Notícia
Correio da Manhã de meados de Agosto: Sniper britânico salva pai e filho. E, em subtítulo: Matança travada na Síria.
Segundo
parece, em Julho um grupo de forças especiais das SAS infiltradas na região entrou
numa aldeia xiita e deparou com um cenário de execução colectiva de aldeões que
se recusavam a abjurar. Um homem e uma criança de cerca de oito anos, vendados
e ajoelhados, aprestavam-se para ser degolados. O sniper do grupo entrou em acção e, com três tiros certeiros, abateu
o carrasco e outros dois terroristas. Os restantes, em pânico, fugiram.
Eis
a nova versão do justiceiro que salva vidas matando. Com absoluta frieza e
temível precisão, o sniper não falha
um tiro. One shot, one kill. A
essência do sniper.
Ali,
naquela aldeia da Síria defrontaram-se, de um lado, a morte encenada como componente
do terror, do outro, a morte fulminante, como se do exercício da justiça divina
se tratasse.
Temos
visto o Estado Islâmico a encenar a morte como espectáculo e os media ocidentais a invocar, com horror,
a barbárie. Uma coreografia da morte que parece distante do espírito ocidental.
Aquelas execuções são-nos tão estranhas que nem se encontra a palavra certa
para lhe dar nome. Fala-se em decapitação. Mas as vítimas são degoladas.
No
entanto, não resistimos ao sempiterno fascínio que a morte suscita. A morte do
outro, bem entendido. Mas, no fundo, bem no fundo, mesmo que não o admitamos, o
fascínio da nossa própria morte.
O
espectáculo da morte tem sempre, por definição, espectadores. Quando um antigo
jornalista americano assassina ex-colegas, tem a frieza de filmar a execução.
Depois, o seu primeiro cuidado não é fugir ou ocultar provas. É colocar o vídeo
no Facebook para dar uma dimensão espectacular
à vingança. E nós podemos fingir que não estamos interessados, que é horrível,
que não é próprio para pessoas sensíveis. Mas a nossa sensibilidade é vencida
pelo fascínio com que contemplamos a cena.
Ora,
o sniper estraga o espectáculo. O
sniper não encena a morte porque esta ocorre de surpresa, out of nowhere. Não há transição entre a vida e a morte. Quando o
tiro é certeiro, a vida é simplesmente interrompida. Morre-se, e pronto. Clint
Eastwood realizou o filme mais visto do ano porque centrou a câmara no atirador
e não no espetáculo da morte violenta. Porque a vítima se limita a soçobrar,
caindo sobre o solo como um boneco inanimado. Quando o tiro é certeiro.
E
pretende-se que o tiro seja sempre certeiro. Idealmente, a morte é imediata,
higiénica, clínica. Sem sofrimento. O tiro perfeito, dizem os especialistas, é
aquele em que a bala entra pela boca e secciona as primeiras vértebras
cervicais. Praticamente não há efusão de sangue. Com este tiro certeiro, quem
morre não se angustia porque não compreende que vai morrer no momento seguinte.
Na verdade, não há momento seguinte.
Hesketh-Prichard
|
Hesketh-Prichard,
jornalista, explorador da Patagónia e do Labrador, jogador de crickett, atirador de caça grossa em
África, gentleman, enfim, um genuíno sportsman, e, já agora, grande
professor de snipers como veremos,
assumia, que a espingarda não era “fair”:
tornava a caça demasiado fácil. Mas a grande vantagem é que permitia reduzir
muito o sofrimento desnecessário, pois a mira telescópica tornava possível
atingir sem grande dificuldade um órgão vital. Fosse num coelho ou num ser
humano.
Na
perspectiva do sniper esta morte é
distante e limpa. Limpa porque não suja as mãos como o degolador. E distante
porque longe vão os tempos em que o contra-sniper
constituía o risco mais temível para o sniper.
O record de Chris Kyle foi um disparo a uns impressionantes 1 900 metros do
alvo. Como se afirma na obra “Sniper, Training
and Employment” do Department of the Army dos Estados Unidos (Washington,
Junho de 1989), o sniper deve ser capaz de atirar, de forma premeditada e
deliberada, a alvos que, por estarem tão longe, não constituem para ele uma
ameaça imediata. Não é fácil.
