A
civilização europeia e as cidades onde esta se formou:
Jerusalém, Atenas e Roma
“Nos Europaei”.
Francis Bacon (1561-1626), 1623
1.
A Europa como mito e como geografia
A Europa, como mito,
pertence à lenda grega de uma princesa fenícia chamada Europa, uma mulher de
cabelos doirados, filha de Agenor, rei de Tiro, na costa de Sidon, onde é hoje
o Líbano. A princesa fenícia passeava junto ao mar com algumas amigas, quando
Zeus, o rei dos deuses da mitologia prega, a viu, apaixonando-se por ela, e de
imediato se transformou num touro de imaculada brancura. Vindo a jovem acariciá-lo,
acabaria por trepar para a sua garupa, aproveitando o animal o ensejo para a
raptar, levando-a às costas para a ilha de Creta através do curto espaço do mar
que separava a Fenícia da Grécia. Chegados a Creta, Zeus retomou a sua forma
humana e uniu-se à princesa raptada, donde nasceram três filhos, Minos,
Radamanto e Sarpeidon. Minos, rei de Creta, casaria com Pasifé (Pasiphae), que
se apaixonou por um touro, que aliás não lhe retribuía a paixão, o que levou a
rainha adúltera a disfarçar-se de bezerra para se poder unir ao animal, união contra natura de que resultou o
nascimento dum monstro sanguinário, o Minotauro. Este teve de ser encerrado, a
pedido de Minos num edifício sem saída, o labirinto inventado pelo arquitecto Dédalo,
exigindo a besta de cabeça taurina e corpo humano, como tributo anual sete raparigas
e sete rapazes. Para o matar, Teseu, filho de Egeu, rei de Atenas, aceitou ser
um dos jovens sacrificados ao Minotauro, embora precavendo-se com um fio dado por
Ariana, estratagema que lhe permitiu sair da prisão labiríntica, depois de
matar o Minotauro.
Não deixa de ser curioso
esta relação tão íntima da vida cretense com a raça taurina, desde os murais do
palácio cretense onde vemos mulheres que saltam por cima de touros bravos. Note-se,
de passagem, que alguma da mitologia grega gira em torno da ilha de Creta − que se tornaria desde a idade do bronze da civilização
minóica, estudada por Sir Arthur Evans em Cnossos, nos começos do séc. XX −, pois
sãos diversos os mitos em torno de Minos, do labirinto e do monstro Minotauro –
o seu arquitecto Dédalo e o seu filho Ícaro, que escaparam ambos daquele
envergando asas. Todavia, Ícaro, filho do “grande arquitector” (IV, 104),
voaria tão alto que o sol derreteu a cera que unia as asas, provocando a sua caída
e morte no mar de icariano (mito que Camões incluiria, na fala amargamente
profética do Velho do Restelo (Lusíadas,
IV, 94 e ss, ao considerar que a nossa aventura marítima se comparava ao voo fatal
de Ícaro).
Quanto ao mito do rapto
da princesa fenícia Europa, ele foi objecto de infindáveis tratamentos nas
artes e nas letras, desde os poemas Metamorfoses
de Ovídio, de André Chénier e Leconte de Lisle aos frescos de Pompeia e aos óleos de Martin de
Vos, Rubens, Ticiano, Rembrandt, Boucher e Moreau, e ainda à ópera de Milhaud L’Enlèvement d’Europe.
Em suma, a princesa
fenícia acabaria por dar o seu nome, antes de mais, à Grécia e, depois, a todo
um continente que iria do Bósforo ao Atlântico, do Cabo Norte ao Cabo de São
Vicente, assim como o seu raptor designaria no céu a constelação do Touro. Quanto
à Grécia, esta, na sua parte continental, foi sempre considerada como sendo a
Europa, embora fosse tomada também como a parte ocidental da Ásia Menor (ou
Médio Oriente), até porque, como o sublinha o estudioso Richard Buxton, a
primitiva mitologia helénica fazia pouca distinção entre “Gregos” e “bárbaros”,
até que as guerras com os persas, no século V, modificariam essa atitude, como
mais adiante veremos.
Quanto às nem sempre
fixas fronteiras tradicionais entre a Europa e a Ásia, esses dois dos cinco
continentes da terra incluíam, para leste do Bósforo, as regiões eslavas até ao
rio Don. Ao longo do século XV o continente europeu alargaria a sua extensão
até às margens do Volga ou às montanhas dos Urais. Neste sentido, a Rússia tem
sido entendida sobretudo como um país asiático, como também havemos de referir
adiante.
