Em “Aleluia”, Bruno Vieira Amaral abordou uma parte
importante mas esquecida da nossa fauna urbana e suburbana: as igrejas
protestantes que tentam recriar o Mar da Galileia no meio de caves, garagens e
barracões.
Começo com uma história que nunca
usei por respeito pela Tomásia, avó do Bruno, senhora que, segundo reza a
lenda, gostava muito de mim. Nunca percebi porquê, visto que na altura eu era
um sujeito demasiado dado aos prazeres do mundo, o tal mundo que ela detestava
a partir do seu templo religioso que a abrigava dos ventos mundanos. Seja como
for, a história passou-se numa manhã de Agosto de 1991. Ainda era cedo, mas já
estava calor, e o meu tio caiava o muro da casa. Se o calor de Agosto é sempre
sufocante, o calor de Agosto no meu bairro (Portela da Azóia) era um calor de
Gomorra. Estávamos sempre rodeados por uma neblina amarela, uma patina de pó
das ruas não alcatroadas. Imaginem Dickens em amarelo (e não em cinzento) e
ficam com uma imagem certeira. Ao fundo da rua, ainda meio camufladas pelos
torvelinhos de pó, comecei a ver duas senhoras com papéis da mão. Desceram a
rua, aproximaram-se, pediram para falar com o meu tio, mas ele reagiu como
alguém que vê um mafarrico: enxotou-as, salpicou-as de cal com a trincha. A
minha tia, como boa alentejana, não se benzeu, mas foi ver do mau olhado,
derramando gotas de azeite em água. “São testemunhas de Jeová, nunca se sabe”.
O episódio ficou esquecido no meu estendal de memórias, como se fosse um par de
peúgas sem utilidade. O que é normal: eu não tinha os meios intelectuais e
morais para o analisar. Só muito mais tarde, quando me aproximei da fé, é que
passei a valorizar o episódio. Afinal, o par de peúgas era importante e hoje
percebo a óbvia deselegância. As Testemunhas de Jeová como a Tomásia eram (e
são) um cruzamento entre o mafarrico e o bobo da corte, são os totós em quem se
podia bater sem peso na consciência. Isto, repare-se, não significa
concordância teológica com as testemunha de Jeová; significa apenas empatia por
aquelas mulheres que queriam conversar, mulheres como Tomásia, a personagem
principal deste livro - apesar de nunca aparecer. De resto, “Aleluia” é como
“Os Amigos do Alex”: há um fantasma omnipresente que une tudo. No filme, Alex
(Kevin Costner) nunca aparece porque o realizador cortou todas as cenas em que
ele aparece. Aqui não é assim. A Tomásia está sempre presente e “Aleluia” acaba
por ser um confronto comovente do neto com a memória da avó.
Continuo com outra história que
serve para ilustrar a minha paixão por este tema. Eu era um aluno muito cábula,
só estudava no dia dos testes, acordava às 5 ou 6 da manhã e empinava a
matéria; até decorava as composições de alemão sem saber o que estava lá
escrito. Num dado ano lectivo, no final dos anos 90, eu tinha sempre dois
colegas de estudo às seis da manhã: dois “Élderes” de camisa branca e gravata
preta a comer o seu pequeno almoço na marquise oposta à minha, no prédio em
frente ao meu. Eu fazia este esforço só na época dos exames, mas eles apresentavam
esta disciplina militar todos os dias do ano; saíam todas as manhãs para um
subúrbio já com a patina cinzenta de Dickens (Odivelas, Póvoa), já com
alcatrão, já com marquises, já com o tal “caos urbanístico”, já com gente
apressada porque perde três horas por dia só nos transportes. No entanto, os
tipos saíam todos os dias para este mundo para tentar converter pessoas através
de palavras. Repare-se: só através de palavras. Como é que isto não é
comovente? Claro que em troca recebiam encontrões, gozações, agressividade e
até apanhavam com chumbinhos de pressão de ar no traseiro yankee. Mas
continuavam, persistiam. Na altura, confesso, não os compreendia. Nem
compreendo ainda, para falar verdade, mas pelo menos já acordo todos os dias às
seis da manhã.
Estas duas histórias explicam o meu
fascínio pelo tema de “Aleluia”. É um tema que me fascina, porque respeito
muito as pessoas destas pequenas igrejas. Compõem uma pequena minoria que, como
diz o Bruno, é a minoria desprezada pela agenda das minorias. Não, não pensem
que sinto pena. Não é pena, é inveja. Inveja pela coragem; a coragem de assumir
a fé de forma franca numa época não muito simpática para crentes cristãos; a
coragem para tentar construir o mar da Galileia não numa Igreja imponente mas numa
garagem suburbana apertada, feia, sem a dignidade imperial de uma Mesquita,
Catedral ou Sinagoga. E, de resto, o grande ponto de “Aleluia” é este respeito
por quem procura recriar a Macpela no meio do alcatrão, das buzinas, do cheiro
a tubo de escape e ao lado de um amontoado de pneus velhos. Concordem ou não
com as opiniões do Bruno, julgo que os protestantes deste país só podem sorrir
com o enquadramento geral do livro. Porque é um enquadramento que – repito –
mostra a coragem intrínseca destas pessoas.
