sexta-feira, 17 de abril de 2015

Vargas Llosa e o equívoco acerca do termo «cultura».





 

 

No seu livro A Civilização do Espectáculo, Mario Vargas Llosa disseca e arrasa o nosso tempo por ter destruído uma cultura milenar construída graças ao contributo de grandes espíritos no mundo das ideias, da literatura e das artes em geral. O retrato da sociedade contemporânea por ele elaborado é realista. O êxito obtido pela obra entre os leitores de muitos países ocidentais, reiterado por uma franja considerável da crítica, confirma a acuidade do diagnóstico e a oportunidade da invectiva do Nobel romancista e ensaísta. E, todavia, o autor labora num antigo equívoco em torno do conceito de cultura que, sem afectar o retrato do estado a que chegou a cultura contemporânea, confunde o leitor acerca das eventuais causas da situação presente, o que naturalmente conduz a deficientes juízos relativamente aos remédios a aplicar.

Vargas Llosa usa um dos conceitos tradicionais de cultura mais comuns no campo das humanidades, letras e artes no mundo ocidental, algo perfeitamente legítimo por se ter generalizado. O problema surge apenas quando o autor, ao reconhecer que actualmente o termo é usado também numa outra acepção, rejeita esse segundo sentido, hoje muito comum, adoptado e divulgado pelas ciências sociais, sobretudo a antropologia, segundo o qual ‘cultura’ é o produto da actividade humana nas suas diversas manifestações.

Não é esta a ocasião para historiar a bifurcação do termo nos dois sentidos hoje coexistentes. Lembrarei apenas que originalmente ‘cultura’ significava a intervenção humana sobre a natureza, transformando-a. Os latinos cunharam-no nesse sentido. Cultivava-se a natureza nas suas várias áreas e por isso havia a agricultura, a horticultura, a vinicultura, a apicultura. A dado momento, ter-se-á começado a falar em ‘alta’ e ‘baixa’ cultura. Ainda cresci conhecendo o termo haute culture no mundo francês, que os portugueses traduziram, por exemplo, na criação do antigo Instituto de Alta Cultura, hoje Instituto Camões. Nunca chegou a falar-se muito de ‘baixa cultura’ e, por isso, aos poucos foi deixando de ser necessário mencionar ‘alta cultura’, passando a usar-se simplesmente ‘cultura’.

No século XIX, no mundo anglo-americano, os antropólogos recuperaram o sentido original do vocábulo e passaram a classificar de ‘cultura’ todas as manifestações da acção humana na transformação da natureza. Entretanto, a palavra havia adquirido, mesmo entre os autores ingleses, mas especificamente no mundo das letras e humanidades (veja-se T. S. Elliot, que Vargas Llosa cita profusamente), um estatuto privilegiado, um posto no topo da actividade humana, uma espécie de aristocracia do gosto, na escala dos valores da sociedade ocidental. Até há poucas décadas, ninguém ousava contestar a intocabilidade do lugar pertencente à (alta) cultura.

Entretanto, o mundo modernizou-se. Os valores apregoados e defendidos pela chamada civilização ocidental foram postos em causa, a começar pela autoridade divina da monarquia. Vieram as repúblicas e as sociedades civis que foram progressivamente fazendo ruir pressupostos antigos que muitas vezes assentavam em preconceitos classistas com base em discutíveis escalas de gosto. Por mais louváveis que fossem, fundavam-se em preferências, em valores não justificáveis empírica e racionalmente. Por outro lado, foi-se vulgarizando a ênfase das ciências sociais posta no facto de também existir ‘cultura’ noutros grupos humanos não-ocidentais e, a partir dos dois extremos, foi-se aos poucos (inclusivamente com a anuência de vozes da ‘alta cultura’) gerando um consenso que provocou o regresso ao sentido original, latino, do termo.

