O “Memorial” de Marcelo Caetano (1962)
O ambiente internacional
posterior à Segunda Guerra Mundial levou à reorganização dos Impérios
coloniais. Em Portugal, as primeiras reflexões públicas com incidência na forma
de Estado foram feitas por Marcelo Caetano na qualidade de regente da
disciplina de Administração e Direito Colonial, no ano lectivo de 1949-1950.
São, portanto, anteriores à revisão constitucional de 1951, de onde, no
entanto, aparentemente estiveram ausentes. O tema visava a posição relativa da
metrópole e das colónias e distinguiam-se dois aspectos. O primeiro respeitava às
relações entre a Metrópole e as colónias; o segundo era ainda mais vasto e abrangia
o problema da função das Metrópoles e do destino das colónias.
Quanto ao primeiro aspecto,
as duas soluções possíveis eram a “dominação para servir” ou a “associação na
federação”. Observava-se certa tendência para transformar os impérios coloniais
(formados numa base de sujeição) em federações ou “comunidades” de índole
federativa, onde os domínios ultramarinos surgiam como Estados federados com o
Estado metropolitano. Desaparecia o elemento de sujeição para haver um facto
político de associação. Era o fim dos
impérios. Restava saber se os territórios africanos já estariam aptos para
dispensar a referida “dominação para servir” e serem considerados elementos,
embora não soberanos, de um Estado federal. Tais dúvidas e hesitações eram
claras no caso da “União Francesa” estabelecida pela Constituição de 1946. A
revisão semântica francesa então promovida vai influenciar a revisão
constitucional de 1951 (por exemplo, quanto à abolição da terminologia
colonial) e, quanto à forma de Estado, tornar-se candente em 1962, mas Portugal
não seguirá o caminho francês.
Quanto ao segundo
problema – o da função da Metrópole nos territórios coloniais – duas correntes
se tinham debatido desde o século XIX. Uma compreendia o self-government e o indirect
rule, ou seja, cifrava-se em três pontos fundamentais: “autonomia”,
“governo indirecto” e “educação dos povos para a independência”. A função do
colonizador era, portanto, a de tutor. O essencial da ideia inglesa era a de os
povos coloniais ficarem, após a independência, ligados por uma aliança, pelo
que do “Império Britânico” ir-se-ia passando para a “Comunidade das Nações
Britânicas” – cujos elementos apresentavam diversos graus de organização
política. Será o processo da devolution,
estatuto fundamental da descolonização britânica. Em síntese, no pós-guerra, o
pensamento colonial britânico mudara e hesitava.
Por seu lado, os povos
latinos – principalmente portugueses e espanhóis, impulsionados pelo que se
poderia chamar ânsia missionária –
tinham outra posição e prosseguiam uma política de assimilação. Neste sistema
impunha-se um governo directo. Daí duas tendências: a)- transformar as colónias
numa parcela do território nacional, desenvolvidas em províncias ultramarinas e
beneficiando de igualdade de direitos e condições com as províncias
metropolitanas; e b)- repugnar a ideia da sua independência. Não ocorria
ligação necessária entre ambos os sistemas possíveis pois a assimilação total
acabava por «desvanecer o Império, exactamente como a autonomia política o
desagrega. E a assimilação pode conduzir tanto ao Estado unitário como ao
Estado federal». Concluindo as suas Lições,
Marcelo Caetano, embora sublinhando não procurar apresentar uma solução
concreta, formulava então, e pela primeira vez, a hipótese de uma solução
federalista para o caso português: «Para as colónias da África Tropical a era
do império ainda não passou. A hipótese federativa, como termo político da
evolução colonial, não parece de excluir. É certo que os portugueses não
mostraram nunca uma grande tendência para os regimes federativos; mas isso não
significa que com o tempo não venham a compreender a sua prática». Na sequência
desta primeira aproximação, Marcelo Caetano vai tornar-se (por alguns anos,
entre o fim da década de cinquenta e o princípio da década de sessenta) adepto
do federalismo.
