sábado, 25 de abril de 2015

O meu 25 de Abril.





 
 

O meu 25 de Abril

Ou como regressei a Portugal em 1974  [1]

 

Fotografia de Adelino Cunha

 


 

 

«I dreamt a Dream! What can it mean?»

William Blake.

 

 
Dez anos se passaram sobre o tal «dia inicial, inteiro e limpo»1 … Dez anos… Sinto-me como Rip van Winkle ao abrir os olhos após uma sesta que ele julgara ter sido um ligeiro quebranto: enquanto semicerrei os olhos o tempo partiu à desfilada, com um cão sem coleira, como um ladrão em fuga nas trevas cúmplices. Como por encanto – é assim também nas lendas orientais – dez anos, mais de três mil e quinhentas noites escorreram vertiginosas pela ampulheta da História, da minha história e da outra, a grande, a Universal. A vida histórica – o tempo – passa do mesmo modo que a erva cresce, invisível e modesta, insidiosamente. Vale a pena lembrar o que Pasternak dizia sobre esta semelhança da História com o crescimento das folhas de erva: «Ninguém faz história, ninguém a vê, do mesmo modo que ninguém é capaz de ver crescer a erva na terra». Exactamente, meu poeta russo: a erva cresceu devagar, sem ninguém dar por isso, e eis, de repente, dez anos passados, um capim imenso a cobrir todo o horizonte. Mais de três mil e quinhentas noites, mais de três mil e quinhentos sóis acesos e logo apagados no horizonte, mais de três mil e quinhentos poentes que transitaram para o mesmo local ermo e abstrato onde estão os poentes todos do Império Romano ou os nascentes anteriores à edificação do primeiro Templo de Salomão.
 
 
Voltemos então atrás, não como historiadores, mas como testemunhas, náufragos, sobreviventes – «rescapés» da História. Lembremos sempre na primeira pessoa, que foi para mim – aqui é um eu que fala, e só de si ele fala – essa fractura histórica que abalou o pequeno universo lusitano e o dividiu para sempre num eterno antes e num eterno depois de.
 
Há sete nos que eu vivia em França, exilado voluntário desde 1967: uma bolsa do Governo francês para doutoramento na Universidade de Estrasburgo permitira-me dar o «salto» (*) que tantos outros compatriotas meus faziam por inadiável necessidade vital. Eu também queria «ganhar a vida» mas por mera necessidade de respirar um ar livre, mesmo que essa liberdade fosse a vigiada e acautelada liberdade de De Gaulle. Saí do meu país batendo moralmente a porta, cansado de uma vida inteira de censuras, esbirros, humilhações e olhares policiais. Como Cortez, eu queimava as minhas naus e jurava nunca mais retroceder sobre os meus passos: só voltaria a Portugal se na minha terra raiasse de novo o sol da autêntica Liberdade – aquela que leva maiúscula – o que era uma maneira de me condenar a um exílio perpétuo, pensava eu. E a perpetuidade, no meu caso, durou apenas sete anos.
 
Ao lado do meu triste, mesquinho, miserável e policiado Portugal da Ditadura salazarista, a França parecia-me, apesar de toda a minha lucidez crítica, uma espécie de paraíso politico: pelo menos não sentia pesar na nuca o olhar dos «pides», do meu país, lia os jornais, que não tinham sido previamente censurados e ouvia, apesar de todo, uma rádio ou via uma televisão onde a intervenção do poder não se traduzia no conformismo da mais banal e repugnante submissão. Seria interessante, para mim e porventura para os meus leitores franceses, [2] lembrar agora o que significa a França degaulista (e, depois, pompidoliana) para um Português, escapado à ditadura salazarista no final dos anos sessenta, a dois passos do Maio 68 (no qual mergulhei como uma espécie de doninha sequiosa que fugiu ao jardim zoológico dum tiranete sombrio, todo vestido de preto, botas de elástico e o breviário debaixo do braço). Mas a França só etra nesta história íntima como um simples «background», um fundo convencional e necessário para que o retrato fique melhor, mais nítido. Resumamos dizendo que, uma vez doutorado em Estrasburgo, farto das neves e da xenofobia alsacianas, vagamente participante – um pouco como o miúdo que assiste, por acaso, à tomada da Bastilha e depois prossegue o seu caminho assobiando – nos desmaios de Maio de 68, aqui vou em direcção ao Midi, ao sul latino, o Sul da oliveira e das amêndoas, do sol e das rochas acres, uma vez obtido um lugarzito na Universidade de Aix-en-Provence, segundo capítulo dum exílio que doravante, na boa Provença, merece realmente o qualificativo banal (mas afinal tão certo!) de «doirado». Aix-a-Bela era assim a minha deliciosa, perfumada, calorosa gaiola de finas grades de oiro, onde eu saboreava as tais «noites brancas do exílio» de que falava Victor Hugo (mas o poeta democrata vivera a suas noites vazias em Bruxelas, o pobre!). Ai estava eu, à sombra dos grandes plátanos de Aix, como Ulisses na ilha da formosa Calipso, à espera que os ventos me levassem de volta, um dia para a Ítaca perdida, detestada, policial.
 
