no pulso. Retirei-a discretamente. Disse que sou
complicada e austera, que é horrível que ele se sinta atraído por pessoas
diferentes dele. Que poderia ficar comigo três dias sem parar até eu morrer de
cansaço. Eu já previra indistinta [a] isso, mas ele insistiu tanto para
dançarmos. No carro, segurou minha mão, beijou-a muitas vezes, encostou-a ao
rosto. Eu fiquei fria de aborrecimento. Eu disse: que explosão. Ele disse: só
interna e mais coisas. Que ele não tinha dormido por minha causa (ele tinha
antes contado apenas a insônia). Depois de outras tentativas, que eu repelia
vexada, ele disse que sentia muita ternura por minha vida, uma vida difícil.
Depois viu mesmo o meu silêncio, e disse: mais tarde você vai ver, vou me
vingar. Eu disse: como?! Ele disse: sem gestos.
Antes
eu vira que ele afastara [Moscoso?]. Disse-lhe que este não aparecera, ele
retrucou: ele viu seus cabelos, sua boca, mas pensou que você era leviana,
quando viu que não, afastou-se. Deus meu, me muerdo las manos de solitud. Mas
não há nenhum desespero, há que é: desagradável. Amanhã há um jantar com
convidados na casa dele. Assim não me incomodo. Mas quinta, sexta, sábado e
domingo? Esquivar-me sem ofendê-lo. Disse-me que ainda no Rio, ele procurava me
ver, em vez de passar por não sei que rua procurava a Silveira Martins. Que a
base de vários poemas são agora olhos cinzentos. Me desagrada, horrível esse
derrame lírico. Que eu o inspiro. Que dei vida às coisas. Que descubro pequenas
coisas que ele sentia mas não sabia definir (mandíbulas das portuguesas)
Chuto,
chato. Minha querida, sei que você está sozinha, mas você é você. Quando chegar
em Nápoles, arranja um modo de trabalhar e ter horário e nesses intervalos
trabalhar para você mesma, com o impulso que o trabalho fora dá. E que os
homens façam o que quiserem. Inclusive M., que eu amo. Ribeiro Couto disse que
todos sabiam que eu e Lúcio éramos namorados. Quero gostar de várias pessoas
para não esperar nada de nenhuma, particularmente. Não quero que minha vida
seja uma tortura de desilusões. Noto que de novo tenho que fazer a minha vida,
que me defender dos outros. No fundo eles hão de rir de mim. Ou não? Possível
não. O fato é que tenho que considerá-los em bloco para que nenhum deles
particularmente me fira. É, a solidão anda. Boa-noite, querida. Durma bem!
Sábado
– fazer unhas, me vestir, ir ao cinema, buscar minha pulseira, comprar um livro
policial, de noite, ler.
Domingo
– trabalhar até meio-dia, escrever carta, ir ao cinema.
Segunda – trabalhar até às doze horas, ler, ir ao cinema Todos os dias – trabalhar, ir ao cinema, ler policial, procurar costureira segunda-feira, indagar cartomante
Segunda – trabalhar até às doze horas, ler, ir ao cinema Todos os dias – trabalhar, ir ao cinema, ler policial, procurar costureira segunda-feira, indagar cartomante
Segunda-feira:
comprar naftalina, comprar chapéu palha de milho, endireitar a unha, trocar o
livro, comprar papel-carta, escrever, buscar a pulseira, dar broche prata
consertar, telefonar costureira (Frederic-Luisa), ir ao cinema (Tivoli)
*
* *
O Instituto Moreira Salles é das
coisas boas, profissionais e que funcionam bem no mundo inteiro. Tem uma página sobre Clarice Lispector que é só a melhor que alguma vez vi. Tudo: vida,
bibliografia livro a livro, traduções comparadas, uma infinidade de
«valências», que é termo não usado por Clarice – e ainda bem. Entre o muito que
nos oferece, o Instituto disponibiliza em linha o caderno pessoal de Clarice, «caderno de bordo» de 58
páginas, doado pelo filho e herdeiro da escritora, em 2012.
Há precisamente setenta anos, Clarice
fez escala em Lisboa, rumo a Nápoles. Era Agosto. Antes disso, fizera escala em
Fisherman’s Lake, na Libéria, e daí algumas referências a negros e negrinhos,
anotações que mais tarde seriam incluídas no conto «A menor mulher do mundo»,
de Laços de Família. Também anotações
esparsas que seriam integradas no romance O
Lustre, publicado em 1946.
Devo o conhecimento de Isto tudo a
G.H., a quem agradeço muito, do fundo do coração selvagem.
António Araújo
Viva! Onde encontrou esta preciosidade? Permita-me que a partilhe no blog que dedico a esta notável escritora.
ResponderEliminarAbraço e uma vez mais parabéns por este seu notável espaço.
A pergunta é retórica, porque cita a fonte. Fica o pedido de partilha, naturalmente. jab
EliminarCom o maior gosto, caríssimo Amigo! A descoberta não foi minha, mas tenho a maior gosto que a partilhe.
EliminarUm abraço cordial do
António