A
conselho da Filipa Melo, comprei o livro, que ainda não li. Mas a capa,
suspeita, levou-me a regressar a um tema já aqui amplamente tratado, a
manipulação das imagens. Repare-se nas diferenças entre as imagens das capas do
livro de Katherine Boo nas edições portuguesa, por um lado, e, por outro,
anglo-saxónica, brasileira e italiana. A criança tanto se encontra no meio de
um mar de lama e águas revoltas, com uma cabana próxima e cores garridas
(na edição portuguesa), como está sentada no meio de um charco plácido, com
barracas e a cidade ao fundo (nas outras edições). Onde está ela, a criança? E
onde está ela, a verdade da sua imagem? Onde quisermos. No mundo da
manipulação, tudo é possível. E, quando tudo é possível, a verdade esvai-se.
Como a monção que chega, passa e vai embora.
António Araújo
Post-scriptum – um
comentador anónimo fez, a propósito deste texto, uma observação muito
interessante, segundo a qual aqui – e cito – «não há documento, há apenas
imagens como no cinema. Fotogramas que não são reais ou, melhor, são, mas podem
não ser a representação da realidade».
Este
comentário não só é perspicaz como suscita uma questão muito interessante, que
deve ser abordada tendo presente duas coisas:
– em
primeiro lugar, não estamos a falar de um livro qualquer, mas de uma obra de não-ficção, galardoada com os
mais prestigiados prémios, como o Pulitzer, sendo peça fundamental do marketing deste livro – o que, em si
mesmo, nada tem de reprovável – a divulgação do facto de a autora ter feito
trabalho de campo durante dois anos, ou lá perto, convivendo dia e noite com os habitantes num bairro de lata de Bombaim. O livro é, pois, apresentado com um
forte aparato de veracidade e nisso reside grande parte da atenção que tem
despertado em todo o mundo;
Katherine Boo
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– em segundo lugar, a imagem da capa é
uma fotografia da autoria de Alex Masi, um fotorepórter que tem trabalhado em
todo o mundo. Quem consultar o site
do banco de imagens Corbis verificará aqui que a imagem está legendada como
pertencendo à categoria «Notícias», datada de 1 de Agosto de 2009, e com os
seguintes dizeres: «India – Environment – Bhopal Water Contamination». Tem até um texto longo, que diz: «A lone girl is refreshing under the late
monsoon rain in the impoverished Oriya Basti Colony in Bhopal, Madhya Pradesh,
near the former Union Carbide industrial complex. When the heavy monsoon rain
falls every year, it seeps through the buried waste of Union Carbide before
proceeding to fill up and pollute Bhopal's underground reservoirs. Over 30.000
people are here at risk by the ongoing underground water contamination.»
Ou seja, a imagem é real, não é fictícia, não é uma encenação. A imagem
é esta:
Como
se vê, a capa da edição portuguesa até se aproxima bastante do original, se
exceptuarmos a colocação escusada de umas palmeiras laterais a servir de
enquadramento à figura da menina. Noutras edições, juntaram uns montes de lixo e prédios ao fundo, para tornar a coisa mais «forte» e contrastada. Ao contrário do que sucede no cinema, em que
sabemos de antemão que um filme é de ficção e outro é documental, as imagens
fotográficas possuem, em regra, uma presunção
de veracidade que, sobretudo em casos como este (capa de um livro de
não-ficção), aconselhariam, no mínimo, a que houvesse um maior cuidado – ou um
maior escrúpulo e mais contenção – na colocação de adereços ou artifícios, como palmeiras e prédios e montes de lixo. A
fotografia, cada vez mais, está a ser usada como substituto da ilustração. Por
várias razões, a começar pelo facto de talvez ser mais barato comprar uma
fotografia num banco de imagens do que contratar um bom ilustrador. Neste caso
concreto, a escolha é ditada pela circunstância de uma fotografia ser muito mais
«impactante», como agora se diz. Pretende-se, pois, obter o efeito «impactante»
da imagem fotográfica sem pagar os custos morais dessa opção, os quais
consistem, no caso de fotografias como esta, para mais lidando com realidades como esta, no respeito pela sua integridade
documental. O valor da presente imagem como documento – e é como documento que ela
nos surge apresentada e comercializada – sai completamente arrasado deste processo. Dir-se-á que, ao vender a sua fotografia a um banco de imagens, o autor
consente, expressa ou implicitamente, que a mesma seja manipulada. É provável.