 
 
 
 
Fotografia de Adelino Lyon de Castro
 
 
 
 
E como bom Português messiânico crente no regresso do miraculoso Dom Sebastião morto em África, eu aguardava ali, ensinando língua e cultura portuguesas no Departamento de Estudos Luso-Brasileiros da Universidade de Provença, que o Milagre se desse, que, numa improvável e até mesmo impossível manhã de nevoeiro o Encoberto voltasse a Portugal. E veio mesmo o nosso Encoberto: a Revolução, a impossível Revolução por tantos sonhada, espécie de Nossa Senhora da Liberdade em que acreditávamos por lermos tanto e por sermos tão incuravelmente sebastianistas.
 
Naquela manhã tudo começara mal – para mim, tão longe do que em Portugal se passava naquele dia inicial. Dormira mal a noite anterior, acordara fatigado, muito tarde, vestira-me à pressa, não chegando, pois, a ouvir o habitual noticiário da «France Inter». E foi assim, ignorando tudo, que me precipitei ao volante do meu Fiat, para ir à Faculdade assistir a uma conferência, para alunos de seminário, sobre «Unamuno e Portugal». Quando com um ligeiro atraso, entro na sala de conferências – era a biblioteca do Departamento Luso-Brasileiro –, todos me olharam duma maneira estranha, como se uma ligeira demora de minutos fosse um crime grave previsto pelo código penal. Sentei-me com um sorriso contrafeito, atento ao Bernard que perorava sobre o diálogo entre Unamuno e Laranjeira, um escritor português que julgava ver na vinda da República, em «1910», o Grande Resgate nacional, que nunca houve, que ficou para sempre adiado. De quando em vez, os colegas e os alunos voltavam a olhar-me como se aquilo tudo – a conferência, o filósofo basco, o seu diálogo com o suicida luso, as falsas regenerações, as promessas que os homens fazem e a História não cumpre, os impossíveis sonhos acordados de autêntico «Dies irae, dies illa» em que o mundo se dissolve em cinzas, os homens tremem e a história fica para sempre diferente do que até ali lugubremente fora – tivesse uma ligação directa comigo, como se eu fosse o destinatário privilegiado daqueles conflitos, diálogos, sonhos mutilados, sonhos dispersos atirados depois como asas estropiadas, para os caixotes de lixo da História, o mesmo onde jazem a revolta de Spartacus, a República espanhola de 1931 e tantas outras causas altas e nobres e justas e falhadas.
 
Os olhares dos presentes incomodavam-me: que raio de mal podia haver, pensava eu com os meus botões, em chegar uns minutos atrasado a uma palestra para meia dúzia de gatos-pingados, acerca dum pobre escritor português que dialogava com um colega seu – colega em sonhos, em fome de Absoluto, em desespero lúcido – no fim da primeira década deste século, num recanto esquecido do planeta num pequeno país desconhecido, em ruínas, num cenário que a História já arrasara, num tempo que se fora de vez, em palavras que o vento dispersara com as cinzas dos que são queimados em piras à beira mar…? No final da palestra, um Brasileiro meio palerma, exemplar tão típico do cretino intelectual sul-americano, a banhos na Europa, perguntou-me entre o céptico e divertido, o que é que estava a acontecer em Portugal. A pergunta deixou-me inquieto: havia naqueles olhares, naquela pergunta, algo de grave. O conferencista foi mais caridoso: sugeriu-me que corresse ao primeiro transístor disponível, pois parecia que tinha havido uma revolta militar na minha terra.
 
Corri para casa: a minha mulher já estava alvoraçada, a Rádio anunciava uma revolução em Lisboa. E enquanto ela ouvia todos os postos possíveis e tentava, além disso, ver o que a TV dizia, corri à escola ali perto para ir buscar os garotos. A directora da escola primária, uma simpática professora socialista que vagamente me sabia exilado em França, veio, de lágrimas nos olhos, ao meu encontro: «Ah!...quel malheur!»
 