Como se disse, esta
perspectiva não foi abordada na revisão constitucional de 1951 – nem sequer no
Parecer da Câmara Corporativa – onde, pelo contrário, acabou por prevalecer a
linha assimilacionista e “unitarista”. Posteriormente, Marcelo Caetano subiu na
carreira política, exercendo, de 7-7-1955 a 14-8-1958, as funções de Ministro
da Presidência – de onde sairá decidido a abandonar a vida política. Porém,
enquanto Ministro, manteve múltiplas conversas reservadas com Salazar sobre os
problemas do Ultramar português. Muitos anos depois, recordou, nas suas “Memórias”,
que, no fundo, ambos convergiam na futura independência como destino de Angola
e Moçambique embora temendo o seu anúncio prematuro, por este acarretar o risco
de falta de controlo de tal evolução. Divergiam, sim, quanto aos processos
pois, enquanto Marcelo Caetano defendia uma “autonomia progressiva”, da qual a
independência surgiria como consequência natural e poderia assumir a forma de
um Estado federal, já Salazar achava que não devia ser a Metrópole a fomentar,
preparar ou apressar a independência. Salazar acabaria mesmo por aderir à
chamada política de integração, segundo a qual, como províncias de uma Nação
independente, os territórios ultramarinos gozariam de independência do Estado
de que eram parte integrante. Mas – acrescentou ainda Salazar, em discurso
público de Julho de 1957 – um dia poderiam porventura esses territórios
ultramarinos vir a gozar de atributos próprios de soberania, integrando uma “Comunidade
Lusíada”, ao lado da Comunidade britânica e da Comunidade hispânica.
Em 1961, a constituição
de um Estado Federal, abrangendo Portugal e as suas colónias, tinha sido
publicamente defendida por Henrique Galvão e Humberto Delgado, então exilados
no Brasil. A questão do federalismo surgia no início da década de sessenta como
(única) forma de Portugal manter laços com os territórios ultramarinos e de
defesa «pelo quase intoxicante ideal da Nação Una, ’única, multirracial e
pluricontinental’» (Hermínio Martins).
Em 1962, o primeiro
documento a invocar é o Memorial da
autoria de Marcelo Caetano, Professor da Faculdade de Direito de Lisboa (assim
identificado, dactilograficamente, no cabeçalho do texto), datado de 2 de
Fevereiro de 1962. Os exemplares que se conhecem não estão assinados e não
contêm qualquer despacho ou anotação. Note-se que por “memorial” designa-se um
apontamento, menos formal que um “parecer” (este vale como uma opinião) e que o
documento em causa passou a ser designado por Marcelo Caetano simplesmente por
“papel” ou “paper”. Dispomos de duas versões “autênticas”. A primeira é o
fac-símile do texto original, dactilografado, com duas pequenas correcções
ortográficas e datado (mas não assinado) pelo próprio Marcelo Caetano,
publicado como Anexo in Marcelo Rebelo de Sousa, Baltazar Rebelo de Sousa – Fotobiografia, Venda Nova, Bertrand
Editora, 1999, pp. 572/573. A segunda (que aproveitou anterior difusão pública
em fotocópia) é a versão constante de João Paulo Guerra, Memória das Guerras Coloniais, Porto, Afrontamento, 1994, p. 333,
novamente dactilografado, inclusive as partes manuscritas do original.
Marcelo Caetano só
reconheceu publicamente a sua autoria em 1974, acrescentando ter sido ouvido
por Salazar «a título muito reservado» e na sua qualidade de Conselheiro de
Estado e antigo Ministro das Colónias. O documento só se tornou conhecido e
famoso ao ser, segundo diz, «abusivamente» divulgado em 1968 para tentar
comprometê-lo «aos olhos dos que pensavam identificar-se o patriotismo com a
política de integração».