2.Os “barbaroi”
Convém recordar que, para
os Gregos, os povos a leste do território helénico, contra os quais tantas
guerras travaram, sobretudo contra os Persas, povo indo-europeu instalado desde
o século VIII a.C. a norte do golfo Pérsico, eram bárbaros (barbaroi), o que dava a esses orientais uma
dimensão claramente negativa, como sendo inimigos desprovidos de verdadeira
civilização, e que tinham falhado as várias tentativas de submeterem os helenos
nas Guerras médicas, no tempo de Dario I (século V a.C.), embora tivessem
conseguido anexar todas as cidades gregas da Ásia, no território da actual
Turquia. Contudo, esta permanente ameaça dos persas desfez-se para os Gregos
com as vitórias de Salamina (480
a .C.) e com as conquistas Alexandre o Grande (século IV
a.C.) que conseguiu aniquilar o império persa, a que se seguiria, algum tempo
volvido, a ocupação do seu território pelos romanos. Para os gregos, eram barbaroi não só os persas mas todos os
povos orientais cuja língua lhes parecia incompreensível, como os egípcios, os
caldeus, etc.
Todavia, na sua peça Os Persas (472 a .C.), Ésquilo mostrava o
desastre persa em Salamina, em 476
a .C., na qual os gregos derrotaram Xerxes, cuja grande
frota foi desbaratada nessa batalha decisiva. A peça não era, porém, feita contra
os vencidos, mas contra a hybris (desmedida)
de Dario, vencido pelos gregos na batalha de Maratona (490 a .C.), verdadeiro responsável
por uma política agressiva que conduzira ao descalabro do poderio aqueménida, servindo
sobretudo, para o público helénico, como uma lição moral, pondo-o em guarda
contra a tirania, ao mesmo tempo que nas palavras do coro persa ressoavam
acentos dolorosos para exprimir a dor dos vencidos. Com o posterior domínio do
mundo mediterrânico pelos romanos – que os gregos tinham considerado também
como bárbaros –, o termo perdeu o seu
carácter xenófobo para designar, agora, os
povos que não participavam na Romanitas.
Note-se que, para os romanos, os germânicos que invadiriam o império no seu
final tinham olhos azuis que os impressionavam como funestos, pois a cor cerúlea
(azul do céu) lhes era desagradável e tida como aziaga. Foi preciso uma mudança
cultural das simpatias cromáticas ocidentais, durante a Idade Média cristã, para
que o azul ganhasse valor e dignidade, figurando essa cor no manto de Nossa Senhora.
3.A Europa livre e a Ásia despótica
No século das Luzes, o
pensador francês Montesquieu (1689-1755), autor das Cartas persas e do tratado de política De l´Esprit des Lois (1748), tipificava os regimes políticos em três
formas, a Monarquia, a República a o Despotismo, fazendo-os depender, respectivamente,
da honra, da virtude e do medo,
considerando que ao último sistema pertenciam os impérios asiáticos, como o
persa, o chinês, o indiano e o japonês, em suma, a países da Ásia, já que todos
esses regimes eram essencialmente despóticos, ou seja, baseados no medo. Quanto à República (livro II, cap.
II e livro III, cap. III), fundava-se esta numa organização igualitária das relações
entre os membros da colectividade, ou seja, na qual o povo em corpo ou em parte
dele tinha o poder soberano, não significando isso que nela todos os homens
seriam virtuosos, mas que podiam sê-lo. Já a monarquia se baseava ela na
diferenciação e na desigualdade, na “honra”(livro III, cap. VII), pois só um governa e tem o
poder soberano, enquanto o despotismo asiático, sendo a lei sem regra, em que a
igualdade só se estabelecia no medo (L’Esprit
des Lois, livro II, cap. I e livro III, cap. IX). O governo republicano,
acrescentava, podia assumir duas formas diferentes, a democracia e a
aristocracia.