A expressão deixou-me perplexo: quando vigora uma ditadura  (e a nossa vinha de 1926, durava há quase meio século!), qualquer anormalidade é sempre boa nova, mesmo que, em aparência, os militares de direita tivessem tomado o poder, conforme parecia desenhar-se àquela hora, a julgar pelos noticiários febris bebidos à pressa. Passa-se uma vida inteira à espera do Dia Essencial – e, quando este chega, estamos cheios de pressa, andamos dum lado para o outro, temos de ir buscar as crianças à escola para o almoço ou assistir a cerimónias eruditas, há que fazer compras e pensar no tirânico dia-a-dia, não temos a tranquilidade de espírito para medir a grandeza do momento, para a saborearmos condignamente, para pensarmos que Tudo mudou, que a História acaba de se fazer, majestosa e diante dos nossos olhos, que o Dies Irae, o Dies Illa está ai, é mesmo esse que o calendário marca, sem aviso prévio, basta olhar para ele e lê-lo: é o 25 de Abril de 1974, uma quarta-feira, com um santo próprio, de que nunca se ouviu falar, um tal «S. Fidèle» (diz a minha folhinha francesa da altura…). Mas não há tempo para parar, para olhar, ver aquele Sol igual e todavia diferente, a escrever na imensidão tão breve daquele dia uma data diferente, a data que vai mudar tudo, que vai separar a História em duas vertentes, para ali o passado, o «antes de», para acolá o «depois de», o «após 25 de Abril», a Fractura absoluta que nem mil milhões de anos e até o desaparecimento do globo mais os seus rios, as suas tribos os seus sofrimentos, os seus ascetas, os seus artistas e os seus criminosos, mais as suas guerras, catedrais, holocaustos, grutas pintadas na escuridão de longos Invernos gelados mais as suas miniaturas, os seus poemas, as suas gerações que vão caindo uma a uma na morte e no esquecimento, mais as suas pirâmides e os nomes delas que também sobrevivem alguns séculos, mais as suas descobertas e as suas maldades, os erros e os sonhos impossíveis ou pervertidos, serão capazes de abolir, rasurar da escrita que, algures, alguém regista, necessariamente num papiro dum bronze incorruptível, a ser guardado até a consumação dos tempos.
 
A meio da tarde, depois de pormos de novo as crianças na escola e de, novamente, as irmos lá buscar, depois de febris audições de todas as rádios francesas, fomos a um supermercado nos arredores de Aix, e durante essa viagem, no rádio do carro, ouvimos um funcionário do Governo português afirmar em Genebra que nada de anormal se passava ou passara em Lisboa, que reinava a ordem em todo o país, que a situação estava «sob controlo». Maldita notícia falsa que durante segundos embaciou o êxtase que minha mulher e eu estávamos vivendo ali, solitários como dois náufragos perdidos numa deserta ilha maravilhosa, estranha. Maldita notícia falsa que sujou o rosto tão perfeito daquele Dia inicial, Inteiro e Limpo!... Mas logo os telexes, em torrente, desmentiam a tolice de tal funcionário parlapatão: a Ditadura, o «Fascismo» (como se costuma dizer) caíra, a Liberdade surgia, o nosso impossível D. Sebastião, morto há tantos séculos, no plainos de Marrocos, voltava, nitescente como um cavaleiro do Graal, trazendo nas mãos a taça puríssima, o sagrado Nome. E tudo se passava no meio duma imensa alegria maculada: a não ser os disparos da PIDE sobre um grupo de manifestantes, em Lisboa, nenhuma violência veio sujar aquele Dia. E até aquelas estúpidas mortes criminosas às mãos de facínoras da polícia do regime caído eram lógicas – o regime caía, matando, uma vez mais, as mãos literalmente sangrentas.
 
