sábado, 3 de outubro de 2015

Dia de reflexão.

 
 


         Muitos livros poderão explicar este livro. É da fábrica da nostalgia, título recente de Douwe Draaisma, que se alimenta a nossa atracção por este epistolário íntimo. Da nossa retromania, como chamou Simon Reynolds ao vício da cultura de massas em voltar obsessivamente ao seu passado. Por estes dias, sairá um outro livro que, a juntar a tantas obras sobre o tema, aborda o modo como a nostalgia se tornou uma indústria do nosso tempo, o tempo do capitalismo tão veloz e tão voraz como um Volkswagen aldrabado. Consumed Nostalgia. Memory in the Age of Fast Capitalism, de Gary Cross.
         A nostalgia já não é o que era, assim se anuncia o livro de Gary Cross. Enquanto no passado a memória se baseava em costumes e práticas sociais ou familiares que iam sendo transmitidas de geração em geração, agora funda-se numa comunidade de pessoas que partilham um traço de união: terem nascido e crescido a consumir os mesmos objectos. Daí o poder evocativo de marcas desaparecidas, as coisas «do nosso tempo». Dos objectos vendidos nas lojas d’A Vida Portuguesa aos livros da Caderneta de Cromos, de Nuno Markl, a memória é, acima de tudo, uma recordação colectiva dos objectos e das marcas que «fizeram» a nossa infância (e que, num certo sentido, a democratizaram e nivelaram socialmente).
         O fascínio pela ephemera nasce daqui, em parte. Mas só em parte. Há também uma pulsão voyeurista em mergulhar na vida dos outros. Sobretudo quando sejam comuns e vulgares. Quando nas vidas alheias nada exista de excepcional, a não ser o mero facto de terem sido vividas. Nas feiras de velharias, os álbuns de fotografias são hoje disputados com avidez, tornaram-se objecto de culto. Há pouco, saiu em França um livro curioso, Les gens dans l’enveloppe, escrito por Isabelle Monnin e com músicas de Alex Beaupain, num CD que acompanha a obra. Em Junho de 2012, a autora comprou na Internet um lote de 250 fotografias. Gente anónima, uma família desconhecida. A partir das imagens, Isabelle Monnin decidiu construir histórias daquelas pessoas – quando, para dizer a verdade, teria feito melhor se dedicasse o seu esforço a saber quem eram…
         Amorzinho, pois é dele que falamos, saiu do arquivo de José Pacheco Pereira, onde repousava após ter sido praticamente resgatado do lixo. Foi trazido à estampa graças ao paciente e competente trabalho de transcrição e organização de Rita Maltez. Ao contrário do livro de Monnin, aqui nada existe de ficcional ou romanceado, é tudo  vulgaríssimo. Encantadoramente banal. Correspondência trocada por um casal de namorados, Maria de Lourdes e Alfredo, entre 1934 a 1943. Está lá tudo o que de mais íntimo existiu na vida de duas pessoas cujo anonimato, com louvável sentido ético, foi devidamente respeitado. Está lá tudo: os jogos e mecanismos da sedução, o dia-a-dia de um tempo lento e embaciado, a visão do mundo de um empregado de escritório e de uma costureira, sua namorada e, depois, mulher. É espantoso ver como o salazarismo, a «política» ou o «mundo» estão ausentes desta correspondência, mas ao mesmo tempo encontram-se presentes em cada uma das suas linhas. Está lá tudo, na verdade. Um casal e o seu tempo. Depois ela morreu, e ele voltou a casar. Ao que se sabe, também já morreu. Por certo, não imaginariam ambos que as suas cartas, em que se tratavam por «meu queridinho», «minha pretinha» ou «Querida Carocha», seriam publicadas um dia, em livro, e que esse livro seria um dos títulos mais singulares e originais deste ano literário. Muito próprio para os que navegam em cálidas águas twee, mas não só. Ridículo e delicodoce? Sem dúvida – e nem sequer vale a pena citar o estafado dito de Pessoa. O que vale a pena, e muito, é caminhar por este  Amorzinho dentro, que é volume multiusos: à superfície, o vulgar encontro de um homem e de uma mulher; depois, uma ilustração bem expressiva das artes de amar pequeno-burguesas nos alvores do Estado Novo; finalmente, e indo ao que mais interessa, dois seres humanos que existiram à face da Terra, de onde já desapareceram. Regressaram involuntariamente ao mundo devido a um facto tão simples como este: durante anos, trocaram centenas de cartas entre si. Depois alguém as resgatou do lixo e com elas fez um livro. E agora é como se as tivessem escrito (também) para nós. Agradecemo-lo, claro, pois somos muito curiosos. Sobretudo pela vida dos outros, que são passado. No presente estamos vivos, mas ninguém nos escreve assim.
 
 
António Araújo
 
 
 
 
 



 

 

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