Estas considerações do
grande pensador político da Gironda marcaria de forma muito clara – e na
sequência das convicções reflexivas tantos dos gregos como dos romanos – a noção de que a Europa seria o continente
onde não existiam regimes fundados no medo, o que levava o pensador liberal da
Gironda a declarar que “a constituição de Roma e a de Atenas eram muito sensatas (sages)”,
considerando ainda que seria “ainda uma lei fundamental da democracia que só o
povo faça leis”(livro II, cap. II). Já Hobbes, no século anterior, achava que o
medo era o sentimento humano político mais natural, sendo o Estado – ou o Leviatã como lhe chamava, com inspiração
bíblica - formado com base nele. Todavia, Montesquieu, não sendo pessimista
como o era o teorizador político inglês, tinha uma convicção liberal mais
arraigadamente europeísta, pensando que o despotismo era intrinsecamente
asiático – convicção que nós europeus, hoje ainda, facilmente aceitamos,
pensando sobretudo, por exemplo, na passagem do antigo Leviatã czarista para a
actual Rússia de Putine, passando pelas sete décadas de regime ditatorial
soviético –, assim como, na sua teorização sobre a influência do clima nas
formas de governo, insistia que o poderio asiático, ligado por natureza aos
grandes impérios, “deve ser sempre despótico na Ásia”, enquanto na Europa a
medíocre extensão dos seus estados formara nelas um “génio da liberdade que
torna cada parte muito difícil se der subjugada e submetida a uma potência
estrangeira”. E concluía que “reina na Ásia um espírito de servidão que nunca a
abandonou”(…), não sendo possível encontrar uma só característica que marque
uma alma livre: ali só se verá o heroísmo da servidão.” (livro XVII, cap.7).
Se pensarmos no destino
histórico da Rússia, desde o primeiro czar, Ivan o Terrível (1530-1584) – que
nos custa crer que foi contemporâneo da rainha Isabel I da Inglaterra
(1533-1603) – até ao derradeiro dos czares, Nicolau II, assassinado em 1918,
passando pela queda da realeza e a efémera revolução democrática chefiada por Kerensky
(1881-1971) e a instauração da ditadura
bolchevista (Outubro/Novembro de 1917), durante a qual Lenine mandou executar o
czar e fechou a duma, instaurando um regime que, sobretudo a partir de Estaline
(falecido em 1953), levaria ao apogeu o sistema despótico soviético que só teve
equivalente na dureza e inclemência dos métodos de terror utilizado e de
genocídios cometidos, nos anos 30-40, ao de Hitler na Alemanha do Reich milenar
que só duraria doze anos. Um punhado de grandes escritores russos dessa época
sombria – Zamiatin, Platonov, Bulgakov, Vassili Grossman, Siniavsky,
Soljenitsine, Pasternak – deixaria desse verdadeiro Behemoth russo os depoimentos
mais impressionantes do que foi a dolorosa passagem da Utopia bolchevista à
atroz Distopia soviética, com os seu gulag e as suas arbitrariedades sob as
formas mais implacáveis de um regime despótico, não podemos deixar de observar
que, mesmo quando este chegou ao fim, em 1991, com Gorbatchev, não se instaurou
ali a democracia num país que jamais a conhecera em séculos da sua existência
histórica, antes se resvalou para a restauração dos métodos que tinham
caracterizado os despotismos anteriores, desse os czares a um antigo
funcionário dos serviços da KGB, a polícia política, Vladimir Putin. Em suma,
não se pode deixar de evocar Montesquieu quando comparamos os regimes europeus
e os asiáticos.
A Europa, entendida como
uma específica formação histórico-cultural, assim como civilização política e
institucional, tem, antes de mais, como pólos duas grandes cidades territorialmente
expansivas e colonizadoras que foram, também, duas formas de estado, acabando
uma delas, a do império romano, por gerar a primeira configuração da Europa
como um todo continental e de governação político-jurídica. Roma foi, assim, o
primeiro império realmente europeu, progressivamente alargado do Próximo
Oriente às costas do oceano atlântico, as ilhas britânicas e uma parte da
Germânia, fazendo do Mediterrâneo o mare
nostrum (que ra também designado poro mare
internum) ao longo do qual, foi estabelecendo o seu poderio e o uso do
latim, fonte de diversas línguas novilatinas, entre as quais aquela que o poeta
brasileiro Olavo Bilac evocava como a “última flor do Lácio”, o português.
Nessa nebulosa histórica,
a Grécia surge como um preâmbulo da futura civilização europeia, sobretudo
graças à invenção que nela se fez do regime democrático que, alguns séculos
mais tarde, seria o cimento essencial do poder numa Europa unida. Convém, pois,
começar por referir a invenção grega da democracia – palavra que não figura nos
dicionários de Latim… − como um dos elementos fundamentais da civilização da
Hélade para a afirmação dum fortíssimo e essencial veio europeu a que podemos
dar o nome de greco-romano, sobretudo se atendermos que Roma, no seu
desenvolvimento como potência imperial, sobretudo depois de ter derrotado Cartago
nas guerras púnicas (séculos I-II a.C.), que dominara o comércio do Mediterrâneo
durante séculos, se afirmou como a grande e duradoura potência unificadora do
espaço europeu.