Agora abro de novo os olhos, olho o calendário, oiço o rumor do mundo em minha volta, os motores dos automóveis que sobem esta avenida lisboeta onde moro a dois passos do (então) tão célebre palácio da Cova da Moura, onde a Revolução habitou alguns dias, logo após o 25 de Abril de 74, e sinto-me como Rip van Winkle ao acordar duma sesta que julgar ter demorado umas horas e afinal durara anos, um década, mais de três mil e quinhentos sóis sucessivamente acesos, apagados, reacendidos, de novo afogados no horizonte, a Ocidente… Como vertiginosos carneiros de Panurgo, essas três mil e quinhentas jornadas correram umas atrás das outras, na cola da primeira, do tal Dia Inicial ainda inteiro, ainda limpo, em que emergimos todos da longa noite e do espesso silêncio de quase meio século de opressão colectiva e de sofrimento individual. Como Rip, adormecido, deixara o tempo fugir, deixei escapulir dez anos, tempo que se fez História à pressa, ofegante, sem me dar tempo de o pensar, de o examinar, tempo que correu como a água se despenha numa cascata, em queda livre, imparável, tempo que passa como a erva que cresce, invisível e todavia real, que vive connosco, de nós, se faz nós mesmos e, depois, nos abandona com o mar se retira, deixando-nos sós sobre a areia da praia erma…E tento recordá-lo de novo, ver uma vez ainda o começo desse curso que depois se precipitou e caiu como Ícaro. E revejo-me ao volante de uma camioneta alugada, uma Peugeot carregadíssima de livros, a caminho de Portugal, pela Rossilhão, pela Catalunha, em direcção ao pequenino caninho lusitano, cá ao fundo, onde a Revolução parecia ter eclodido, para espanto de toda a Europa – e sobretudo de mim mesmo. Lá vou eu, a guiar pelas estradas de França e Espanha, com a minha biblioteca empilhada na Peugeot, a minha mulher ao meu lado, o rádio ligado noite e dia, para ouvir de perto aquilo que em Portugal se passava. Voltava, como Ulisses de Joachim du Bellay, carregado de idade e de razão? Não, com os meus 35 anos da altura, sentia-me um jovem Ulisses impaciente, a viajar com a sua Penélope, a biblioteca às costas, ao volante duma carripana francesa alugada à Avis, a caminho duma Ítaca inesperadamente surgida do meio do nevoeiro dos anos…
 
Entrámos, noite alta, na fronteira portuguesa. A Rádio nacional, que eu deixara de ouvir há sete anos, pareceu-me desde logo bizarra: os ruídos, àquela hora tardia, não me traziam a Revolução que me habituara a ver, todas as noites, no Telejornal da TV francesa, com os seus desfiles, o seu folclore, a meio caminho entre o Couraçado Potemkine e o Hellzapoppin, mais o lado propriamente português, isto é, festivo, processional, florido, arabizado e um tanto latino dos festejos de São João, charivari próprio dos países meridionais, com céus sempre azuis e um clima tépido que permite desfiles, de multidões leves, coloridas e esbracejantes. Durante dois meses, víramos na TV francesa aquele espectáculo improvável, inacreditável, levado à cena por amadores que tinham ensaiado, não se sabe onde, o seu Outubro e tinham ido buscar, não se sabe também em que esconderijo, aquelas bandeiras vermelhas, a inspiração para aqueles cânticos tão sinceros, tão espontâneos. Onde dormira tanta energia acumulada, tanta cor garrida, tanto sangue na guelra, num povo que parecia domesticado como as suas sardinhas em lata?
 
Rolávamos pelo Alentejo fora, em direcção à capital. Eu vivera Maio 68 em Estrasburgo, e plantado diante da lucarnazinha electrónica vira os «acontecimentos» em Paris, tivera também oportunidade em Junho desse ano , de assistir, na capital, aos últimos sobressaltos dos ditos «acontecimentos», tendo ainda a felicidade – para um historiador profissional, afeito a ler descrições das barricadas de 1830, 1832, 1848, 1871 e 1944… – de observar, «de visu», ao levantamento duma barricada por adolescentes de lenço vermelho ao pescoço, no boul. Sébastopol. E por isso, agora, regressado a Ítaca, procurara por todo o lado, nas desertas estradas do meu país, naqueles muros caiados, tão brancos, tão luminosamente alvos ao luar de Junho de 74, sinais de inconfundível retórica visual, gráfica e folclórica da Revolução. Mas à parte uma ou outra foice mailo seu martelo, característicos aliás duma província tão tradicionalmente contestatária, de esquerda, como aquela que eu atravessava na minha Peugeot carregada de erudição, não topava com nenhuma mostra visível de um Grande Dies Irae nacional ou até duma pequena revolução que por ali tivesse passado, deixando os muros brancos chamuscados de vermelho ou negro. Não, aparentemente, me provava que aquela revolução lisboeta que eu vira durante dois meses na TV francesa, em Aix, tivesse chegado aos burgos sonolentos ou de todo adormecidos que eu cruzava então, a caminho da capital. Nada de delírios, de grinaldas, ou flâmulas, de postes decorados de sumptuosos murais multicores, nada de solenes e tremendas inscrições anunciando o fim do Capitalismo e o Nascimento da Sociedade sem Classes: só estradas bucólicas, azinheiras, amendoeiras, oliveiras e os típicos sobreiros do eterno Portugal agrícola, campesino rotineiro, subdesenvolvido, com as suas azeitonas, a sua cortiça e as suas carroças puxadas por burricos. Nem isso, aliás, pois era de madrugada e as estradas pareciam as dum sonho, uma espécie de Chirico rural, «à la mode de chez-nous». Atravessava um país fantasma, que eu ouvira dizer estar em revolução, após a queda da mais longa ditadura da História europeia: em volta, na estrada maltratada, casas de janelas apagadas, muros velhos, palmeiras, oliveiras, montes amodorrados. Aquela pacatez de Junho fazia-me duvidar da transfiguração de que ouvira falar e que viria na lucarnazinha televisiva.
 
