A CONSTITUIÇÃO
COLONIAL (1911-1974)
EM DEZ TÓPICOS
(Homenagem a Manuel de Lucena)
I
Pelo menos até ao período liberal, isto
é, durante os séculos XVI a XVIII, faltou uma constituição colonial unificada.
Podem apontar-se, sinteticamente, quatro razões: i) – a heterogeneidade dos estatutos dos vassalos;
ii) – a inexistência de um corpo geral de direito; iii) – a inconsistência do sistema político-jurídico;
iv) – a inviabilidade de um Império
centrado, dirigido e drenado unilateralmente pela metrópole[1].
Por sua vez, na primeira metade do século XIX prevalecera a ideia de que
o constitucionalismo liberal abrangia todo o Reino ou Nação e que a
Constituição e seus direitos também se aplicavam ao Ultramar. Porém, apesar de
assimilacionista e de aplicação directa, a legislação era nominal e o benefício
da cidadania pelos nativos não passava de mera “ficção constitucional”[2].
II
Foram poucas as normas que integraram o Direito Constitucional Colonial
português, em sentido estrito e formal:
- ) – a norma do artigo 67.º da Constituição de 1911 – que enunciava, para as províncias ultramarinas, os princípios da descentralização administrativa e da especialidade das leis -, desdobrado em sete novos artigos pela revisão de 1920, onde se criou o regime dos Altos Comissários;
- ) – as normas do Acto Colonial (uma mescla de 47 artigos, de teor organicista, nacionalista, integracionista e centralizador), emitido em 1930 como Acto Adicional à (suspensa) Constituição de 1911, iniciativa de Salazar enquanto Ministro das Colónias interino e recebido “materialmente” pela Constituição de 1933;
- ) – as normas dos artigos 133.º a 175.º da Constituição de 1933 aditados pela revisão de 1951 (quase todas provindas do Acto Colonial), consagrando um regime de “unidade nacional”;
- ) – as normas dos artigos 135.º a 138.º após a revisão constitucional de 1971, instituindo uma “autonomia progressiva e participada” das províncias ultramarinas, organizadas em (pseudo) “regiões autónomas”;
- ) – os três artigos da Lei n.º 7/74, de 27 de Julho (Lei da Descolonização), esclarecendo que a solução política das guerras no ultramar implicava o reconhecimento por Portugal do direito dos povos à autodeterminação.
III
A terminologia colonial só entrou na Constituição de 1911 com a revisão
constitucional de 1920, embora fosse indiferenciadamente utilizada na
legislação ordinária, a qual, porém, não usava a terminologia imperial. Criado
em 1926 pelo Ministro João Belo como associação política dividida
administrativamente em oito colónias, o Império Colonial Português será um caso
típico de “invenção da tradição”. No texto da Constituição de 1933 só era
citado numa epígrafe e quando nela foi incorporado em 1951 converteu-se em
Ultramar Português, mera designação geográfica para resumir uma unidade
político-administrativa.
IV
As colónias estiveram sempre totalmente submetidas à Metrópole (com
eventual excepção do regime dos Altos Comissários).
Na Primeira República a legislação básica teve origem parlamentar:
constou das “Leis Almeida Ribeiro” de 1914, da revisão constitucional de 1920 e
de legislação complementar. A partir de 1926, o principal legislador colonial
passou a ser o Ministro das Colónias. A partir de 1951, o poder constituinte
passou para a Assembleia Nacional. Com o “25 de Abril de 1974” coube ao Conselho
de Estado (e foi exercido, derivadamente, pelo Presidente da República). Salvo
na Primeira República, o Ministro das Colónias era o órgão fulcral do poder
colonial (político, legislativo, executivo, mesmo judicial e militar), ou seja,
como dizia a lei, ele era «o principal orientador e dirigente da política
colonial».
V
Só no século XX surgiu a constituição colonial portuguesa, em sentido
material e formal. Também só então o Império e o Direito colonial português,
enquanto exercício de poder, obedeceram a uma teorização política. Na Primeira
República, a concepção dominante foi maçónica e parlamentar, assentou no
projecto da “nação una” e o seu mais importante ideólogo foi Norton de Matos.