Não é, porém, nessa alteração semântica que deveria Mario Vargas Llosa assentar a sua crítica ao estado de suposta degradação da cultura no mundo moderno. O termo simplesmente acompanhou uma profunda mundança de atitude relativamente ao estatuto privilegiado ocupado pelos valores preferidos pelo topo da pirâmide social na escala tradicional de valores. A horizontalidade e a consequente democratização idealizada pelo Ocidente (aliás, uma ideia tanto cristã quanto marxista) retiraram a base em que assentava esse estatuto privilegiado, daí resultando a instauração dum processo de democratização do gosto. Por outro lado, passou-se a aceitar como naturalíssimo que Cristiano Ronaldo e Messi sejam os melhores do mundo; que Steve Jobs e Bill Gates sejam os maiores da informática; que Brad Pitts e Meryl Streep mereçam ocupar o topo do estrelato cinematográfico; todavia não se aceita que haja escalas de qualidade a impedirem-nos de colocar Beethoven ao lado de Bruce Springstein, ou de se por Goethe em pé de igualdade com poetas que hoje se autopublicam em blogues. E no entanto não faltam teóricos do pós-modernismo a não reconhecerem essa duplicidade de critérios.

Tudo isso é real, tudo isso existe, mas não foi por causa da mudança de sentido do termo ‘cultura’, como Vargas Llosa supõe. Na verdade, se repararmos bem, continuam a existir por todo o Ocidente (falo apenas do mundo que conheço melhor) cultivadores em altíssimo grau das letras, artes e ideias da cultura tradicional. Hoje, com a expansão sem precedentes dos meios universitários, isso é cada vez mais uma realidade. O que acontece também é que ocorreu em simultâneo uma explosão na base da pirâmide, sobretudo com o advento da Internet: qualquer um tem agora acesso a tudo e escolhe o que prefere, por oposição ao que antes sucedia quando os bens da (alta) cultura só eram acessíveis a um grupo privilegiado. Assim, não é a alteração semântica do conceito de cultura a responsável, mas o facto de todas as facetas da cultura humana se terem tornado de repente acessíveis a uma maioria da população susceptível de optar por aquilo que está mais ao alcance do nível de desenvolvimento das suas preferências.

Não tenho, obviamente, nenhuma solução prática contra a banalização, o nivelamento por baixo do gosto. Posso apenas continuar a escolher, chamar a atenção para, e a recomendar a quem quiser ouvir-me, a riqueza, a elevação, a inteligência, a criatividade de determinadas manifestações humanas nas áreas que melhor conheço (e são poucas, pois cada vez as há em maior abundância), mas não posso pretender impô-las, nem atribuir-lhes valor exclusivo, como faziam antigamente as figuras que exerciam por vezes uma ditadura do (seu) gosto.

Terminarei com uma nota final: no passado, os agentes da ‘alta’ cultura em regra não se preocupavam com o gosto das camadas desfavorecidas da população. Elas eram ignorantes e sem capacidade discriminatória. Hoje não é bem assim, pois muito mais público tem possibilidade de acesso às variadas formas de criatividade humana. O peso demográfico resultante desse fenómeno garante-lhe o impacto económico, que antigamente era utilizado apenas em favor da (alta) cultura. Hoje desapareceram os constrangimentos que outrora levavam a apoiar-se apenas um determinado tipo de gosto.

Porque o espaço falta, rematarei citando uma pergunta no capítulo final do, aliás excelente, livro de Vargas Llosa: “porque é que a cultura dentro da qual nos movemos se foi banalizando até se transformar em muitos casos num pálido arremedo do que os nossos pais e avós entendiam por essa palavra?” (p. 193). A culpa não pode certamente encopntrar-se na alteração do sentido do termo ‘cultura’, ou do seu uso.

Não há, contudo, nenhuma razão para deixarmos de apreciar, defender, estimular e promover os altos valores criados pela cultura ocidental. Há, porém, que ter a consciência de não estarmos sós no mundo. Os cultivadores da ‘alta’ cultura têm tanto direito a ela como os outros à sua. Em muitíssimos casos, têm mesmo razões de sobra para nisso se empenharem (Vargas Llosa fá-lo magnificamente e eu, à minha pequena escala, vou fazendo o pouco que posso). O objectivo, porém, não se alcança pugnando pelo retorno do antigo conceito de cultura (os termos, recorde-se, apenas registam as realidades para que remetem), mas intervindo e lutando para alterar a própria cultura.

 

Onésimo Teotónio Almeida
 
(publicado originalmente no JL - Jornal de Letras)

 

 

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