Aproximei-me de Lisboa, tomei a estrada de Sintra, pois era para Galamares que eu seguia então. E pensava no reino ensonado de Porto Manacore d’A Lei de Vailland, mais o seu Don Cesare, senhor feudal que um dia passaria por Portugal: «Il avait pensé que c’était le pire malheur que de maître Portugais. A Lisbonne pour la première fois de s avie, il avait fait reencontre avec un peuple qui s’était desinteresseé».
 
Era isto o que mais me preocupava, viajando de madrugada por aquele Portugal rural e adormecido: como é que um país desinteressado, na tão justa expressão da personalidade italiana, podia querer fazer uma Revolução, sendo a Revolução o projecto vitalista mais absoluto, voluntarista e afirmativo que se possa imaginar? Onde estariam escondidas aquelas bandeiras rubras saídas não-sabia-donde, a tremular nas ruas, inesperadamente florindo como uma seara de germinação subterrânea, cobrindo agora tudo e todos, as casas e até as espingardas que há treze anos vinhas fazendo as nossas três guerras coloniais? A imagem do filme 1900 de Bertolucci vem-me agora à memória: com a queda do Fascismo, os camponeses da Emília desenterravam velhas bandeiras vermelhas escondidas naquela aldeiazinha, há umas décadas atrás. Mas aquilo era na Itália, numa região onde o socialismo tivera realidade e as lutas tinham sido verdadeiramente épicas, em que o advento do Fascio representara, afinal, um parêntese que era fácil fechar, indo buscar à terra os estandartes escondidos. Mas em Portugal, como compreender um ressurgir duma vida, dum imaginário e duma tradição que se tinham perdido de todo porque nunca tinham tido raízes reais? De que céu tirávamos nós aquelas sugestões, uma vez que elas não tinham um passado terrestre onde ir beber as suas origens? O nosso «fascismo de cátedra» (como lhe chamara Unamuno em 1935) não passara duma flácida contrafacção do autêntico fascismo europeu, até porque, no fundo, não tivera de esmagar uma classe operária, viva e dinâmica, antes se implantara como uma doença, vergonhosa que alastra, sufocando e calando, a partir dum golpe de Estado bem sucedido, o de Maio de 1926.
 
Por isso naquele Junho de 1974, ao volante da Peugeot alugada para trazer de França para Portugal a minha biblioteca e alguns tarecos que tinham cabido na carripana, eu me sentia um pouco como no poema de Pessoa, mas sem o Chevrolet que lhe dá o título e lhe serve de máquina para o devaneio: «Sigo por outra estrada, por outro sonho, por outro mundo / (…) sigo sem haver Lisboa deixada ou Sintra a que ir ter.» E lá ia eu ao volante da minha Peugeot, pela estrada de Sintra, debaixo do luar de Junho, calado Ulisses de volta a Ítaca, caminhando mecanicamente por uma outra estrada, à procura de um país que perdera e que agora, sob a face branca do astro morto, tentava reencontrar naquele ano da Revolução dos Cravos, sem haver Lisboa deixada ou Sintra a que ir ter..
 
Lembrei-me então, depois do Cacém, que havia ali uma casa perto de Mem Martins numa curva apertada da estrada, com um alto muro reforçado por chapas de ferro ondulado, decerto pertencente a um barão do regime salazarista, pois o seu dono mandara pintar a toda a largura do espesso muro uma garrafal frase fascista, algo como «Portugal uno e eterno, de aquém e além-mar». Uma monstruosidade que durante anos a fio eu tivera de suportar, sempre que fazia aquela curva a caminho da casa de Galamares, no vale de Sintra… E agora, voltando de França ocorre-nos, a minha mulher e a mim, indagar do destino daquela frase tão idiota, escarrada a toda a largura dum muro insolente de barãozinho salazarista: dois meses depois de Abril de 1974, seria possível que tamanha parvoeira ainda manchasse a paisagem e o quotidiano dum país que se queria livre e, além do mais, revolucionário? A questão tinha valor de símbolo e de teste: se o insulto idiota ainda vigorasse, podíamos ficar cientes sobre o significado de semelhante Revolução que tolerava tamanhas enormidades públicas. Como me aproximava da curva, abrandei a marcha para melhor observar a casa e a sua frase pintada a verde: e com enorme espanto vimos, minha mulher e eu, um plácido caiador a pintar a branco todo o muro, para fazer desaparecer o «slogan» fascista… Àquela hora da madrugada, envergonhado como se percebia, um operário contratado pelo atemorizado dono da casa dava uma última demão de cal branca no muro, onde anos a fio vomitara a sua fanfarronice imperial salazarista. Assim, pois, o teste feito em cima da hora da chegada ao meu país parecia concludente no sentido de mostrar que tudo estava a mudar, desde a cor das bandeiras às velhas frases propagandísticas pintadas nas paredes. Poucos dias passados, regressava a França para devolver a Peugeot e então tornar de vez à minha terra, para ver a Revolução que lá havia.
 