Quando se pensa nestas igrejas
protestantes é impossível não pensar no campo aberto dos EUA. Na América, há a
dignidade do espaço. As pessoas não estão em cima umas das outras, conseguem
sempre um espaço digno nem que seja pelo facto de estarem sozinhas num raio de
centenas de metros. A igreja até pode ser o barracão de Duvall em “O Apóstolo”
ou o casinhoto de Paul Dano em “Haverá Sangue”, mas está ali sozinha, não fica
amarrotada ou tapada. Aqui na Europa, aqui em Portugal, isso é impossível.
Estes crentes só podem criar as suas igrejas em caves ao lado de oficinas de
carros, em barracões de contraplacado ao lado de churrascarias e lavandarias,
em ruas que só têm caixotes de três andares com marquises, num beco onde não
aparece a quadriga de cavalos brancos do “Ben Hur”, mas um Opel Corsa. Como é
que posso ficar indiferente a esta coragem? Como é que posso não invejar a
coragem do meu amigo Tiago Cavaco que abriu uma Igreja numa cave de Benfica? E,
no caso das Testemunhas de Jeová, a situação é ainda mais trágica. Pelo que
percebo, o grande mote desta organização não é a conquista de riqueza dentro do
mundo, mas sim criar uma barreira protectora contra o mundo. Mas como é que
podemos criar um cordão sanitário contra o mundo quando temos de viver nesse mesmo
mundo? Nos EUA, os Amish têm espaço para criar comunidades paralelas que vivem
de facto fora do mundo. Como é que isso é possível no Vale da Amoreira, Santa
Iria, Moscavide, Lisboa?
Bruno Vieira Amaral
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Esta empatia com a mensagem de fundo
de “Aleluia” não anula, porém, duas discordâncias que eram mais ou menos
inevitáveis. Em primeiro lugar, julgo que seria necessário separar as águas
entre os diferentes cultos, há diferentes graus de solidez teológica que é
preciso sublinhar e julgo que o Bruno podia ter feito mais neste ponto. Para
não me acusarem de imperialismo católico, vou até exemplificar o que estou a
dizer com algo que está fora do âmbito protestante: Fátima. Posso respeitar
pessoalmente quem vai a Fátima, mas não respeito teologicamente aquele
marianismo que é um fim em si mesmo, o marianismo que diz “eu gosto muito da
Nossa Senhora, já Jesus não me diz nada”. Da mesma forma, não respeito
teologicamente o pagamento de promessas, “se o meu filho entrar na faculdade,
vou de joelhos até altar”, etc. Como diz Thomas Halik, estes pseudo-crentes são
muito parecidos com os ateus, porque exigem provas físicas da existência de
Deus. Aliás, exigem uma transacção comercial para ter fé. É como se a sarça
ardente fosse para todos. Pior: é como se a sarça ardente tivesse a forma de
conta bancária.
A segunda discordância não é bem uma discordância, talvez seja uma questão de perspectiva. Duas pessoas, mesmo quando são muito parecidas, olham para um objecto de forma diferente. E, neste sentido, o meu herói de “Aleluia” não é o herói escolhido pelo Bruno.
A segunda discordância não é bem uma discordância, talvez seja uma questão de perspectiva. Duas pessoas, mesmo quando são muito parecidas, olham para um objecto de forma diferente. E, neste sentido, o meu herói de “Aleluia” não é o herói escolhido pelo Bruno.
No livro, salta à vista o respeito
que o Bruno sente por Nuno Soares, a outra grande personagem do livro, a par de
Tomásia. Estamos a falar de um jovem que cresceu no meio baptista para depois
romper com a instituição, alegando que a instituição seca a fé; Soares acaba
por sair da organização num inequívoco acto de coragem e, mais tarde, parte
para uma missão evangélica na República Checa. É impossível não reconhecer
coragem, é impossível não sentir uma volúpia literária por Nuno Soares.
“Aleluia” explora isso muito bem, até porque o Bruno (que também deixou uma
igreja) sente uma empatia imediata pelo Nuno, sente simpatia por aquela
vivência purista e não institucional da fé. Ora, se me permitem, irei
distanciar-me um pouco desta posição, até porque tenho uma auto-crítica a
fazer.
