impulso!
100 discos de jazz para cativar os leigos e vencer os cépticos !
# 22 - CHARLIE PARKER
Sobre
Charlie Parker se puseram de acordo deuses e demónios, infundindo-lhe dons e danações
em igual proporção.
Charlie
Parker, alcunhado de Bird ou Yardbird numa digressão: o carro em que seguia
atropelou uma galinha e ele recolheu a ave moribunda afim de jantá-la – em
tradução factual, melhor do que literal, diga-se portanto Bird como quem diz
“pilha-galinhas”. Stanley Crouch, um dos seus mais lúcidos biógrafos,
sintetiza: “Parker era ao mesmo tempo a aristocracia e a ralé. O soberano
criador de uma vital e empolgante estrutura vernacular do jazz e um homem
anárquico, de apetites nefastos.” Diz-se dele que era capaz de entreter uma
conversa erudita sobre Hindemith, que solfejava de cor, como de terminá-la mendigando
dinheiro para comprar droga. Miles Davis, também é sumário e, como de costume,
pouco macio: “Era um músico genial, mas foi também o dos mais degradantes e
egoístas motherfuckers que viveu
neste mundo.” Ao que passa a expor como esteve dias impedido de actuar, quando Parker
confiscou o seu único fato, que lhe ficava ridiculamente curto, depois de ter
metido a roupa no prego para satisfazer a exigência do vezo. Cliente fiel e de
crédito, a ponto de os acordes de abertura de “Parker’s Mood” serem o santo e a
senha entre os dealers de Los Angeles. A meteórica e truculenta vida de Bird, vulnerável
a todos os ingredientes da tragédia, convida os corações caritativos ao
melodrama e à vitimização.
Todavia
é difícil inscrever Charlie Parker no habitual martirológio do artista maldito
que, desde o “caso Van Gogh”, corrobora a moralidade anti-institucional. Tendo
sido um rifte a quebrar o jazz em dois continentes, o anterior e o posterior ao
conciso intervalo de 34 anos da sua existência, reconhecimento e consagração abonaram-no
ainda em vida. Amizades, apoios, afeições não lhe faltaram, mesmo nos piores
transes e, no seu apogeu, sobrou-lhe o aplauso do público e da crítica,
rendidos após os anos iniciais de estupefacção.
Referir
o génio em relação a Charlie Parker é relativo. Aos 16 anos, os primeiros
toques que deu comprovaram-no como um saxofonista inepto. Mas em Dezembro de
1939, acabava Hitler de exarar o preâmbulo do fim da Europa com a aniquilação
da Polónia, e no outro lado do atlântico Bird era acometido por uma epifania
durante a interpretação do tema “Cherokee”: se usasse como linha melódica os
intervalos mais altos de um acorde, conseguia extrair do saxofone a sonoridade
que tinha na cabeça. Esta técnica propiciava-lhe também imprimir ao instrumento
de sopro a velocidade que Art Tatum soltava no piano.
Os
três anos seguintes Parker despendeu-os a pesquisar e a refinar o vislumbre,
importunando toda a gente que com ele tocava com os seus acordes bizarros – o
bebop. Esta insólita espécie de jazz que hoje é uma evidência, tecida por uma turma
de audazes onde pontificava Bird, se a conseguirmos apreciar com os ouvidos dos
GI que em 1945 regressavam a casa, sequiosos de normalidade e de sexo, ou seja,
dos românticos coitos no banco de trás do automóvel depois de um excitante pé
de swing, o que ouviremos é uma música abissal e desestabilizadora. Porque fidelíssimo
ao espirito do seu tempo, o bebop espelhava, precisamente, uma sinceridade
emocional que boa parte da América pós-guerra – e pré-guerra da Coreia, mais da
subsequente Fria – desejava sublimar.
Resultou
do obstinado tirocínio que aos 25 anos Bird extasiava o mundo com o seu
virtuosismo. Talento? Obviamente inato; trabalho? Intensivo e obsessivo. Ou
seja, nunca foi tão certa a sentença de que o génio é 1% inspiração e 99%
transpiração.
Charlie
Parker arrecadaria os benefícios da veneração ou da compaixão, se a eles se
tivesse prestado. Em 1949, por exemplo, inaugurou-se o Birdland – nem antes,
nem depois, na história do jazz voltaria um clube a vincular-se nominalmente a
um músico. Quiseram explorar a sua fama? Também… Mas Parker mostrou-se sempre
tão adverso à pontualidade e à assiduidade, de tal modo intratável e abusivo
que inviabilizou a sua contratação regular. Se foi vítima daquilo que se
costuma designar por “sistema”, não o terá sido menos da sua tibiez ou do seu livre
arbítrio. O fatalista, porém, encontrará nele o perfeito exemplo para afirmar
que sem a pulsão autodestrutiva não há como inflamar a urgência criativa.