E via. Apreensivo e tantas vezes céptico, vi o delírio verbal que deles a lés, varria a minha terra, apagando algumas frases rançosas como a da casa na curva da estrada, outras vezes não dando sequer por provocações ainda maiores espalhadas a longo de quilómetros de fachadas, de leis, de instituições, de tradições, quartéis ou prisões. O delírio demagógico parecia aliás monopolizar o essencial das energias dos nossos revolucionários, convictos de que uns papéis pintados a que chamamos leis podem esconjurar, alterar e metamorfosear as mais coriáceas realidades sociais, económicas, mentais. Que basta pôr na Constituição – como se pôs no texto entusiasticamente aprovado em 1976 – que é tarefa essencial do Estado construir o socialismo e acabar com a opressão do homem elo homem (3), para que esta, vencida pelo gume das sílabas ditas ou escritas, estoire ou se encolha ou se modifique ou se altere desde o mais íntimo das suas fibras de carne, pedra ou sangue. Que basta dizer «Abre-te Sésamo socialista!» para que, pelo mero poder duma fórmula fervorosa, o Mundo se parta em dois, as rochas se fendam e a montanha se abra para dar à luz abundância, alegria, riqueza, fraternidade.
 
Sim, vi a minha revolução, o meu Abril com espanto, o fascínio e, no fundo, a desconfiança alargada com que vira em Maio de 68, na praça Kléber, em Estrasburgo, os estudantes rirem-se, nas barbas da polícia degaulista e decretarem estáticos e vitoriosos, que o Poder burguês se fora de vez e que a Nova Jerusalém começara ali – e no «quartier latin» de Lutécia… Via-se com amargura e angústia, percebendo que uma excessivamente longa privação do direito à palavra (48 anos de Censura) tinha induzido os nossos revolucionários no erro de crerem que basta ter o Verbo para que a realidade se modifique, que basta falar a um copo com água para que esta ferva, que basta discursar eloquentemente a um Povo para que este se regenere. E esta ilusão durou muito tempo, foi a ilusão de quase todos, excepto da direita, que se quedou, quieta e calada, a fazer-se morta, a fingir que nunca existira, à espera do momento mais oportuno para voltar a pôr fim à orgia verbal.
 
E, no entanto, desde cedo alguns tinham dito que uma Revolução autêntica é um somatório simples de transformações básicas. Aí está, por exemplo, uma canção muito cantada desde 1974, que catalogava duma penada o-que-se-devia-fazer:
 
«Só há liberdade a sério quando houver
A paz e o pão
Habitação
saúde educação
só há liberdade a sério quando houver
liberdade de mudar e de decidir
quando pertencer ao povo o que o povo produzir» (4)
 
Fotografia de Alfredo Cunha
 
 
Simples, não era? Seria mesmo difícil definir com maior concisão a tarefa de todas as revoluções socialistas do nosso tempo, resumindo o essencial a fazer e não a dizer em palavras o que era ou devia poder ser uma Revolução Perfeita. A canção de Sérgio Godinho, então cantada de manhã à noite, parece porém não ter tido o efeito pedagógico que seria de esperar: o psicodrama verbal da revolução demagógica interessava muito mais a quase todos do que a modesta e imensa tarefa de pôr em prática o essencial, a paz, antes de mais (logo feita, com o termo imediato, das três guerras coloniais e os acordos de independências para a Guiné, Angola e Moçambique), depois o pão para todos, a habitação para toda a gente, mais a saúde, num país sem hospitais nem médicos, sem esquecer a participação efectiva dos governados no acto da governação, o fim do analfabetismo, um plano de trabalho que desse aos milhões de emigrados a hipótese de aqui voltarem, para aqui trabalharem com um mínimo de dignidade e orgulho… O programa da canção de Godinho era duma simplicidade dramática; os políticos preferiam a retórica excitante e vácua dos comícios, os grandes lances oratórios para o Zé Povinho ver, a barafunda da discussão académica, a proliferação das seitas de Messias nacionais, a volúpia de haver mil caminhos diferentes para o Paraíso socialista, a delícia de escrever nos jornais, gritar na Rádio e gesticular na Televisão que o Socialismo estava feito e só faltava agora começar a ser feliz.
 