Na Ditadura Militar prevaleceu o nacionalismo imperial dos “monárquicos
africanistas”. A filosofia colonial de Salazar provinha do século XIX e do
nacionalismo católico; o seu “impulso imperial” mudou em 1951. Quirino de Jesus
serviu-lhe de “eminência parda” e legislador de serviço. Como Ministros das
Colónias no período do apogeu colonial português do século XX distinguiram-se
Armindo Monteiro e Marcelo Caetano. O primeiro, entre 1931 e 1935, construiu o
Império Colonial Português; o segundo, entre 1944 e 1947, modernizou-o sem o
reformar. Ambos foram
derrotados em 1951.
VI
A revisão constitucional
de 1951 substituiu a perspectiva imperialista do Acto Colonial por uma
concepção assimilacionista, transformando as colónias em meras províncias
ultramarinas. Mas a revogação do Acto Colonial iria ter importantes consequências
estratégicas. Amarrando-se ao princípio da unidade nacional, impediria qualquer
renúncia à mínima fracção de soberania (como comprovou o caso de Goa) e,
portanto, qualquer transição constitucional. Por outro lado, quanto ao sistema
de alianças e de apoio ao regime, rompeu o equilíbrio até então prevalecente,
passando a opor, no interior do regime, os partidários da integração ou
assimilação aos partidários da autonomia político-administrativa[3]. Enquanto
construção ideológica e jurídica, Portugal definido ad hoc como «uma unidade indivisível, unitária e permanente»[4] vinda
da independência da nação e estendendo-se do Minho a Timor, durou um quarto de
século, metade do qual em guerra.
VII
Em 1919 a Sociedade das Nações legitimara os Impérios Coloniais. Em 1941
a Carta do Atlântico reconhecera o princípio da autodeterminação dos povos,
mas, em 1945, a Carta das Nações Unidas, embora condenando a ideia e a
terminologia coloniais, limitou-se a organizar juridicamente o colonialismo. Em
1952, quando ainda não se falava em “independências africanas”, surgiu em
França a expressão “processo de descolonização”, tradução do neologismo decolonization.
Até à segunda metade dos anos cinquenta, não existiram movimentos
nacionalistas nas colónias portuguesas nem movimento anticolonialista em
Portugal. Então chegou «o vento de agitações ou de subversão que vai pelo
mundo»[5].
A abolição do indigenato - primeira
reivindicação dos nacionalistas - e a generalização da cidadania portuguesa, em
Setembro de 1961, embora, para o seu mentor, tivesse sido «tão importante na
história da evolução legislativa portuguesa» como o termo da escravidão e do
tráfego de escravos[6],
tem sido, por tardia e por não ter impedido a dissolução do Império, comparada
ao Édito de Caracala, do ano 212 (comparação, aliás, também invocada em França
a propósito de medida idêntica, tomada em 1946).
VIII
«Aguentar! Aguentar! E nada mais é preciso para que amaine a tempestade
e se nos faça justiça», proclamara Salazar em 1959[7].
Depois, no extenso e «imperioso» discurso de 12 de Agosto de 1963, repensou
a política ultramarina portuguesa. Não mudou. Considerou esclarecedora a
fórmula constitucional que definia «a Nação portuguesa como um estado unitário
na complexidade dos territórios que a constituem e dos povos que os habitam»,
pois essa fórmula surgia como inequívoca «declaração de um estado de
consciência estratificado em séculos de história, e, através desses séculos,
pelo trabalho dos portugueses e pelo humanitarismo cristão de que foram
portadores». O conceito de nação era, pois, inseparável da noção de missão
civilizadora, já que em função da história de Portugal «também somos, além do
mais, e a melhor título que outros, uma nação africana». Visto que –
acrescentou – a libertação dos povos de África era reivindicada mesmo contra a
vontade dos próprios, então não restava «senão o direito natural de defender-se
e de defender os seus. Assim começam as guerras». Quanto ao fenómeno da
descolonização, parecia-lhe reinar o equívoco e estarem estabelecidas duas grandes
confusões: por um lado, que autodeterminação era sinónimo de independência e
plebiscito; por outro, que a essência da descolonização residia apenas na
imediata e incondicional «transferência do poder do branco, onde o detém, para
o negro que o reivindica e deve exercê-lo por ser mais numeroso»[8].