A
discografia coeva de Charlie Parker é um pouco desligada. Naquela época o LP
ainda não tinha a força de um conceito, no melhor dos casos seria um agregado
de composições alinhadas como nos concertos. Juntem-se ao descuido editorial as
idiossincrasias do saxofonista a quem tanto se lhe dava a gravação em estúdio;
dinheiro ganhava-o com os gigs na rua
52 ou “na estrada”; os discos valiam pela remuneração adicional, equivalente às
horas extraordinárias de um empregado, vexada pelos misteriosos meandros dos
direitos autorais, cujo pagamento era fatal que desiludia. Mesmo assim entre
1945 e 48 prodigalizou 13 audições para a Savoy e a Dial, mais outras 20 na
Verve, entre 1948 e 54.
Fosse Bird menos
buliçoso e teria encarado tais sessões como perfunctórias, mas como não sabia
tocar sem fabricar novos recortes melódicos, ocupou as salas insonorizadas como
se fossem uma oficina de risco criativo, inventando, experimentando e
calibrando as composições. Nunca duas vezes Bird se repetiu – isto ouve-se nas
gravações.
Charlie Parker, Jazz at
Massey Hall
1953 (2009)
Jazz Track -
#957
Charlie Parker
(saxofone alto), Dizzy Gillespie (trompete), Bud Powell (piano), Charles Mingus
(contrabaixo), Max Roach (bateria)
As
colectâneas “The complete Savoy and Dial studio recordings 1944-1948” (8 CDs e
531 minutos de comprimento) e “Bird – The Complete Charlie Parker on Verve” (10
CDs, 619 minutos) valem todas as abstinências que se fizerem para adquiri-las,
havendo amor para tamanho compromisso – seis mesitos sem os 10 cigarros
diários… Nestes volumes está tudo o que aconteceu em estúdio. Na primeira
jornada, no dia 26 de Novembro de 1946, é quase palpável a estranheza e o
noviciado dos músicos em torno de “Ko-ko”, repetindo takes daquele que, provavelmente, terá sido o tema sine qua non do bebop. A sessão de 29 de
Julho de 1946, ocorrida em Los Angeles é pungente; mortificado pela ressaca, Parker
acaba por render uma dolorosa versão de “Lover Man” (acusaria mais tarde o produtor
de inconfidência, por tê-la editado). Disco a disco, mais do que escutar,
nestas colecções revive-se a música de Bird como um organismo que eclode no
próprio acto da sua criação.
Mas
há maneira de usufruir a arte de Charlie Parker sem perigo de insolvência.
Várias vozes designam a actuação no Massey Hall de Toronto, na noite de 15 de
Maio de 1953 como o concerto do século. A abundância de pormenores e anedotas
acerca do evento prestou-se a que lhe fosse dedicado um livro: “Quintet of the
year” de Geoffrey Haydon. Chovia a cântaros e a televisão transmitia em directo
um combate de boxe com o implacável Rocky Marciano (agarrados à pantalha, Bird
e Gillespie retardaram bastante a subida ao palco), de modo que dos 2.500
lugares da sala só 700 estavam ocupados. Foi Charles Mingus, com um gravador
portátil, quem registou a função e, foi a sua editora, a minúscula Debut, que
prensou a primeira edição. Detalhe faceto: para não melindrar direitos
contratuais, na capa do LP chapa-se um tal de Charlie “Chan” no saxofone alto
(das várias edições subsequentes, esta será a mais escrupulosa).
Assim
sucedeu que num ambiente espectral e tépido, cinco deuses do jazz, na vez única
em que todos se juntaram, cada qual no expoente do seu elã, se entenderam entre
si como num simpósio no Olimpo, tornando inequívoca a revolução do bebop. Se
existir esse fenómeno da perfeição, ele terá descido à terra naquela noite.
José Navarro de Andrade
Mais um excelente texto que torna uma leiga numa aprendiz curiosa. Parabéns!!
ResponderEliminarEste Bird, bem na realidade este toda a gente conhece.
ResponderEliminarPor isso vou publicar lá para a noitinha a BSO que todos conhecemos.
Até logo.
Mis um texto de antologia.Muito bom.Lembro o filme que sobre ele fez o Clint-Bird.Sobre este Charlie pode ser dito que quase todos o conhecem e "quase ninguém" o ouviu.Todos o adoram e poucos o deixariam aproximar-se da familia.Todos o lembram e quase todos não o quereriam de volta.O inicio do seu texto é esclarecedor.
ResponderEliminarObrigado, amigos.
ResponderEliminar