Não me interessa aqui fazer o balanço desta revolução, inventariar o activo e o passivo duma revolução nascida sobretudo de treze anos de guerra colonial, despoletada por um exército que, cansado de perseguir um inimigo universal, se volta contra o poder civil que o mandou guerrear em África povos em luta por causas justas, e acaba por derrubar a ilegitimidade reinante, dando depois mais um passo, no sentido de questionar as premissas que, desde 1926, e sobretudo desde a institucionalização do regime salazarista em 1933 (aprovação plebiscitária da constituição do «Estado Novo») governavam um país à margem do sentido geral da comunidade da Europa, nomeadamente desde que, em 1945, a derrocada dos apoios fascistas tinham isolado no Mundo a experiência autoritária portuguesa, permitindo-lhe porém sobreviver, mais umas décadas, até que, finalmente, a usura dos combatentes tinha levado a abalar a base castrense do regime. Não, não é um exercício historiográfico que aqui quero fazer, mas tão-só uma reflexão marginal, digamos moralista, do que foi, para mim, cidadão expatriado em França, a nossa bizarra «Revolução dos Cravos»; também não me interessa portanto interrogar-me sobre a situação presente, os seus dramas, perspectivas e complexidades: deixo isso aos profissionais do comentário político. Contento-me, assim, em evocar a experiência pessoal de alguém que, céptico, ante o que se passava em casa, voltou a ela para melhor a observar o que ali se passava e que foi definido por Miguel Torga como uma «mentira» (5), encenada por dois impulsos antitéticos próprios
 
 
Fotografia de Alfredo Cunha
 
 
 
Dos convulsivos (6), uma revolução que humilha quem esperou por ela. O que me interessa é tão-só refletir a vivência do tempo, da esperança e da desilusão suscitados pelo espectáculo – poucas palavras seriam tão justas como esta para definir o sentido da nossa absurda mas útil revolução de 1974 – do nosso revolucionarismo ingénuo e às vezes puerilmente nulo, espécie de barafunda de aldeia de macacos como lhe chamou um romancista  (7).
 
 
Vista deste ângulo, a nossa generosa e fútil Revolução traz consigo temas utilíssimos de meditação e exemplo. Antes de mais, a esperada lição de que uma revolução, mesmo quando voluptuosamente vivida como festa da palavra, delira e murcha depressa quando a transferimos quase que inteiramente, como aqui se fez, para o plano do discurso verbal, oral e escrito, puramente demagógico, sem que logo se pretenda enraizá-la com medidas que, ainda que incómodas ou dolorosas, estão como o partir dos ovos está para a omeleta. Ignorá-lo é dissertar sobre a Lua sem olhar sequer pela janela o astro satélite do nosso. Nesta medida, a nossa Revolução, lírica e retórica, foi mais uma purga verbal do que uma pugna real dos nossos problemas, carências, exigências, urgências: como em 1820 ou em 1910, discursámos, não agimos, tomámos latinamente a palavra e a facilidade vistosa da palavra como a realidade de que a palavra fala. Os nossos revolucionários eram poetas, geralmente maus poetas, ou seja, crentes absolutos no valor encantatório do Verbo: falámos com eloquência, mas agimos com mediocridade confrangedora. Deixámos intacta a realidade tradicional do País, os seus alicerces financeiros, o seu entorpecido estilo antigo, as suas classes dominantes, os seus interesses, os seus defeitos e vícios sem uma beliscadura, poupando uma Direita que emigrou para o Brasil ou para Espanha (ou ficou cá dentro, sofredora mas calada, resignada, contando o tempo passado, à espera da sua vez de tornar ao proscénio) mas que pôde voltar logo que o delírio caiu, devorado por si mesmo como o fabuloso catoblepas de Flaubert.
 
 
Fotografia de Alfredo Cunha
 
 
 
Mas não, também não é disto que eu queria falar, mas tão-só dos dez anos que passaram como uma tarde de quebranto de Rip van Winkle, da inscrição fascista ainda coberta de cal na casa da curva, apagada apesar de tudo, porque é fácil cortar a erva que cresceu, mas ninguém consegue tomar banho no rio que passou desde 1974 e já não volta mais, já não sobe até à sua nascente. A nossa Restauração contentou-se com pouco, já que, tendo tido tudo sempre, não podia exigir a devolução integral do país que perdera, que deitara a perder, do qual fugira, como o infeliz rei que, tomando o caminho para Varennes, é cada vez menos rei à medida que os minutos passam. Não, o que eu queria lembrar era o crescimento da erva, o invisível crescimento da erva, as horas que se escoam como água na ampulheta das esperanças, a Revolução que se fatiga, a garganta seca, os olhos cegos à força de querer ver tudo mudado pelo simples milagre de olhar intensamente o granito dos muros antigos.
 