Ora, terá sido precisamente por não «passar de um crente fanático do
dogma da superioridade do europeu e da inferioridade do africano», que Salazar
terá morrido «como se sabe, doente da África»[9].
IX
Marcelo Caetano, exilado no Brasil, defendeu em declarações sob forma de
“entrevista”[10]
a política de “autonomia progressiva e participada”, consagrada como solução
portuguesa na revisão de 1971 - que «talvez» conduzisse à independência dos
antigos territórios coloniais, sua vocação histórica e exigência do mundo
contemporâneo[11].
Tal independência política «impor-se-ia por si na altura própria»; caso
contrário, se fizesse qualquer prévio anúncio de independência, «mesmo a longo
prazo, o Governo português perderia o controle dos acontecimentos […]»[12]. Quer
dizer, na conjuntura, a colonização como “condução dos povos” devera ter
continuado.
X
O reconhecimento dos movimentos de libertação nacional como únicos e
legítimos representantes - que decorreu da Lei n.º 7/74, de 27 de Julho (Lei da
Descolonização) e de uma Comunicação do Governo português à ONU, de 4 de Agosto
de 1974 - resume a descolonização portuguesa e distingue-a das demais (salvo, nessa
perspectiva, a da Argélia). Determinou uma descolonização rápida, essencialmente
política e conforme ao direito internacional.
Juridicamente, a descolonização portuguesa concluiu-se por via de
acordos internacionais e bilaterais com os movimentos de libertação nacional
(excepto Timor). Porém, tais acordos, omitindo regular o regime da sucessão de
Estados, limitaram-se a dois efeitos: (i) transferir o poder e (ii) reconhecer
os novos Estados.
António
Duarte Silva
[1] António Manuel
Hespanha, “A constituição do Império português. Revisão de alguns enviesamentos
correntes”, in João Fragoso, Maria Fernanda Bicalho, Maria de Fátima Gouvêa
(org.), O Antigo Regime nos trópicos - A
dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII), Rio de Janeiro,
Civilização Brasileira, 2001, pp. 163 e segs.
[2] Cfr. Cristina
Nogueira da Silva, “Nação, territórios e populações nos textos constitucionais
portugueses do século XIX”, in Themis,
Ano III, n.º 5, 2002.
[3] Manuel de
Lucena, “Nationalisme impérial et Union européenne”, in AAVV, L’Europe des Nations, Arquivos do Centro
Cultural Calouste Gulbenkian, Vol. XL, 2000 (Separata).
[5] Oliveira Salazar, “A atmosfera a mundial e os
problemas nacionais”, in Discursos e
Notas Políticas – V – 1951/1958, Coimbra Editora, 1959, p. 431.
[7] Oliveira Salazar, “A posição de Portugal em
face da Europa, da América e da África”, in Discursos
e Notas Políticas – VI – 1959/1966, Coimbra Editora, 1967, p. 60.
[8] Oliveira
Salazar, “Política Ultramarina”, in Discursos
e Notas Políticas, Vol. VI, Coimbra Editora, 1967, pp. 287 e segs.
[9] Amílcar Cabral,
“Intervenção perante a Quarta Comissão da Assembleia Geral das Nações Unidas,
em Outubro de 1972”, in Obras Escolhidas
de Amílcar Cabral, Vol. II, Lisboa, Seara Nova, 1977, p. 196.
[10] Marcello
Caetano, O 25 de Abril e o Ultramar –
Três entrevistas e alguns documentos, Verbo. s. d.
Interessante. Vou ler com mais calma. Pequeno reparo : "Pelo menos até ao período liberal, isto é, durante os séculos XVI a XVIII, faltou uma constituição colonial unificada"... o que parece razoavelmente natural, na medida em que não havia constituição "tout court", ou não ?
ResponderEliminarBoas
Um excelente texto de ADS
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