Como no seu texto se
refere, tudo começara com um ofício (ou, melhor, carta) de Sarmento Rodrigues,
Governador-Geral de Moçambique, que punha «um problema da maior utilidade e até
urgência» – a revisão do sistema governativo das províncias ultramarinas, em
especial Angola e Moçambique. Após, entre outras, ter desempenhado as funções
de Ministro das Colónias e do Ultramar, Sarmento Rodrigues havia sido nomeado
para tal cargo pelo Ministro do Ultramar, Adriano Moreira (de resto, seu
discípulo), em Maio de 1961. Enviada da Residência do Governador-Geral em
Lourenço Marques, datada de 18 de Janeiro de 1962, tal carta, destacando a sua
confidencialidade e endereçada ao Ministro do Ultramar, dizia, em resumo, o
seguinte:
i)- estando a Assembleia Nacional a
funcionar, chegara o momento de promover uma reforma constitucional que reestruturasse
os órgãos de governo das províncias ultramarinas;
ii)- o essencial seria conseguir
primeiro dotar os órgãos cimeiros com os poderes e a latitude que o momento
exigia e, para o efeito, a exposição de Sarmento Rodrigues, recordando
anteriores pronúncias sobre o conjunto dos territórios, ia basear-se no caso de
Moçambique;
iii)- o Governador-Geral deveria ter os
poderes de Ministro de Estado (Alto Comissário) – com assento no Governo
Central – e os secretários provinciais
aumentarem para cinco, com o estatuto de secretários (ou subsecretários)
de Estado;
iv)- o Ministro do Ultramar – «que bem
melhor ficaria como um dos Vice-Presidentes do Conselho de Ministros» – deveria
ser substituído por um Ministro da Coordenação Nacional;
v)- o Conselho Legislativo e o Conselho
de Coordenação Económica deveriam ser reorganizados e a sua representatividade
acrescida;
vi)- em conclusão, era necessário
«comandar os acontecimentos e não ser arrastados por eles» e, para tal, «fazer
de sua própria iniciativa, progredir a administração do Ultramar», dando ao
mesmo tempo «uma grande satisfação aos homens bons que aqui vivem, assim como
confundiria certos detractores»; aliás, se estas ou equivalentes medidas não
forem tomadas, e de forma «aberta, franca e decididamente», então «em futuro
não muito distante as circunstâncias hão-de impô-las, perdendo-se a maior parte
das vantagens, com os prejuízos que não me atrevo a dizer».
Esta
proposta de Reforma da Administração Ultramarina foi, conforme relato de Franco
Nogueira, enviada por Adriano Moreira «sob sugestão de Salazar» – o qual, no
momento, achava que devia ser «ponderado sem restrições» o problema «grave e de
fundo» de decidir se devia ou não manter-se a política ultramarina que vinha
sendo prosseguida – para «parecer fundamentado» aos antigos Ministros do
Ultramar, aos antigos governadores ultramarinos e aos membros do Conselho
Ultramarino.
Adriano
Moreira e Silva Cunha, embora sem explicitarem o processo de consulta,
consideram que se tratava de um “parecer” solicitado em vista da revisão da organização
política do ultramar, na sequência de deliberação do Conselho de Ministros.
Embora, segundo Adriano Moreira, a convocação do plenário do Conselho
Ultramarino tenha sido decidida nesse Conselho de Ministros «ao qual assistiu
como convidado e activo interveniente o governador-geral de Moçambique», o
certo é que à data em que Marcelo Caetano emitiu o seu “papel” ainda não havia
qualquer convocatória do Conselho Ultramarino (feita, para revisão da Lei
Orgânica do Ultramar, só em 22 de Setembro do mesmo ano) e, portanto, o
“Memorial” em causa não foi emitido propositadamente para ser apresentado em
tal reunião. Aliás, o texto de Marcelo Caetano ia para além de mera alteração
da Lei Orgânica do Ultramar pois defendia uma indispensável revisão
constitucional (processo para que também e em primeiro lugar apontava Sarmento
Rodrigues).
