segunda-feira, 12 de outubro de 2015

Vidas singulares: Peter Norman.

 
 
 
 
 
 
         Uma vez, numa galáxia distante, contei aqui a história de Ruby Bridges, uma menina negra que caminhava sozinha para a escola, enfrentando insultos e gritos de ódio racista. A história de hoje, num certo sentido, é também a de alguém que caminhou sozinho, mesmo quando corria mais rápido do que todos os outros. É só vê-lo a correr aqui, num sprint final assombroso que lhe deu a medalha de prata nos Jogos Olímpicos do México de 1968.
 
 

 
 
 
         A cerimónia de atribuição das medalhas da prova dos 200 metros nas Olimpíadas do México de 1968 ficou para a História. Na altura de receberem os troféus, os dois atletas norte-americanos, os negros Tommie Smith e John Carlos, que ficaram na 1ª e na 3ª posição, ergueram os punhos enquanto se ouvia o hino do seu país. Subiram ao pódio de sapatos na mão, descalços, para chamar a atenção do mundo para a pobreza em que viviam muitos negros na América. Tommie Smith e John Carlos ergueram os punhos, onde tinham calçadas luvas negras, as luvas dos Black Panthers.
 

 
Mas, na fotografia célebre, há um homem de que ninguém fala. O branco. O que não ergueu o punho nem calçou luvas. O que parece estar alheado no meio de tudo aquilo. O homem da medalha de prata. Peter George Norman, um nome banal. Australiano, natural de um país que tinha leis raciais quase tão estritas como as do apartheid sul-africano. Norman era praticamente desconhecido: não tinha grande palmarés, era um branco baixinho em comparação com os velocíssimos gigantes Tommie «the Jet» Smith e John Carlos. Chegou à final dos 200 metros e correu que só visto, fixando um recorde nacional na Austrália que até hoje ninguém conseguiu superar. Peter Norman.
         Ao prepararem-se para subir ao pódio, Smith e Carlos perguntaram-lhe se defendia a causa dos direitos humanos, o australiano respondeu que sim. Perguntaram-lhe depois se acreditava em Deus e Norman, que militara no Exército de Salvação, respondeu igualmente que sim, que tinha fé. Disseram-lhe que iam fazer um gesto simbólico, memorável. I’ll stand with you, respondeu o australiano. «Esperava ver medo nos seus olhos. Mas, em vez de medo, vi amor», referiu, anos depois, John Carlos.
 
 
         John Carlos e Tommie Smith ostentavam ao peito o emblema do Olympic Project for Human Rights. Norman perguntou se lhe podiam arranjar também um emblema daqueles, pois queria subir ao pódio com ele ao peito, em sinal de solidariedade. Quando Norman pediu o emblema, Smith ficou perplexo, até zangado. «Quem é este tipo australiano, este branco? Ganhou a medalha de prata, receba-a, leve-a, e acabou-se!». Um outro atleta americano, que estava por perto, e era activista do Olympic Project for Human Rights, nem quis acreditar. Um australiano branco a querer usar o emblema da sua organização – bom demais para ser verdade. «Dei-lhe o único emblema que tinha: o meu», recordou mais tarde Paul Hoffman. Se repararem, lá está o australiano na fotografia célebre com o emblema do Olympic Project for Human Rights. À parte esse detalhe, nada de significativo. Um branco de olhar ausente. Carlos e Smith levavam consigo um par de luvas dos Black Panthers, mas trouxeram só um par – não dava para os dois. «Cada um calce uma luva», aconselhou-os Norman (por isso, na fotografia um traz a luva na mão esquerda e outro na mão direita). Assim se fez, assim se tocou o hino americano perante um estádio repleto mas silencioso. Dois negros de punho erguido, acompanhados de um branco de olhar ausente.  
O chefe da equipa olímpica dos Estados Unidos ficou furioso, prometeu represálias. Smith e Carlos foram imediatamente expulsos do team americano e irradiados da Aldeia Olímpica. Quando regressaram à América, enfrentaram sanções pesadas, até ameaças de morte.
O destino de Peter Norman não foi diferente – foi pior. Enquanto Smith e Carlos, com o passar dos anos, foram apoiados por multidões, sendo até heroicizados, ninguém se lembrou do australiano, perdido nos confins do mundo. Parece incrível, mas é verdade: na Universidade de San José, na Califórnia, há uma estátua a homenagear a coragem dos corredores afro-americanos. O segundo lugar no pódio, o lugar que Peter Norman ocupou, está vazio. No entanto, o australiano foi convidado para discursar na cerimónia de inauguração da estátua, segundo se diz aqui. É pouco.
 