Roma, ao integrar Atenas e o seu património
político e cultural na sua realidade, fez dos atenienses um dos elementos
fundamentais da herança que a Europa moderna acolheria como basilares da sua
genética. Das três variantes históricas da Grécia – a Grécia arcaica (ou Grécia
antiga, do século VIII a.C. ao fim do séc.VI a.C.), a Grécia clássica (que se
estende do século V a.C ao fim das Guerras Médicas, em 479 a .C., e que corresponde
ao apogeu da civilização grega) e Grécia helenística (que vai do século IV a.C à conquista romana do reinos
helenísticos saídos do império de Alexandre o Grande, no século I a.C.) –, o período que mais nos interessa é a
Atenas do tempo de Péricles (século V a.C.), com a sua capital situada na Ática,
em cuja Acrópole
(cidade alta) Fídias foi o escultor principal do Parténon,
assim como da monumental estátua da deusa Atena e os grandes dramaturgos
Sófocles, Ésquilo e Eurípedes escreveram as suas peças, cidade rodeada de
montanhas e adversária de Esparta tanto como dos Persas com os quais travou
guerras incessantes e, ao final, vitoriosas para os gregos, desde Maratona a
Salamina.
A Grécia foi dominada por
uma poderosa aristocracia desde a tirania moderada de Pisístrato (600-527 a .C.), que ensaiou a
primeira democracia social, ao mesmo tempo que iniciava a expansão helénica.
Mas foram as reformas de Clístenes (508 a .C.) que de facto estabeleceram a
democracia, ainda que esta se mantivesse sempre bastante limitada: havia apenas
1/12 de cidadãos activos na Atenas do século V a.C. no meio de 200.000 escravos
e 70.000 estrangeiros desprovidos de quaisquer direitos políticos. Nos séculos VII
e VI a.C., Dracon, Sólon, Pisístrato e Clístenes tornaram o regime democrático
(demokratia) na Grécia uma realidade.
Nesse período de apogeu ateniense, que duraria até à conquista macedónica, o
governo de Péricles (492-429 a .C.)
levaria esse sistema democrático ao seu auge, atingindo Atenas a hegemonia como
cidade-estado dominante da Hélade, assim como com o máximo do seu poderio económico
e militar, eliminando os persas do mar Egeu e implantando colónias helénicas no
território da actual Turquia (uma delas fora Tróia, ou Ilion, hoje Hissarlik – que significa fortaleza –, a 6 km do Helesponto
(Dardadanelos), cujos vestígios o alemão Heinrich Schliemann (1822-1890) escavaria no século
XIX, descobrindo desde 1871 nove camadas
arqueológicas sobrepostas, sendo uma delas a da cidade devastada cerca de 1184 a .C., – data fixada por Eratóstenes para a queda de Tróia, quando se supõe que esta teria ocorrido durante os séculos XII ou XIII, urbe que Homero
(séc. VIII a.C.) cantara na Ilíada, narrando
na Odisseia o regresso ao lar, em
Ítaca, de Ulisses, o astuto grego que ajudara a conquistar a cidade através do
famoso estratagema do cavalo de pau, um
dos poemas lendários que, como veremos adiante, serviria a Virgílio para
filiar a romanidade do império de Augusto num grupo de fugitivos da famosa
cidade cercada e tomada por causa do rapto de Helena, mulher de Menelau, rei de
Micenas, raptada por Páris, o filho de Príamo, o rei troiano.
Com a democracia grega,
os cidadãos eram todos iguais diante da lei – termo designando pela palavra isonomia –, completada pela isotimia (acesso de todos às funções públicas, conferidas não
segundo o nascimento mas por eleição ou sorteio) e idegoria (direito de todos à palavra diante dos tribunais e assembleia
do povo. Esse sistema politico democrático, que teve o seu auge no do século V
a.C., era, desse modo, a primeira forma histórica de uma democracia directa, ainda
que nem todos os habitantes de Atenas participassem nele, já que as mulheres,
os escravos e os estrangeiros residentes (metecos)
estavam excluídos desses direitos nas leis escritas feitas para as pequenas
cidades. Este sistema democrático que regia a polis grega estava concebido para cidades pequenas (como mais tarde
sucederia com a democracia helvética dos tempos modernos, estabelecida e
reconhecida desde 1499). Além disso, a democracia ateniense custava caro, já que
era preciso pagar, desde Péricles, os salários indemnidades de presença na
assembleia popular (a eccclesia), a
qual tudo decidia, tanto a guerra como a paz, votando o orçamento, julgando os
crimes de Estado e formando um tribunal para muitos outros crimes, além de
eleger estrategos (chefes militares)
e tesoureiros, sendo as suas sentenças sem apelo.
