Muitos livros poderão explicar este
livro. É da fábrica da nostalgia,
título recente de Douwe Draaisma, que se alimenta a nossa atracção por este
epistolário íntimo. Da nossa retromania,
como chamou Simon Reynolds ao vício da cultura de massas em voltar
obsessivamente ao seu passado. Por estes dias, sairá um outro livro que, a
juntar a tantas obras sobre o tema, aborda o modo como a nostalgia se tornou
uma indústria do nosso tempo, o tempo do capitalismo tão veloz e tão voraz como um Volkswagen aldrabado. Consumed Nostalgia. Memory in the Age of Fast Capitalism, de Gary Cross.
A
nostalgia já não é o que era, assim se anuncia o livro de Gary Cross.
Enquanto no passado a memória se baseava em costumes e práticas sociais ou familiares
que iam sendo transmitidas de geração em geração, agora funda-se numa
comunidade de pessoas que partilham um traço de união: terem nascido e crescido a
consumir os mesmos objectos. Daí o poder evocativo de marcas desaparecidas, as
coisas «do nosso tempo». Dos objectos vendidos nas lojas d’A Vida Portuguesa aos livros da Caderneta
de Cromos, de Nuno Markl, a memória é, acima de tudo, uma recordação colectiva dos objectos e das marcas que «fizeram» a nossa infância (e que, num
certo sentido, a democratizaram e nivelaram socialmente).
O fascínio pela ephemera nasce daqui, em parte. Mas só em parte. Há também uma
pulsão voyeurista em mergulhar na vida dos outros. Sobretudo quando sejam
comuns e vulgares. Quando nas vidas alheias nada exista de excepcional, a não
ser o mero facto de terem sido vividas. Nas feiras de velharias, os álbuns
de fotografias são hoje disputados com avidez, tornaram-se objecto de culto. Há
pouco, saiu em França um livro curioso, Les gens dans l’enveloppe, escrito por Isabelle Monnin e com músicas de Alex
Beaupain, num CD que acompanha a obra. Em Junho de 2012, a autora comprou na
Internet um lote de 250 fotografias. Gente anónima, uma família desconhecida. A
partir das imagens, Isabelle Monnin decidiu construir histórias daquelas
pessoas – quando, para dizer a verdade, teria feito melhor se dedicasse o seu
esforço a saber quem eram…
Amorzinho, pois é dele que falamos, saiu
do arquivo de José Pacheco Pereira, onde repousava após ter sido praticamente resgatado do
lixo. Foi trazido à estampa graças ao paciente e competente trabalho de
transcrição e organização de Rita Maltez. Ao contrário do livro de Monnin, aqui
nada existe de ficcional ou romanceado, é tudo vulgaríssimo. Encantadoramente banal. Correspondência trocada por um casal de namorados, Maria de Lourdes
e Alfredo, entre 1934 a 1943. Está lá tudo o que de mais íntimo existiu na vida
de duas pessoas cujo anonimato, com louvável sentido ético, foi devidamente
respeitado. Está lá tudo: os jogos e mecanismos da sedução, o dia-a-dia de um tempo lento
e embaciado, a visão do mundo de um empregado de escritório e de uma costureira, sua namorada
e, depois, mulher. É espantoso ver como o salazarismo, a «política» ou o
«mundo» estão ausentes desta correspondência, mas ao mesmo tempo encontram-se
presentes em cada uma das suas linhas. Está lá tudo, na verdade. Um casal e o
seu tempo. Depois ela morreu, e ele voltou a casar. Ao que se sabe, também já
morreu. Por certo, não imaginariam ambos que as suas cartas, em que se tratavam
por «meu queridinho», «minha pretinha» ou «Querida Carocha», seriam publicadas
um dia, em livro, e que esse livro seria um dos títulos mais singulares e
originais deste ano literário. Muito próprio para os que navegam em cálidas águas twee, mas não só. Ridículo e delicodoce?
Sem dúvida – e nem sequer vale a pena citar o estafado dito de Pessoa. O que vale a
pena, e muito, é caminhar por este Amorzinho dentro, que é volume
multiusos: à superfície, o vulgar encontro de um homem e de uma mulher; depois, uma
ilustração bem expressiva das artes de amar pequeno-burguesas nos alvores do
Estado Novo; finalmente, e indo ao que mais interessa, dois seres humanos que
existiram à face da Terra, de onde já desapareceram. Regressaram involuntariamente ao mundo devido a
um facto tão simples como este: durante anos, trocaram centenas de cartas entre si. Depois alguém as resgatou do lixo e com elas fez um livro. E agora é como se as tivessem escrito (também) para nós. Agradecemo-lo, claro, pois somos muito curiosos. Sobretudo pela vida dos outros, que são passado. No presente estamos vivos, mas ninguém nos escreve assim.
António Araújo
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