Basicamente,
o sniper seria o matador civilizado,
racional, frio, ceifando vidas em nome do Estado que tem o monopólio da
violência legítima.
Por
isso, esta morte também se lhe apresenta como justa. No manual do US Army
Special Operations de 1991 afirma-se que “matar desta forma pressupõe a
convicção da justeza e correcção moral da missão. O sniper tem de ser capaz de viver consigo mesmo, sem carregar com um
peso que seja emocionalmente destrutivo”.
Um
dos grandes snipers americanos da
guerra do Vietname afirmou ter escolhido a função por não querer correr o risco
de matar inocentes. Um aviador que derrama napalm
sobre a floresta pode matar mulheres, crianças, inocentes. O sniper sabe, tem a certeza de que está a
matar alvos legítimos. Culpados.
E,
no entanto … No entanto, o leitmotiv do filme de Eastwood é “It´s Your call!”. A decisão é tua. Quando
Chris Kyle descobria um potencial alvo, contactava o comando e pedia a
confirmação. A resposta que recebia era frequentemente “Your call”. Decide tu, sozinho com a tua consciência. Mas, se é
assim, há dúvida. Há tantas vezes dúvidas.
Regressado
à pátria, Kyle procurava dar uma imagem de tranquilidade, garantindo que podia
responder por todas as mortes, por todos os alvos abatidos. Consciência estranhamente
tranquila para quem foi um juiz e um algoz. O sniper julga e executa em simultâneo. Senhor da vida e da morte, tem
de tomar a decisão no momento culminante, sem segunda oportunidade, como um
árbitro de futebol que de imediato tem de decidir sem ter todos os dados.
É
um carrasco. Mas um carrasco que escolhe quem morre e quem vive. Vi, em tempos,
no Youtube uma entrevista de um
inglês de 96 anos que recordava como, na juventude, tinha matado o homem a quem
devia a vida. Soldado na Grande Guerra, estava na trincheira ao lado do seu
melhor amigo. De súbito, out of nowhere,
soou um disparo e o amigo caiu. O sniper
alemão podia ter escolhido qualquer dos dois. Por nenhuma razão especial
escolheu o seu amigo. Por isso, em certo sentido, devia-lhe a vida, a sua vida
tão prolongada. Quando os seus camaradas descobriram o alemão no alto de uma
árvore, fizeram-no cair. E não teve problemas em ajudar a matar o seu salvador.
Há
precisamente cem anos, nos campos da Flandres e do Nordeste de França, os snipers alemães dizimavam companhias
aliadas. Era uma tática muito apropriada para a guerra estática das
trincheiras. Nestas, se não houvesse snipers,
os soldados poderiam instalar-se a seu bel-prazer, apanhar placidamente banhos
de sol e contemplar, com adequado grau de curiosidade, os colegas da trincheira
da frente. Uma ou outra vez, poderiam até fazer uns joguinhos de futebol. Amigáveis.
Os
alemães, fazendo jus à sua fama de desmancha-prazeres e, há quem diga,
promovendo, numa genial ação publicitária, a excelência das ópticas Zeiss,
introduziram os snipers. Em 1915, há
precisamente cem anos, num só dia, num só batalhão, abateram 18 ingleses. Daí
em diante, todos os soldados foram obrigados a enterrar-se na lama das
trincheiras.
Os
atiradores germânicos dominavam então a arte de matar um indivíduo à distância.
Em resposta, os ingleses, fazendo jus à sua tradição, tão churchilliana, pelas
soluções excêntricas, recorreram ao grande Hesketh Prichard. Este criou uma
escola para ensinar aos soldados a técnica de matar com uma espingarda de mira
telescópica.
Conta
nas suas memórias, intituladas Sniping in
France (como quem diz, depois de ter caçado uns elefantes em África fui ali
mesmo, ao lado de lá do Canal, dar uns tirinhos nos boches), que foi professor
de muitos bons atiradores, entre os quais alguns portugueses. Refere que estes
eram muito eficazes. Excediam-se, sobretudo, nos golpes de mão em terra de
ninguém. Não seriam muito disciplinados, mas eram temíveis quando se exigia
audácia e iniciativa. Excelentes snipers,
portanto.