Universidade de San José, Califórnia
 
 
Nas Olimpíadas seguintes, as de Munique, as dos atentados terroristas contra os atletas israelitas, Peter Norman não esteve presente. Isto apesar de se ter qualificado para as provas de 100 e de 200 metros. Mesmo assim, o comité olímpico australiano impediu-o de ir até à Alemanha. Naturalmente, Norman ficou desiludido para sempre com o desporto de alta competição. Continuou a praticar atletismo, mas como amador. Na Austrália, ele e a sua família foram ostracizados. Nem sequer conseguiu arranjar emprego. E só a muito custo acabou por trabalhar ocasionalmente como professor de ginástica – ele, Peter Norman, um recordista nacional, medalha de prata nas Olimpíadas. Ainda foi sindicalista e ajudante num talho, até que, numa corrida de caridade, caiu e magoou-se. O ferimento gangrenou e Norman mergulhou nos abismos da depressão e do alcoolismo.
Poderia não ter sido assim. Peter Norman poderia ter sido um herói nacional se tivesse aceitado a proposta, que lhe fizeram durante anos, para condenar o gesto rebelde de Smith e Carlos. Insistiram para que os condenasse, em troca seria perdoado. Teria um bom emprego no Comité Olímpico da Austrália, integraria a organização dos Jogos de Sydney de 2002. Peter Norman rejeitou essas ofertas, recusou condenar os seus colegas de pista. Enquanto Smith e Carlos contaram com o apoio de dezenas de organizações e activistas empenhados, Peter Norman ficou sozinho. Nem para os Jogos de Sydney o convidaram. Apareceu por lá, uma vezou outra, mas pela mão do Comité Olímpico Americano.
Peter Norman morreu subitamente. De ataque cardíaco, em 2006. No funeral, na linha da frente, o caixão foi carregado por dois negros já entrados na idade. Eles mesmos, os amigos que fizera em 1968: Tommie Smith e John Carlos.
 
 
 
 
Em 2012, o parlamento australiano pediu formalmente desculpas à família de Peter Norman e honrou a sua memória. Palavras bonitas, mas que chegaram tarde. Não aqueceram um coração que parara de bater seis anos antes. Matt Norman, o sobrinho de Peter, fez um documentário sobre ele, intitulado Salute (2008), e até há um livro sobre a race to remember, que se prolonga por 320 páginas de texto.
 
 

 
 
Quando Sartre morreu, o obituário de um jornal londrino chamou-lhe «the man who walked alone». Foi assim também com Peter Norman, o australiano voador. Com uma diferença: Sartre escreveu o conhecido prefácio ao livro de Fanon onde, a dado passo, está a frase horrível. Que diz mais ou menos isto: «abater um europeu é matar dois coelhos de uma só cajadada, é suprimir ao mesmo tempo um opressor e um oprimido: restam um homem morto e um homem livre». Por certo, Sartre não estava a pensar em Peter Norman quando impensadamente escreveu aquelas palavras tão estúpidas e infelizes. Norman foi abatido em vida. Mas daí nada restou de bom. Excepto, talvez, um memorável exemplo de humanidade.  
 
Recebi esta história daqui, chutada generosamente pelo João Gama. Amparei-a ao peito, como um emblema, cá dentro de mim, rematando-a para a cabeça do Ricardo Álvaro, que a guardou como eu, in pectore. Para o João e para o Ricardo, um abraço comovido e grato do
 
António Araújo  
 
 
 
 
 

5 comentários:

  1. Só conhecia o episódio das luvas negras e nem nunca tinha reparado que havia uma terceira personagem.
    Que história maravilhosa (ainda que trágica).
    Vir aqui é obrigatório, há sempre algo para aprender.
    Se eu mandasse, este blog era considerado de utilidade pública.

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    1. Muito lhe agradeço estas palavras. Mas o mérito é da história, não de quem a conta. A história estava lá toda, limitei-me a pôr as letras (e uma ou outra fotografia...)

      Um abraço cordial

      António Araújo

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  2. Muito obrigado.
    Pois, quando lhe apetecer pode juntar mais palavras e contar-nos as histórias que há sobre estátuas.
    Parece que a que queriam ou fizeram sobre os NYFD que morreram nas Twin Towers teve que levar um "retoque".
    Abraço cordial

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  3. Há um estátua dele dentro de mim, nunca mais correrei sozinho.
    Grato pela aprendizagem, o mais importante é ficar em segundo.

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