A existência da escravatura
era, deste modo, essencial o funcionamento deste sistema democrático helénico,
na medida em que só assim os homens livres se permitiam consagrar-se à vida
pública. Péricles fez mesmo votar leis limitando o número de cidadãos, donde
resultou que em 400.000 habitantes, na Ática, só 40.000 fossem verdadeiros cidadãos
masculinos e adultos, dos quais só uns 5 a 6.000 tinham assento nas assembleias do
povo. As grandes obras artísticas públicas no tempo de Péricles − como a
construção do magnífico Parténon na Acrópole de Atenas, com o seu friso de
figuras e cavalos de estilo dórico, esculpido por Fídias em mármore pentélico −
que seria comprado ao governo turco em 1801-2 por Lord Elgin, embaixador inglês
na Turquia, e transportado nas sua quase totalidade, para o British Museum, em
Londres, o que indignou Lord Byron, que lhe vibrou uma violenta crítica no seu
poema Childe Harold’s Pilgrimage, de 1812
(recorde-se que o poeta inglês morreria em 1824, perto de Missolonghi,
combatendo pela libertação da Grécia das mãos do império otomano) – e as festas
organizadas para agradar ao povo, o que fazia o regime democrático depender do
financiamento que lhe era assegurado pelos aliados de Atenas (a Confederação ateniense
ou de Delos), pelo que a democracia grega foi perdendo apoio. Em suma, a democracia
ateniense foi sobretudo o governo de uma minoria, dum “demos” de alguns milhares
de cidadãos livres, mas na qual uma classe de escravos e aliados mais ou menos
submissos não participava, o que permitia oferecer-se um grande nível artístico
e o luxo de se governar a si mesma. E jamais a democracia ateniense considerou
estabelecer a igualdade entre todos os homens ou entre todas as cidades.
5. Roma, da República ao império
Diferentemente
da Grécia, Roma não conheceu verdadeiramente nenhuma forma de democracia – e
como vimos, no Latim nem havia equivalente para essa palavra –, embora, após a
queda da monarquia (509 a .C.)
as assembleias ou comícios (comitia curiates e comitia tributes) exercessem, teoricamente a soberania directa
popular. Os patrícios conseguiram que as assembleias populares fossem assumidas
por proprietários rurais. E embora a plebe fosse conquistando direitos ao longo
dos séculos V-IV a.C., na verdade as funções mais importantes de governo estavam
reservadas ao patriciado romano, formando-se uma casta senatorial que iria monopolizando
todas as magistraturas. A chamada ordem equestre, criada no final da República,
e a crescente proletarização das massas, situação de que os chefes militares em
disputa pelo poder supremo (Mário, Pompeu e César) se aproveitaram para formar
um regime poria fim ao sistema republicano de Roma que culminaria no império de
Augusto, uma nova forma de principado hereditário ou monarquia.
Com o império de Caio Júlio Octavianus (depois designado como
Octávio e, por fim, Augusto (63-14
a .C.) conservou-se o essencial das instituições públicas
da república romana, embora todos os poderes na prática se concentrassem na
figura do Divo Augusto, o Princeps.
Como sobrinho-neto de César e, por essa via, membro da gens julia, a qual tina uma ascendência grega troiana, o que a unia
ao mítico Eneias, filho de Anquises e da deusa Afrodite. Octávio era, desta
modo, um novo Eneias que resumia na sua pessoa mortal a origem, a história e a
essência de Roma, pois criara um arquétipo de príncipe que se iniciava com ele,
“o divus Augustus – cuja persona continuaria a existir para além
da morte de Octávio, que se fizera o suporte dela (…) e iria prosseguir a sua
acção providencial. Ele iria reinar, irradiar durante uma eternidade duradoura
– Roma aeterna – a unidade activa, a
força pacificadora, a virtude organizadora que fizera, literalmente, o Império.
E todos os Césares vindouros tomariam o nome de Augusto acedendo à suprema responsabilidade”
(Lucien Jerphagon, Les Divins Césars).
