domingo, 11 de outubro de 2015

Out of the Present.

 
 
 

 
 
 

Daqui a uns dias começa o DocLisboa. Como sempre, a programação é vasta, variada e esplendorosa. Filmes únicos, que raramente chegam aos cinemas, jorram dos ecrãs em catadupa, uns atrás dos outros. A maratona só tem um defeito: obriga-nos a fazer opções difíceis. Muitas vezes, passam dois grandes filmes irresistíveis ao mesmo tempo, e temos de fazer escolhas. Nada como ler os programas – com muita atenção.   

 

       De todos os filmes que vi o ano passado, um dos que mais me impressionou foi Out of the Present (1995), de Andrei Ujica, o cineasta romeno que também assinou Autobiografia de Nicolae Ceaucescu. A história de Out of the Present é fantástica, em todos os sentidos. E conta-se em poucas linhas.
 
Em 1985, Sergei Krikalev, engenheiro mecânico de formação, foi seleccionado para integrar o programa espacial soviético. Em 1988, ainda existia o Muro em Berlim, Krikalev começou os treinos para uma estadia ousada e de longa duração a bordo da estação espacial Mir. A missão começou em Novembro de 1988; o regresso à Terra deu-se em Abril de 1989.
 
 
Sergei Krikalev
 
 
 
 
Em 1991, Krikalev foi enviado de novo para o espaço, retornando aos interiores da Mir. Esteve lá em cima 311 dias. Out of the Present mostra o quotidiano de Krikalev e dos seus companheiros. Mas, por muito bom que seja o filme de Ujica, ninguém me convence como é possível ser-se feliz passando 311 dias fechado numa estação em órbita. Há gente capaz de tudo.  
 
O mais espantoso é o que entretanto se passou, não no espaço sideral mas no paraíso terreal. E é isso que torna fascinante o filme de Andrei Ujica. Se virem na Wikipedia (já agora: a Wikipedia é a maior obra colectiva da História da Humanidade, caso não saibam; muito maior do que os programas espaciais americano e russo juntos; portanto, antes de gozar com a Wiki e com os seus ocasionais errozitos, é bom que tenhamos presente este facto: a maior obra colectiva desde que a Humanidade existe), se virem na Wikipedia, dizia eu, Krikalev é considerado «o último cidadão da União Soviética». É verdade: embarcou para o espaço como herói soviético e estatelou-se na Terra como cidadão russo. Enquanto esteve lá em cima, a URSS caiu redonda, desmoronou-se toda. A terra natal de Krikalev, Leninegrado, passou a chamar-se Sampetersburgo. Enquanto lá no alto tudo decorria na normalidade possível, com os cosmonautas na pândega por falta de gravidade, Out of the Present mostra imagens da turbulência por que passava Moscovo: tanques nas ruas, agitação de massas, manifestações populares.
 
Apesar de estarem (relativamente) informados do que acontecia, os tripulantes da Mir encontravam-se – como diz o título do filme – fora do presente. Brincavam como adolescentes enquanto o seu país se desintegrava. Por via rádio, há um espantoso diálogo entre um jornalista e Sergei Krikalev: aquele pergunta ao cosmonauta qual das transformações em curso acha mais impressionante. Krikalev gagueja, faz uma pausa, e diz não perceber a questão colocada. Lá em cima, no espaço, Sergei vivera encapsulado, longe do tempo presente, fora da realidade das coisas.
 
Como se refere aqui, o filme pode ser visto sob diversos ângulos: um documentário informativo, uma orgia visual à maneira de Kubrick, uma análise mordaz sobre a debilidade da União Soviética ou até como uma meditação filosófica sobre o tempo e o espaço.
 
Out of the Present é tudo isso, mas é sobretudo a história de um homem que um dia é cidadão estimado de um país comunista – medalhado com a Ordem de Lenine e condecorado com o título de Herói da União Soviética – e, no dia seguinte, chega à sua Terra e esta não era a mesma. Pouco depois, a própria Mir chegaria ao fim, fechando os olhos em 23 de Março de 2001. O motivo? Sempre o mesmo: falta de verba, restrições orçamentais. Sonhar com estrelas não custa. O que custa é pagar a conta. É que brincadeiras como esta da Mir não são caras, são caríssimas. Quanto a Sergei Krikalev, foi medalhado duas vezes pela NASA, em 1994 e em 1998, e dedica-se hoje ao radioamadorismo. Casado, pai de uma menina, é um homem cordial e pacato. Longe de aventuras celestes, com os pés bem assentes na terra.
 
 
António Araújo
 
 
 
 
 

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