No seu livro A Civilização do Espectáculo, Mario Vargas
Llosa disseca e arrasa o nosso tempo por ter destruído uma cultura milenar
construída graças ao contributo de grandes espíritos no mundo das ideias, da
literatura e das artes em geral. O retrato da sociedade contemporânea por ele
elaborado é realista. O êxito obtido pela obra entre os leitores de muitos
países ocidentais, reiterado por uma franja considerável da crítica, confirma a
acuidade do diagnóstico e a oportunidade da invectiva do Nobel romancista e
ensaísta. E, todavia, o autor labora num antigo equívoco em torno do conceito
de cultura que, sem afectar o retrato do estado a que chegou a cultura
contemporânea, confunde o leitor acerca das eventuais causas da situação presente,
o que naturalmente conduz a deficientes juízos relativamente aos remédios a
aplicar.
Vargas Llosa usa um dos
conceitos tradicionais de cultura mais comuns no campo das humanidades, letras
e artes no mundo ocidental, algo perfeitamente legítimo por se ter generalizado.
O problema surge apenas quando o autor, ao reconhecer que actualmente o termo é
usado também numa outra acepção, rejeita esse segundo sentido, hoje muito
comum, adoptado e divulgado pelas ciências sociais, sobretudo a antropologia, segundo
o qual ‘cultura’ é o produto da actividade humana nas suas diversas
manifestações.
Não é esta a ocasião
para historiar a bifurcação do termo nos dois sentidos hoje coexistentes.
Lembrarei apenas que originalmente ‘cultura’ significava a intervenção humana
sobre a natureza, transformando-a. Os latinos cunharam-no nesse sentido. Cultivava-se a natureza nas suas várias
áreas e por isso havia a agricultura,
a horticultura, a vinicultura, a apicultura. A dado momento, ter-se-á começado a falar em ‘alta’ e ‘baixa’ cultura. Ainda cresci conhecendo o termo haute culture no mundo francês, que os
portugueses traduziram, por exemplo, na criação do antigo Instituto de Alta
Cultura, hoje Instituto Camões. Nunca chegou a falar-se muito de ‘baixa cultura’
e, por isso, aos poucos foi deixando de ser necessário mencionar ‘alta
cultura’, passando a usar-se simplesmente ‘cultura’.
No século XIX, no mundo
anglo-americano, os antropólogos recuperaram o sentido original do vocábulo e passaram
a classificar de ‘cultura’ todas as manifestações da acção humana na
transformação da natureza. Entretanto, a palavra havia adquirido, mesmo entre
os autores ingleses, mas especificamente no mundo das letras e humanidades
(veja-se T. S. Elliot, que Vargas Llosa cita profusamente), um estatuto
privilegiado, um posto no topo da actividade humana, uma espécie de
aristocracia do gosto, na escala dos valores da sociedade ocidental. Até há
poucas décadas, ninguém ousava contestar a intocabilidade do lugar pertencente
à (alta) cultura.
Entretanto, o mundo
modernizou-se. Os valores apregoados e defendidos pela chamada civilização
ocidental foram postos em causa, a começar pela autoridade divina da monarquia.
Vieram as repúblicas e as sociedades civis que foram progressivamente fazendo
ruir pressupostos antigos que muitas vezes assentavam em preconceitos
classistas com base em discutíveis escalas de gosto. Por mais louváveis que
fossem, fundavam-se em preferências, em valores não justificáveis empírica e racionalmente.
Por outro lado, foi-se vulgarizando a ênfase das ciências sociais posta no
facto de também existir ‘cultura’ noutros grupos humanos não-ocidentais e, a
partir dos dois extremos, foi-se aos poucos (inclusivamente com a anuência de
vozes da ‘alta cultura’) gerando um consenso que provocou o regresso ao sentido
original, latino, do termo.