Coube
ao poeta romano Virgílio (70-19
a .C.), fazer no seu poema Eneida uma fantasiosa celebração mitopoética da criação e
finalidade de Roma como prodigioso destino imperial, associando a guerra de
Tróia e a queda e destruição desta cidade nos Dardanelos – a Issarlyk, no
noroeste da actual Turquia – após dez anos de cerco dos os gregos, empenhados
em vingarem o rapto da princesa Helena, mulher do grego Menelau, rei de Micenas
e bisneto de Minos –, como o êxodo donde resultaria a fundação duma nova Tróia que seria a
civilização romana, o Império de Augusto, na altura da composição deste poema
épico, das peregrinações marítimas de
uns quantos troianos, prófugos conduzidos por Eneias, que saíra da cidade
destruída levando o pai Anquises às suas costas, numa frota de vinte navios, acompanhado
ainda da mulher Creusa, que perderia na viagem e ainda do seu
filho Ascânio, levando consigo os penates, os vasos sagrados da família,
além do famoso Palladium (estatueta de Atenas), em direcção à Hespéria (o
poente), em busca duma terra onde reconstruíssem a Ilion cantada por Homero.
Virgílio, devotado ao
imperador Augusto e amigo de Mecenas, não concluiria o seu poema épico, mas a
obra seria publicada por ordem de Octávio, o que era mais um exemplo da
convergência cultural da mitologia grega e dos sonhos imperiais romanos,
consagrados na expressão “immensa romanae pacis majestas”(a imensa majestade da
paz romana),a qual era, antes de mais, a própria pax augusta inaugurada pelo reino do descendente de Júlio César. Caberia,
assim, a estem poeta do círculo do imperador, Virgílio, realizar no poema Eneida (29-19 a .C.), a grande epopeia
nacional inspirada tanto na Ilíada
como na Odisseia de Homero, exaltando
agora a grandeza do destino de Roma a partir da sua fundação mítica, narrando o
êxodo ao longo do Mediterrâneo de uns quantos fugitivos de Tróia após a queda
desta, chefiados por Eneias, filho de Anquises e de Afrodite (a Vénus romana), chefe
desse êxodo que os conduziria até ao berço de Roma. O herói detém-se em Delos e
Creta, após o que uma tempestade provocada pela inimiga Juno o lança nas costas
cartaginesas., sendo acolhidos por Dido, rainha de Cartago, que se apaixonou por
Eneias, embora os deuses não permitiam que os troianos se estabelecesse numa
cidade que seria a futura rival de Roma. Eneias
retoma o mar, a inconsolável Dido suicida-se – tema que o poeta arcádico
luso Correia Garção dedicaria a famosa Cantata
Dido –, perdendo entretanto o seu pai Anquises, falecido na escala
precedente. Visita então Cumas na Itália, onde a Sibila lhe permite descer aos
infernos, encontrando a sombra do seu falecido progenitor, que lhe revela o
futuro prodigioso de Roma:
“Tu regere imperio populos, Romane, memento,
hae tibi erunt artes: pacisque imponere morem
parcere subjectis, et debellare superbos.”
(“Ó Romano, lembra-te de que deves comandar as nações
e os teus talentos serão estes:
impor a regra da paz,
poupar os submissos e esmagar os poderosos” (Eneida, livro VI).
Em suma, era-lhe
prognosticado o futuro, que consistiria em fundar uma nova Tróia, arquétipo da
futura Roma imperial. Eneias seria recebido na Itália por Latinus, rei dos
Aborígenes (i.e., das origens), no Lácio, enfrentando o povo dos Túrtulos, sendo
Lavinia, a filha de Latinus dada como noiva ao troiano, estabelecidos os
fugitivos de Ilion no local onde se ergueria, no Palatino, a vindoura cidade de
Roma (Eneida, livros VII-VIII). Mas
Turnus ataca os barcos dos troianos e incendeia-os, embora a chegada de Eneias
salve a situação saindo estes vencedor do combate pessoal com o rei adverso,
assim como derrota a cavalaria da rainha Camila (livro XI) e põe fim aos
combates matando Turnus, reinando desde então sobre populações em que se harmonizam
as virtudes dos latinos e dos troianos, cruzamento dum povo do Lácio com os
fugitivos de Tróia formaria, assim, o povo romano (livro XII). Como Eneias
havia de desaparecer durante uma violenta tempestade, caberia a um dos seus
descendentes, Rómulo, fundar a cidade de
Roma.