Em todo o caso, há aqui um problema. Se virmos a ficha técnica do livro, diz
«Imagem de Capa: Alex Masi/Corbis/VM». Ora, depois do «tratamento» de que foi
alvo, a imagem já não é a que consta
do acervo da Corbis e já não é a que
Alex Masi captou. Uma imagem documental, de «não-ficção», foi ficcionada pelo
aditamento de elementos espúrios. Por isso, não posso acompanhar o comentador
quando diz «não há documento, há apenas imagens como no cinema». No dia em que
tal for regra, acabou o fotojornalismo, morreu a fotografia documental. Tudo
seria mais simples se as editoras – neste caso, americanas, brasileiras,
italianas e, em menor grau, portuguesas – evitassem manipular as imagens que
compram, não se pusessem a «melhorar» essas imagens com palmeirinhas. Bastava um pouco de contenção na criatividade dos ateliers: se
querem criação, façam ilustrações, inteiras e límpidas, honestas e sem
artifícios. Mas não. Querem o melhor de dois mundos: o poder da fotografia e os
melhoramentos do PhotoShop. Ao proceder assim, desrespeita-se o fotógrafo, o autor do livro-reportagem, os
leitores crédulos e, acima de tudo, a própria fotografia (e, já agora, quem
nela figura). Uma imagem não é sagrada, mas ao menos avisem quando for
manipulada. Há capas de livros (nos romances cor-de-rosa, quase todas) que são
inteiramente «construídas» de uma forma gritante e flagrante, tão óbvia que nem
sequer nos interrogamos, sabemos o que está em causa. Mas quando, num livro de não-ficção, se utiliza uma imagem real para figurar na respectiva
capa, deveria haver algum pudor e maior contenção. Diz o comentador que as
imagens «são, mas podem não ser a representação da realidade». Totalmente de
acordo. Conviria é que nos informassem, para que saibamos se estamos perante uma
realidade ou diante de uma encenação. Poupava trabalho a todos – a si, que bem
comentou (o que muito lhe agradeço), a mim, que escrevinho esta (mera) opinião
e, sobretudo, aos leitores do Malomil, certamente mais interessados noutras
matérias, como a columbofilia, domínio feérico e apaixonante que irá ser abordado já de
seguida. Muito obrigado pelo seu comentário.
António Araújo
Não creio.A conclusão é precipitada.Devemos é guardar distancia entre a imagem e o seu significado.Não ha documento.ha apenas imagens como no cinema.Fotogramas que não são reais ou melhor são mas podem não ser a representação da realidade.Confuso? Pois é mas é assim.
ResponderEliminarGostei do Post-Scriptum, que é afinal um pequeno ensaio.
ResponderEliminaronésimo
Obrigado, Onésimo! É muita generosidade sua...
EliminarUm abraço,
António
Com todo o respeito e reverência. Descobri o seu blogue há poucos meses, e tenho vindo silenciosamente a gostar muito da profundidade e dos temas abordados. Mas como este é um tema sobre o qual tenho reflectido muito não pude deixar de comentar.
ResponderEliminarUma fotografia é uma fotografia. Uma capa é uma capa - uma composição. (as letras tbm não fazem parte da fotografia). Na ficção, prefiro que a capa reflicta o conteúdo do livro que me minta sobre ele. Quem serve quem? Na minha opinião é a capa que serve o livro. Ainda assim, para os mais distraídos sobre a capacidade de manipulação dos programas informáticos modernos (sempre existiu manipulação na fotografia), na ficha técnica poderia estar escrito "Composição de capa a partir de foto de xxxxx". A internet existe, em dois cliques, tal como você fez, o possível interessado acederia à foto real.
Concordo inteiramente. Bastaria colocar «composição a partir de...» para que tudo ficasse mais claro. Ainda assim, para quê essa «composição», se a fotrografia, já por si, é tão eloquente? Quanto a mim, mas admito outras opiniões, a cap+a até ganharia outra força e outra expressividade (outra autenticidade, no fundo), se publicasse a fotografia talqualmente ela foi captada. Para quê as palmeiras e as cores garridas? Mais do que isso: a autora, Katherine Boo, saberá que a sua reportagem tem uma capa «encenada»? É que, como disse, a manipulação, no caso da edição anglo-saxónica (e brasileira e italiana9 ainda é mais evidente e grosseira.
EliminarMuito obrigado pelo seu comentário.
Cordialmente,
António Araújo
Caro António Araújo
ResponderEliminarÉ a primeira vez que leio o seu blogue, a nuvem das etiquetas é convidativa.
Encontrei o Malomil há um par de semanas, graças a um comentário do Alberto Gonçalves no DN.
…um tema já aqui amplamente tratado, a manipulação das imagens.
É difícil exagerar a importância deste tema.
A crença comum, que uma imagem vale mil palavras, leva diariamente os redactores de imagem dos telejornais a fazer horas extraordinárias, para montar pseudo documentários, recorrendo à carga emocional das imagens, para manipular, (ilustrar) teses politicas e abstracções ideológicas, só compreensíveis por palavras.
Creio até, que este simplismo, põe em causa de forma perigosa a própria democracia.
Não tendo uma opinião definitiva sobre este assunto.
Partilho neste caso a elegante proposta do anónimo, que o valor das imagem como documento é relativo. ...“Devemos é guardar distancia entre a imagem e o seu significado. Não há documento. há apenas imagens... ...”
Há quem diga, que o que nos apercebemos das imagens é determinado, por pressupostos vigentes e experiencias anteriores.
Permita-me uma pergunta. Neste caso especifico, o que é que o fez suspeitar da capa da edição portuguesa e iniciar esta investigação?
Sabe, as palmeiras dão-lhe um arzinho mais light, para levar de férias.
ResponderEliminarQuando do inicio da fotografia era crença comum que era definitivo.A realidade estava ali.Mas não. A fotografia tem entre ela e a imagem a manipulação mesmo mínima da escolha do angulo,abertura etc etc tudo alterações da realidade.
ResponderEliminarConcordo no entanto que quando citamos devemos respeitar as fontes.Citar.A Clara Pinto Correia que o diga.Por falar nisso que é feito desse genio?