Eu percebo a posição do Nuno. Eu
também pressinto uma fé mecânica, monótona, morta em muitas pessoas. Essa até é
uma das razões que tem adiado o meu regresso à Igreja. Aquela minha tia que
acredita na crendice do mau-olhado é muito mais cristã e humana do que boa
parte do beatério farisaico. E, sem modéstia, sei perfeitamente que, com todas
as minhas dúvidas, estou mais dentro da Igreja do que muita gente que passa lá
a vida. Também sei que o encanto que tenho provocado em católicos e
protestantes advém desta minha posição intermédia, entre linhas, ambígua, sexy.
Eles pressentem que estou a caminho da fé, à procura de refúgio, e por isso
oferecem a sua simpatia porque me querem seduzir. No fundo, sou a miúda gira
que católicos e protestantes querem sacar. Para mim, seria muito fácil
perpetuar este estado de graça, seria muito proveitoso continua nesta posição
fácil e ambígua, seria vantajoso continuar a caminhar sem bater nesta ou
naquela porta. Mas isso não é aceitável. Se quero ser coerente com a minha fé,
tenho de dar passos no sentido da Igreja, tenho de completar o trajecto. Não
posso ficar eternamente no umbral, tenho de entrar e testar a sério a minha fé.
Porquê? Sem a comunidade e sem a autoridade da instituição, é difícil
distinguir entre fé e emoção. Por outras palavras, tenho de saber se a minha fé
é mesmo cristã, tenho de passar no crivo de quem sabe, de quem representa uma
tradição de 2000 anos. O Nuno Soares sabe que é cristão a sério, porque teve
formação na instituição que deixou. Eu sinto que tenho apenas uma opinião,
porque nunca pertenci a uma igreja. Eu estou a ir, ele está a vir. Tal como o
Bruno, diga-se. Eles deixaram uma igreja, eu estou à procura de uma igreja;
eles querem liberdade em relação às instituições que formaram a sua infância,
eu quero uma instituição que me dê esse infância de fé que nunca tive. Os
caminhos não podiam ser mais opostos. Portanto, o meu herói desta história
religiosa não é aquele que parte à aventura sozinho, é aquele que fica e que
tenta reformar a instituição no atrito do dia-a-dia. O meu herói é alguém como
o Bispo O’Malley, responsável pela investigação aos casos de pedofilia na
Igreja. Há dias, no “60 Minutos”, vi como ele foi apertado pela jornalista, vi o
seu desconforto. Ele percebe que – neste momento - parte da Igreja é uma
esterqueira, mas também sabe que a sua fé resistirá.
Termino como comecei. No velório da
Tomásia, na Igreja da Baixa da Banheira, duas senhoras começaram a discutir na
sala junto ao corpo; cada uma tinha a sua fé, se calhar uma era Testemunha de
Jeová e outra era católica ou qualquer outra coisa. O tom e a ocasião eram
obviamente impróprios e, mais uma vez, ficou evidente que muita gente perde a
humanidade no meio destas lutas farisaicas entre igrejas. Claro que o Bruno deu
um berro enraivecido, dizendo que não era próprio o que estavam a fazer. Isto
foi há uns quinze anos. Ora, este livro mostra que este Bruno já não é assim,
esta raiva anti-igrejas está a atingir níveis historicamente baixos. Isso vê-se
no respeito que sente pela fé dos outros - “a fé autêntica dos outros faz-nos
sentir pequenos, quase culpados”. Isso vê-se também na forma como percebe que a
religião, seja ela qual for, não é só poesia celestial, também é prosa para a
nossa relação com o mundo (Tomásia, alentejana desenraizada na Grande Lisboa,
encontrou na sua Igreja a comunidade que lhe deu sentido de pertença). Isso
vê-se na forma como ele não esconde uma fé humanista retirada não Deus mas do
Camus da “A Peste”: não sei se Deus existe, nem sei se existe Humanidade, mas
sei que aquele homem está a sofrer e sei que o meu dever é ajudá-lo. Ou seja, a
hipotética ausência de Deus não autoriza o cinismo.
Para mim, chega.
Henrique Raposo
PS: texto que nasce de duas crónicas publicadas no
Expresso Diário.
Muito bom.
ResponderEliminarGosto de análises claras, sem tentativas de atirar areia para os olhos de quem lê nem pretensões de contar mais do que um experiência que é pessoalíssima. À semelhança das Testemunhas de Jeová, é assim que se pode converter os outros (e a nós próprios, acrescento).
Para o caminho que percorre, recomendo-lhe "Porquê a Igreja?" de Luigi Giussani, um defensor da racionalidade no catolicismo. Pode ajudar a passar a porta e instalar-se confortavelmente. Ou a dar meia volta, quem sabe! Boa caminhada.