Notemos que esta epopeia romana
não estaria distante do poema épico de Camões sobre os lusitanos, já que a
épica d’Os Lusíadas, além de misturar
figuras mitológicas pagãs e temas cristãos, comparava o navegante Gama com o
prófugo Eneias: “aquele ilustre Gama / Que para si de Eneias toma a fama” (canto
I, 12). Eneias será mencionado ainda seis vez no poema camoniano). O início da saga
épica de Camões traduz literalmente os primeiros versos da Eneida “arma virumque cano”(“canto os combates militares e o
homem”)[1], com
“as armas e os barões assinalados”, sendo estes últimos, os portugueses.( A viagem e as aventuras de Vasco
da Gama são também comparadas às do “facundo Ulisses”, Lusíadas, canto V. 86). Na
verdade, o poema de Camões actualizava a Eneida,
considerando Gama como equivalente a Eneias, aparecendo Portugal como uma nova
Roma à qual Neptuno e Marte tinham obedecido, ou seja, o deuses do mar e o da
guerra[2],
cidade prometida ao domínio do mundo, tendo criado, como se diz também nas
estrofes iniciais, um “novo mundo que tanto sublimaram”, esse império luso
resultante da expansão marítima dos séculos XV e XVI. O facto dessa epopeia,
com o seu orgulho e o seu cânone civilizacional, ter sido publicada apenas oito
antes de Filipe II de Espanha ter invadido Portugal e posto fim, por seis
décadas, à nossa independência como nação, em nada altera o significado
essencial e o propósito simbólico da épica de Camões.
O mundo romano e o seu
longo império – que só acabaria em 476 d.C., como civilização mediterrânica e
unidade imperial, realiza, assim, uma síntese onde se encontra, afinal, o
melhor da cultura e da história da própria Atenas, engrandecida e geograficamente
dilatado a até aos confins orientais do continente, às costas do Atlântico.
Nessa síntese do forte veio histórico greco-romano percebemos a primeira forma
de uma Europa que ia, então, desde as fronteiras com o Médio Oriente ou Ásia
Menor até ao oceano atlântico. Com a cristianização do império romano, tomada
por Constantino (270-337 d.C.), tomada em 313 d.C., assim como a sua decisão de
transferir a capital imperial para Constantinopla (330), futura Bizâncio e,
mais tarde ainda, Istambul, desde a tomada da cidade pelos maometanos em 1453, separaria
de vez os destinos da Europa dos da sua versão oriental. O cristianismo,
religião pregada por um profeta asiático crucificado pelos romanos, não seria
capaz de realizar a os destinos da Europa dos da sua versão oriental. De
qualquer modo, o cristianismo não seria capaz de realizar a união do império,
cindido desde então, nem o salvar da invasão dos bárbaros (hunos, vândalos,
godos, ostrogodos, visigodos, etc.) vindos da Germânia.
Seria preciso esperar
pela Idade Média e pelo imperador Carlos Magno (742-Aix-la-Chapelle, 814),
imperador do Ocidente, de 800 até à sua morte: o seu efémero santo império romano-germânico
duraria menos de uma década e meia, e na sua composição geográfica essencial, situava-se
num território entre o Sena e o Reno, sendo o mesmo da Europa “neo-carolíngia”
do século XX, a dos seis países que lançaram a ideia de unir a Europa numa
comunidade (Itália, Alemanha Federal, Holanda, Bélgica e Luxemburgo e França), esse
núcleo inicial de seis países que criariam a nova Europa do século XX empenhada
em fazer dela uma vasta estrutura unitária continental, como o fariam em 1951, a partir da C.E.C.A.
(Comunidade Europeia do Carvão e do Aço) e do Tratado de Roma (1957), impulso federador
europeísta que havia de gerar o Mercado Comum e, por fim, pelo tratado de
Maastricht, a actual União Europeia (1992), assim como a moeda única, o Euro, criada
em 1990 e posta a circular desde 2002. Desta unidade europeia foram verdadeiros
pais fundadores o alemão Konrad
Adenauer, o luxemburguês Robert Schuman e o italiano Alcide de Gasperi – todos
os três nascidos em regiões onde se falava alemão e todos igualmente políticos
democrata-cristãos –, além de Jean Monnet (1888-1979), que presidira à C.E.C.A,
de 1952 a
1955.
6.