Um
sniper tem de ser um indivíduo com
características especiais. Muito calmo e muito paciente, desde logo. Um dos
melhores snipers americanos da Grande
Guerra era um índio que desaparecia antes do amanhecer na terra de ninguém.
Esperava pela oportunidade de dar um tiro. Podia alvejar um alemão de manhã ou
ao fim do dia. Mas permanecia imóvel e silencioso para não ser detetado. Só
regressava à trincheira depois do anoitecer. Um autêntico lobo solitário.
Este
combatente também tem de estar sempre concentrado, horas a fio. Vasily Grosman,
nesse extraordinário livro intitulado Vida
e Destino, descreve como em Estalinegrado os oficiais tinham o direito de
abandonar a protecção das ruínas e sair para terreno aberto em primeiro lugar. Parece
estranho. Por que razão não davam o peito às balas os simples soldados? Na
verdade, considerava-se que os snipers alemães
que estavam à espreita não desperdiçavam um tiro no primeiro que saía, porque
havia mais hipóteses de falhar. Quando o segundo ficasse desabrigado, já tinham
ajustado a mira. Em regra o tiro era fatal.
Nas
trincheiras da Primeira Guerra criou-se o mito de que, há noite, o terceiro
soldado a acender um cigarro com o mesmo fósforo – havia poucos, a humidade
estragava-os, os soldados poupavam-nos e, por isso, partilhavam-nos – era
atingido pelos snipers. A lógica era
a mesma: o primeiro acendia o cigarro – o sniper apercebia-se que havia um
alvo; o segundo acendia o cigarro – a espingarda já estava assestada para
aquela direção; o terceiro receia o fósforo e acendia, por sua vez o cigarro –
o sniper já estava pronto, soava um
tiro, caía um corpo.
Hector Munro, «Saki»
|
Sem
querer alinhar com aquelas campanhas tenebrosas que condenam à morte mais
horrível qualquer pacífico fumador, não pode deixar de se concordar que fumar
mata. Hector Munro, um escritor britânico adequadamente dedicado aos contos
satíricos e macabros, que beneficiou de certa fama com o pseudónimo Saki,
também concordaria, decerto. Na noite de 14 de novembro de 1916, no rescaldo de
uma batalha, tinha-se abrigado na cratera de um obus na companhia de alguns
colegas. As suas últimas palavras ficaram célebres: “Apaga a merda do cigarro!”
Acrescenta-se
que uma das condições essenciais para se poder ser sniper é não se ser … fumador.
Um
sniper mata. É uma máquina de matar.
Mata mesmo. Mata quase sempre. Calculou-se que, na Primeira Guerra, eram
necessários 7.000 tiros de armas ligeiras para matar um soldado inimigo. Na
Guerra do Vietname foram indispensáveis 25.000 tiros. Em regra, um sniper carece apenas de 1,3 tiros para
matar. One shot, one kill. Sabe que,
quando carrega no gatilho, alguém vai morrer.
Chris
Kyle, o sniper with the most kills,
podia proclamar a sua tranquilidade. Curiosamente, um outro sniper parecia muito mais perturbado
quando regressou do Iraque. Anthony Swofford, sniper do Marines na Guerra do Golfo, não disparou um único tiro. Sniper without a kill. Não matou, não
cumpriu a sua missão. Talvez envergonhado, recusou até participar na parada que
homenageou a sua unidade quando regressou à base nos Estados Unidos.
Frio,
decidido, solitário, paciente, tranquilo, firme, contido, e isto enquanto se
mata eficazmente outros seres humanos. Emocionalmente estável. Disciplinado mas
autónomo, capaz de tomar a iniciativa. E, depois disto tudo, sem pesos na
consciência. O sniper, máquina de matar,
tem mesmo de ser um ser humano muito especial.
José
Luís Moura Jacinto
Surpreende-me não mencionar o lendário Simo Hayha da (infelizmente esquecida e ignorada) Guerra de Inverno.
ResponderEliminar