Fotografia de João Francisco Vilhena
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Estou
na cama de manhã e aproveito para apontar na Agenda o tempo que passa. Tinha
ficado na véspera em casa a rever provas. O puto fora para o liceu. Resolvo ir
à rua beber uma cerveja e continuar a revisão. Ao pé do chafariz, o barbeiro
atira com esta: “então, o Marcello e o Thomaz lá foram ao ar...” Não percebo
logo. Nem acredito como. Mas ele confirma: a Emissora Nacional não funciona, só
o Rádio Clube Português é que dá música e de vez em quando comunicados breves.
Já mais convencido, convido-o logo a festejar na tasca da Laurentina que era
para onde eu ia. E depois, ainda duvidoso, vou com ele à barbearia a ver se
oiço algum comunicado. Música ligeira, sem nada de marcial. Canções populares
portuguesas, pouco mais. (Até a Amália, parece-me!). Mas passados minutos um
comunicado do Comando das Forças Armadas. Aí, adquiro a certeza que é, deverá
ser a repetição do golpe das Caldas, mas com outra amplitude. Refere que o
público tem ocorrido às lojas, em tentativas de açambarcamento, e manda fechar
o comércio. Aconselha a população a manter-se nas suas casas e as forças
militares e militarizadas a recolherem aos quartéis e não oferecerem
resistência à tropa. A coisa é grave. Parece que não há comboios e para lá de
Sete Rios não se passa. Tenho algum dinheiro e resolvo logo ir ver (foi o
melhor que fiz: ver para crer). Desço acelerado e vou a casa do Fernando Paços,
perguntar se ele sabe alguma coisa. Se sabe não diz. Mas confirma. Acompanho-o
à farmácia de Queluz Ocidental e depois (ele aconselha-me que não vá a Lisboa,
pois não conseguirei passar – mas eu conheço outro sítio para entrar, ou sair,
da minha terra e caminho acelerado. Muitos carros, em fuga discreta?) para cá.
Em Queluz, já vejo lojas fechadas, outras a fechar à pressa e uma data de
tontos a abastecerem-se para o ano todo... oiço que um tal comprou mais de cem
pães. Rica açorda (ou negócio) deve ter feito com eles. Cafés fechados. Há
comboios. Meto-me num para a Amadora, depois sigo a pé. No Bairro do Bosque
(sempre o intenso movimento de carros a saírem), ainda consigo meter um copo.
Não há jornais. Rostos, com as janelas fechadas, assomam entre cortinas. Tudo
me dá a ideia de receio (mas em Queluz vi alguns magalas a planar, o que me
deixou intrigado). Venho a pé até às portas de Benfica e o ambiente é o mesmo:
fila de carros a safarem-se, comércio encerrado, mulheres com sacos de plástico
cheios, tensão. Meto-me num autocarro da Carris, de Benfica para o Chile e
fico-me um tanto a rir do Paços, que em Lisboa e a andar para o centro já eu
vou. No Chile, só uma taberna aberta: bebo mais um copo, estou nas lonas.
Animação. Um tipo ao meu lado compra 8 maços de Português Suave, também está a
açambarcar ou a fumar aquilo diariamente habilita-se a um cancro nos pulmões em
beleza e rápido. Aparece gente com jornais ('A Capital') e sei que estão a
vender para os lados do Império. Vou logo lá, sento-me num degrau e sei as
primeiras notícias. Tá bem! Resolvo ir a casa do Henrique, ver se ele estará.
Na Carlos Mardel, uma senhora num 1º andar pergunta-me onde vendem jornais.
Digo e ofereço-lhe o meu. O marido, que vinha à rua, fica com ele e eu fico
reduzido a 30$00. Começo com sede e angústias. Estou em jejum e já andei um bom
bocado. Penso ainda ir ao Manaças (António) mas desde a última vez, desde a
nossa última conversa, ele não me está a apetecer. E depois, o importante deve
estar a acontecer na Baixa. Enfio ao Montecarlo (fechadíssimo) mas consigo
topar um tipo a bater à porta da Mourisca (também fechada) e entrar. É que há
gente. Vou, bato, o Costa Loiro está a forrar vidros por dentro com papel,
talvez com receio dalgum obus. Peço-lhe vintes e ele despacha-me. Meto à Rua
Viriato e vou até ao quartel de Santa Marta (todas as tascas fechadas até ali).
Dá-me vontade de rir ver os cabeças de nabo reunidos lá dentro, a falarem uns
com os outros (é que obedeceram às ordens?). Mas logo ao lado há uma tasca
restaurante, porta meio aberta, com gente e muito movimento (guardas a beber,
outro a telefonar para casa a sossegar a mulher (?), diz que não há azar). Bebo
uma Sagres e como uma sandes. E avanço para a linha de fogo, que não sei onde
é. Metros andados, ouvem-se ao longe tiros e rajadas de metralhadora. Tipos que
fogem. Mas onde será o tiroteio? Como a coisa parou, continuo a andar. Até que
encontro, já não sei onde, o Almeida Santos e um tipo que é revisor no 'Diário
de Lisboa' ou no 'Popular', já não sei. Metemo-nos num táxi que sobe pela
Calçada do Carmo. Mas logo populares avisam (ah, entretanto, perto do Tivoli,
já tinha comprado um 'Diário de Notícias', com mais informes) que a rua está
bloqueada. O carro faz marcha-atrás e mete (por onde?) para o Bairro Alto.
Bebemos não sei o quê numa tasca, o revisor vai à vida, o Almeida Santos
pira-se e eu avanço para os lados do Carmo. Na Rua da Misericórdia, muita gente,
tropa e um tanque de respeito. Da janela da Redacção da 'República', o Vítor
Direito e o Afonso Praça (aquele grita-me: 'estás muito bonito hoje!', eu
levava o sujíssimo albornoz que me deu o Artur), noutra varanda o Álvaro Belo
Marques, a quem pergunto: 'como é que se entra para aí?', porque a porta da
escada da 'República' está fechada. 'Vai pelas traseiras!'. Vou mas também está
fechada e logo à esquina aparece um vendedor com a última da 'República'. É um
verdadeiro assalto. Aí fico a saber dos chefes (Costa Gomes e Spínola) e o
alvoroço é enorme. Já não sei bem: se vim ao Rossio, se de repente notei uma
grande correria para o Terreiro do Paço. Sem perceber nada do que se passa,
sigo a onda. No Terreiro do Paço, começa a chover. Há correrias e encontro uma
rapariga que me conhece muito bem mas não topo logo. É a Maria João, a
engenheira química, amiga do Henrique, com outro rapaz. Ficámos abrigados da
chuva debaixo das arcadas, depois convenço-os a irem beber um copo ao Terreiro
do Trigo (Campo das Cebolas?), não sei já se estava aberto se não. Ela tem o
carro no Camões e para aí vamos. Mas o Chiado está cheio de gente, que quer
assaltar a Pide. Já não sei se ouvi tiros. Vi ainda as (uma?) ambulâncias,
depois quase à porta da Brasileira um rapaz ou homem com a mão cheia de sangue
(seco?), que tinha agarrado num rapaz ou rapariga. Começam a chegar fuzileiros,
há mais correrias, a Maria João e o rapaz perderam-se de mim. Cheira-me que já
chega. Agarro um táxi e arranco para casa da São. Pela TV vi depois o resto.
Foi bonito e foi rápido. Já posso morrer mais descansadinho.
Luiz
Pacheco, Diário Remendado.
(enviado
por um grande amigo, João Pedro George, o nosso maior pachequiano)
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