Da ordem feudal ao mundo moderno e
reinvenção da democracia com as revoluções liberais (sécs.XVIII-XIX)
Quanto à Idade Média cristã,
apesar do cristianismo declarar os homens todos iguais, a sociedade política
que vigorou fez-se no sentido de consagrar o poder da feudalidade, ou seja, duma
sociedade de estrutura tripartida de “ordens”, dividida em poderosos e servos, entre
os oratores (sacerdotes), os bellatores (guerreiros) e os laboratores (os trabalhadores), isto é, as
três ordens medievas, clero, nobreza e povo. De qualquer modo, a Europa medieval,
apesar de unida pela religião e pela civilização cristãs de que esta impregnava
a vida dos europeus, não logrou estabelecer uma verdadeira unidade política,
nem pela via do predomínio teocrático da Igreja romana nem através da acção dos
estados absolutos – em França, por exemplo, esta via foi esboçada desde Filipe
o Belo e Luís XI a Francisco I até ao absolutismo de Luís XIV, aquele monarca
que cunharia a fórmula “o Estado sou eu” − que sucederam ao regime da
feudalidade, já que os capetos nunca se reconheceram vassalos do imperador romano
cristão ou da Santa Sé, até porque fundavam o seu poder antes no direito romano.
Com a Magna Charta (1215) e o “parlamento modelo” de 1265, se retomou na
Inglaterra a ideia que caminharia lentamente para a democracia no período
moderno.
Em suma, no campo
espiritual e cultural, a criação das universidades, no século XIII, a crise do
papado, agravada na centúria posterior com o exílio do papa em Avinhão (1309-141),
chegando a haver três papas em funções (1378-1417), sem esquecer uma série de
seitas cristãs heréticas (cátaros, albigenses, valdenses, bogomilos, etc.) não
só exigiam o regresso à pobreza evangélica (v.g., a ordem franciscana), a
crescente afirmação do poder dos estados nacionais, o esboço de um pensamento
humanista laicista que a Renascença reforçaria e o crescimento da burguesia
urbana, ou seja, a afirmação de uma Europa burguesa. Um novo espírito europeu
que se afirma no quatroccento e a
cultura das diversas nações europeias exprimindo-se agora em línguas vulgares, marcará
uma Renascença greco-romana que se faz ultrapassando o mundo fechado da
feudalidade e da teocracia cristã, num sentido totalmente novo, laico e burguês.
No século XVIII, a “crise da consciência europeia” (expressão de Paul Hazard)
conduziria a uma Europa onde triunfaria, na sua aufheben dialéctica de modelos e cânones conflituosos, finalmente
chegados a uma síntese inovadora, e ultrapassados os ideais dos “despotismos
esclarecidos” do século das Luzes na Europa, às revoluções liberais, americana e
francesa – Jacques Godechot chamou-lhes com razão “revoluções atlânticas”,
embora no caso da revolta e posterior independência na América do Norte,
expressa na admirável fórmula tão forte e irreprimivelmente democrática que abria
o texto da declaração do diploma constitucional de 1787 – “We the people of the
United States…”[3] − tivesse mais o aspecto
de uma movimento de descolonização que recorria a valores políticos herdados da
Luzes (e até da Magna Charta que, em
15-VI-1215, submetera o rei João Sem Terra à vontade dos barões ingleses que
assim consagravam o habeas corpus,
posteriormente legislado em 1679) −, tudo formas de democracia que teriam, contudo, na
Europa, revolucionários, como na França desde 1789, assumindo no seu processo
algumas formas aberrantes, como o Terror jacobino, de 1793 a 1794, e, na sequência
deste, o consulado bonapartista (1799-1804) e, depois, o Império napoleónico (1804-1815),
que seria uma das forma de criar uma Europa pela força das baionetas da sua Grande
Armée, único cimento dessa aparente unidade europeia, o que desde logo o
retirava do punhado de políticos que podiam ser considerados “pais fundadores”
dessa unificação que só no século seguinte se veria esboçar e, finalmente,
erguer-se.
Monte Estoril, 18 de Setembro de 2015
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João Medina
[1] Esta passagem inicial da Eneida merece ser transcrita na íntegra; “Arma virumque cano,
Trojae qui primus Italiam, fato profugus, Laviniaque venit”, i.e., “canto as
guerras e o homem, o primeiro que, levado pelo destino, de Tróia veio às costas
italianas e da Lavinia”).
[2] “Que eu canto o peito ilustre lusitano / a quem
Neptuno e Marte obedeceram”, Camões, Os
Lusíadas, canto I, 3).
[3] Três quartos de século depois, Abraham Lincoln
(1809-1865) diria, no seu discurso em Gettysburg, junto das campas dos soldados
caídos em luta pela União, que estes não tinham morrido em vão e que “esta
nação, debaixo de Deus, terá um novo nascimento de liberdade − e que o governo do povo, pelo povo e pata o
povo não há-de perecer na terra.” (19-XI-1863).
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