O
“paper” apresentado por Marcelo Caetano é o único que sobressai entre todos os
pareceres emitidos. Discordando de que, na conjuntura, a solução preconizada
por Sarmento Rodrigues fosse a melhor – visto não satisfazer as três condições
prementes: (1)- melhoria do ambiente internacional; (2)- satisfação dos
interesses nacionais; (3)- eficácia administrativa –, preferiu apresentar um completo e renovador
projecto de Constituição Federal,
criando uns “Estados Portugueses Unidos”. Tal modificação constitucional
passaria pela transformação do Estado unitário em Estado federal, formado por
três Estados Federados (Portugal, Angola e Moçambique), enquanto Cabo Verde
receberia o estatuto de Ilha Adjacente e as demais Províncias ultramarinas
ficariam com o mero estatuto de Província (aliás, não elucidado). Marcelo
Caetano assumia tratar-se de «uma modificação profunda», mas parecia-lhe ser a
«única jogada» que valia a penas tentar no plano institucional. A criação dos
“Estados Portugueses Unidos” implicava um processo constituinte: a constituição
federal seria proposta, na altura de se abrir a revisão constitucional, pelos
deputados do Ultramar, após moções aprovadas nos Conselhos Legislativos de
Angola e Moçambique; depois de aprovada a Constituição Federal pela Assembleia
Nacional, logo lhe seria adaptada a Constituição Portuguesa (enquanto Estado
Federado) e Angola e Moçambique elaborariam as suas próprias Constituições
(também como Estados Federados). Marcelo Caetano não fazia qualquer referência
à intervenção das populações nativas, restringindo-a à maior participação dos
colonos na administração (pelo que seria acusado de defender um “secessionismo
branco”) e, apesar de não concordar com a orientação unitarista e
integracionista que o Governo prosseguia em matéria económica, considerava que
esta não seria óbice à reforma sugerida.
Ainda segundo Franco Nogueira, o parecer de
Marcelo Caetano foi «ponderado» por Salazar, o qual, além de descortinar
«muitos pontos de semelhança» com as teses defendidas pelo ex-Ministro da
Defesa Botelho Moniz um ano antes, concluiu que a sua aplicação traria a «perda
do Ultramar a curto prazo». Porém, o Memorial
iria, em Outubro desse ano, aparecer no plenário do Conselho Ultramarino
trazido ao que diz supor Adriano Moreira «pela mão do comum amigo Dr. José de
Almeida Cotta, secretário-Geral do Ministério». Mas Salazar – que recebia cópia
de todos os documentos distribuídos no plenário – «fez a sua única intervenção
mandando pedir que a circulação fosse interrompida, e o documento […] entrou na
penumbra». Silva Cunha acrescenta que – conforme o dossiê que lhe foi
transmitido para preparação do plenário – as pretensões federalistas também
foram, na altura, sustentadas pelos anteriores Ministros do Ultramar, Francisco
Vieira Machado e Vasco Lopes Alves.
Ao contrário do que sugerem vários autores, o Memorial de Marcelo Caetano não teve
qualquer debate ou repercussão no plenário do Conselho Ultramarino, nem para
tal fora elaborado. Na minha opinião, ao apresentar este Memorial nos termos em que o fez (reservado e discreto), Marcelo
Caetano cometeu um erro com consequências imprevistas e prolongadas: quer
imediatas (porque o seu texto acabou por ser conhecido e logo escamoteado no
Conselho Ultramarino em que apenas se discutia a revisão da Lei Orgânica do
Ultramar), quer em 1968 (porque a sua “recuperação” pesou na nomeação como
Presidente do Conselho), quer em 1971 (porque o seu passado federalista
obnubilou a proposta de revisão constitucional), quer em 1974 (porque a
reapropriação do federalismo no livro de Spínola Portugal e o Futuro acelerou a sua derrota e exílio).
Nota:
este texto baseia-se nas investigações do autor sobre A Constituição Colonial Portuguesa – Das colónias, do império, do
ultramar e da descolonização, a publicar.
António Duarte Silva
Aguardo com expectativa o seu livro.
ResponderEliminarDeste excerto concluo desde já duas coisas:
1)Havia no regime, a par de "bonecos" como o que está na nota de 1000 escudos, homens de inegável qualidade política e grande cultura e que reflectiam, genuinamente preocupados, o futuro do país com fina acuidade e enorme profundidade como Sarmento Rodrigues, Adriano Moreira e Caetano e mesmo, no campo oposto, Franco Nogueira. Pergunto-me se não lhes faltou em coragem (política, coragem moral tinham-na) o que lhes sobrava em reflexão política e se o país, e acima de tudo, as ex-colónias não ficaram a perder com isso.
2)O medo da mudança, ainda que tenha o objectivo de manter a essência do "status", faz parte da natureza das ditaduras e dos ditadores. E Salazar não escapou a esse ADN. O homem "achava que devia ser «ponderado sem restrições» o problema «grave e de fundo» de decidir se devia ou não manter-se a política ultramarina que vinha sendo prosseguida", mas, antes, na sua cabeça já havia concluído que a política ultramarina “dominação para servir” era para manter. E, tragicamente, manteve.