E um verso de Guillevic me veio ao espírito: «Ça rêve bougrement. Sim, sonhamos doidamente, excessivamente, de olhos intensamente abertos para a luz que está do lado de lá das horas, como se fosse possível fazer (e viver em) duas Histórias simultâneas: a História real, aquela que é depois contada nos compêndios das gerações futuras, e a outra, a Super-História, aquela que é só imaginada, messianicamente projectada, aquela em que os falsos Messias e os falsos deuses são tão verdadeiros como os verdadeiros tiranos e os autênticos príncipes que nos governam. Um sestro peninsular leva-nos a querer viver as duas ao mesmo tempo: D. Quixote é também Alonso Quijano, a loucura do primeiro vive na vida real do segundo, o primeiro arrasta consigo o segundo – e só à hora da morte o primeiro se apaga para quem morra, não o idealista minoritário, mas o pobre e quotidiano fidalgote manchego igual a toda a gente, para que possa continuar vivo , impune e fugitivo, o verdadeiro D. Quixote, seguido talvez por aquele que, segundo Kafka, o arrancou de si mesmo como se fosse um demónio, para depois, movido por culpa ou piedade, o seguir sempre. Se a realidade é esquálida, há que recomeçar a realidade, tomá-la como esboço imperfeito do que devia ser feito. A História é como o mar de Valéry, «toujours recommencée». O 25 de Abril também: os erros e o sonho apodrecido ficam para trás, o seu sonho e a sua esperança estão – ainda – à nossa frente.
 
 
 
 
Notas
(1)  Sophia de Mello Breyner, poema «25 de Abril».
(2)  O Salto, filme do francês Chistian de Chalonge (1967), retratava a condição dos portugueses que tinham saltado o «muro» para irem trabalhar para França, no meio da hostilidade ou da indiferença dos seus hóspedes. Cf. O interessante artigo que Alain Mercier publicou, na altura, em Le Monde, de 2/XII/1967.
(3)  Artigo 9.º da Constituição portuguesa (1976): «São tarefas fundamentais do Estado: a) Garantir a independência nacional (…); b) Assegurar a participação organizada do povo na resolução dos problemas nacionais (…); c) Socializar os meios de produção e a riqueza, através das formas adequadas às características do presente período histórico, criar as condições que permitam promover o bem-estar e a qualidade de vida do povo, especialmente das classes trabalhadoras, e abolir a exploração e a opressão do homem pelo homem».
(4)  Sérgio Godinho, «Liberdade» (poema e canção)
(5)  Escreve Miguel Torga no seu Diário, vol. XII (Coimbra, 1977): «O delírio colectivo foi longe demais. O dilaceramento da pátria ultrapassou aquele limite de perdição para além do qual só resta o abismo. De todos os lados o clamor é o mesmo: morra Sansão e quantos aqui estão. A tendência suicida que dantes era de poucos, agora parece generalizada. E o povo, com o instinto de conservação intacto, protesta. Ludibriado, mais uma vez, na sua boa-fé por demagogos de todos os quadrantes, reage como pode, numa réplica desentendida aos cânones do novo compromisso social. (…) Virando assim costas desassombradamente aos valores falsificados que lhes quis inculcar uma revolução de mentira, acaba por restaurar em nós a esperança numa revolução de verdade» (pp. 184-185).
(6)  «Os estrebuchões que a pátria dá no hospital revolucionário a que a reduziram! Necessitada de uma clarividente terapêutica, civilizadora, ninguém esperava vê-la de pé para a mão transformada de norte a sul num desesperado corpo convulsivo. Mas somos assim: ou tudo, ou nada. Ou amodorroados numa sonolência de morte, ou possuídos de uma agitação frenética. Ou catalépticos ou atacados de doença de São Vito (…) um manicómio territorial onde enfermeiros improvisados e atreviso submetem nove milhões de concidadãos a um electrochoque aberrante e desumano.» (Diário XII, pp. 104-105.)
(7)  Almeida Faria, Lusitânia (romance Lisboa, 1980).
 
 
 
João Medina
 
        


                                                                                       
 

 

 

 

 

 




[1] Texto publicado na nossa História de Portugal desde os tempos pré-históricos aos nossos Dias, vol. XIV (”Portugal democrático”), Amadora, Ediclube, 1993, pp. 164-174 (com o título de “O meu 25 de Abril”), ilustr.
 
[2] Este texto foi escrito para publicação em França: texto saído, bastante encurtado, na revista parisiense Europe, n.º 660, Abril de 1984 (número dedicado à literatura portuguesa).
 

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