Não é, porém, nessa
alteração semântica que deveria Mario Vargas Llosa assentar a sua crítica ao
estado de suposta degradação da cultura no mundo moderno. O termo simplesmente
acompanhou uma profunda mundança de atitude relativamente ao estatuto
privilegiado ocupado pelos valores preferidos pelo topo da pirâmide social na
escala tradicional de valores. A horizontalidade e a consequente democratização
idealizada pelo Ocidente (aliás, uma ideia tanto cristã quanto marxista)
retiraram a base em que assentava esse estatuto privilegiado, daí resultando a
instauração dum processo de democratização do gosto. Por outro lado, passou-se
a aceitar como naturalíssimo que Cristiano Ronaldo e Messi sejam os melhores do
mundo; que Steve Jobs e Bill Gates sejam os maiores da informática; que Brad
Pitts e Meryl Streep mereçam ocupar o topo do estrelato cinematográfico;
todavia não se aceita que haja escalas de qualidade a impedirem-nos de colocar
Beethoven ao lado de Bruce Springstein, ou de se por Goethe em pé de igualdade
com poetas que hoje se autopublicam em blogues. E no entanto não faltam
teóricos do pós-modernismo a não reconhecerem essa duplicidade de critérios.
Tudo isso é real, tudo
isso existe, mas não foi por causa da mudança de sentido do termo ‘cultura’,
como Vargas Llosa supõe. Na verdade, se repararmos bem, continuam a existir por
todo o Ocidente (falo apenas do mundo que conheço melhor) cultivadores em
altíssimo grau das letras, artes e ideias da cultura tradicional. Hoje, com a
expansão sem precedentes dos meios universitários, isso é cada vez mais uma
realidade. O que acontece também é que ocorreu em simultâneo uma explosão na
base da pirâmide, sobretudo com o advento da Internet: qualquer um tem agora acesso
a tudo e escolhe o que prefere, por oposição ao que antes sucedia quando os bens
da (alta) cultura só eram acessíveis a um grupo privilegiado. Assim, não é a
alteração semântica do conceito de cultura a responsável, mas o facto de todas
as facetas da cultura humana se terem tornado de repente acessíveis a uma
maioria da população susceptível de optar por aquilo que está mais ao alcance
do nível de desenvolvimento das suas preferências.
Não tenho, obviamente,
nenhuma solução prática contra a banalização, o nivelamento por baixo do gosto.
Posso apenas continuar a escolher, chamar a atenção para, e a recomendar a quem
quiser ouvir-me, a riqueza, a elevação, a inteligência, a criatividade de determinadas
manifestações humanas nas áreas que melhor conheço (e são poucas, pois cada vez
as há em maior abundância), mas não posso pretender impô-las, nem atribuir-lhes
valor exclusivo, como faziam antigamente as figuras que exerciam por vezes uma
ditadura do (seu) gosto.
Terminarei com uma nota
final: no passado, os agentes da ‘alta’ cultura em regra não se preocupavam com
o gosto das camadas desfavorecidas da população. Elas eram ignorantes e sem
capacidade discriminatória. Hoje não é bem assim, pois muito mais público tem possibilidade
de acesso às variadas formas de criatividade humana. O peso demográfico
resultante desse fenómeno garante-lhe o impacto económico, que antigamente era
utilizado apenas em favor da (alta) cultura. Hoje desapareceram os constrangimentos
que outrora levavam a apoiar-se apenas um determinado tipo de gosto.
Porque o espaço falta, rematarei
citando uma pergunta no capítulo final do, aliás excelente, livro de Vargas
Llosa: “porque é que a cultura dentro da qual nos movemos se foi banalizando
até se transformar em muitos casos num pálido arremedo do que os nossos pais e
avós entendiam por essa palavra?” (p. 193). A culpa não pode certamente encopntrar-se
na alteração do sentido do termo ‘cultura’, ou do seu uso.
Não há, contudo, nenhuma
razão para deixarmos de apreciar, defender, estimular e promover os altos
valores criados pela cultura ocidental. Há, porém, que ter a consciência de não
estarmos sós no mundo. Os cultivadores da ‘alta’ cultura têm tanto direito a
ela como os outros à sua. Em muitíssimos casos, têm mesmo razões de sobra para nisso
se empenharem (Vargas Llosa fá-lo magnificamente e eu, à minha pequena escala, vou
fazendo o pouco que posso). O objectivo, porém, não se alcança pugnando pelo
retorno do antigo conceito de cultura
(os termos, recorde-se, apenas registam as realidades para que remetem), mas
intervindo e lutando para alterar a
própria cultura.
Onésimo
Teotónio Almeida
(publicado originalmente no JL - Jornal de Letras)
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