Daqui
a uns dias começa o DocLisboa. Como sempre, a programação é vasta, variada e
esplendorosa. Filmes únicos, que raramente chegam aos cinemas, jorram dos ecrãs
em catadupa, uns atrás dos outros. A maratona só tem um defeito: obriga-nos a
fazer opções difíceis. Muitas vezes, passam dois grandes filmes irresistíveis ao
mesmo tempo, e temos de fazer escolhas. Nada como ler os programas – com muita atenção.
De todos os filmes que vi o ano
passado, um dos que mais me impressionou foi Out of the Present (1995), de Andrei Ujica, o cineasta romeno que
também assinou Autobiografia de
Nicolae Ceaucescu.
A história de Out of the Present é fantástica,
em todos os sentidos. E conta-se em poucas linhas.
Em
1985, Sergei Krikalev, engenheiro mecânico de formação, foi seleccionado para
integrar o programa espacial soviético. Em 1988, ainda existia o Muro em
Berlim, Krikalev começou os treinos para uma estadia ousada e de longa duração
a bordo da estação espacial Mir. A missão começou em Novembro de 1988; o regresso
à Terra deu-se em Abril de 1989.
Sergei Krikalev
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Em
1991, Krikalev foi enviado de novo para o espaço, retornando aos interiores da
Mir. Esteve lá em cima 311 dias. Out of
the Present mostra o quotidiano de Krikalev e dos seus companheiros. Mas,
por muito bom que seja o filme de Ujica, ninguém me convence como é possível
ser-se feliz passando 311 dias fechado numa estação em órbita. Há gente capaz de tudo.
O
mais espantoso é o que entretanto se passou, não no espaço sideral mas no
paraíso terreal. E é isso que torna fascinante o filme de Andrei Ujica. Se
virem na Wikipedia (já agora: a Wikipedia é a maior obra colectiva da História
da Humanidade, caso não saibam; muito maior do que os programas espaciais
americano e russo juntos; portanto, antes de gozar com a Wiki e com os seus ocasionais
errozitos, é bom que tenhamos presente este facto: a maior obra colectiva desde
que a Humanidade existe), se virem na Wikipedia, dizia eu, Krikalev é
considerado «o último cidadão da União Soviética». É verdade: embarcou para o
espaço como herói soviético e estatelou-se na Terra como cidadão russo.
Enquanto esteve lá em cima, a URSS caiu redonda, desmoronou-se toda. A terra
natal de Krikalev, Leninegrado, passou a chamar-se Sampetersburgo. Enquanto lá
no alto tudo decorria na normalidade possível, com os cosmonautas na pândega por
falta de gravidade, Out of the Present
mostra imagens da turbulência por que passava Moscovo: tanques nas ruas,
agitação de massas, manifestações populares.
Apesar
de estarem (relativamente) informados do que acontecia, os tripulantes da Mir encontravam-se – como diz o título
do filme – fora do presente. Brincavam
como adolescentes enquanto o seu país se desintegrava. Por via rádio, há um espantoso
diálogo entre um jornalista e Sergei Krikalev: aquele pergunta ao cosmonauta
qual das transformações em curso acha mais impressionante. Krikalev gagueja,
faz uma pausa, e diz não perceber a questão colocada. Lá em cima, no espaço, Sergei vivera encapsulado, longe do tempo presente, fora da realidade das coisas.
Como
se refere aqui, o filme pode ser visto sob
diversos ângulos: um documentário informativo, uma orgia visual à maneira de
Kubrick, uma análise mordaz sobre a debilidade da União Soviética ou até como uma
meditação filosófica sobre o tempo e o espaço.
Out of the Present
é tudo isso, mas é sobretudo a história de um homem que um dia é cidadão estimado
de um país comunista – medalhado com a Ordem de Lenine e condecorado com o
título de Herói da União Soviética – e, no dia seguinte, chega à sua Terra e
esta não era a mesma. Pouco depois, a própria Mir chegaria ao fim, fechando os
olhos em 23 de Março de 2001. O motivo? Sempre o mesmo: falta de verba,
restrições orçamentais. Sonhar com estrelas não custa. O que custa é pagar a conta. É que brincadeiras como esta da Mir não são caras, são caríssimas. Quanto a Sergei Krikalev, foi medalhado duas vezes pela NASA, em 1994 e em 1998, e dedica-se hoje ao radioamadorismo. Casado, pai de uma menina, é um homem cordial e pacato. Longe de aventuras celestes, com os pés bem assentes na terra.
António Araújo
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