Foi no verão de 1972, ano em que se celebrou através
do “vasto mundo” o quarto centenário da publicação de Os Lusíadas de Luís de Camões. Encontrava-me eu em Lourenço Marques, por
ocasião de uma longa viagem, durante mais de um mês, por Angola e Moçambique.
Viagem que se deveu ao meu interesse – e ao meu desejo profissional – em
conhecer tão bem quanto possível, em primeira mão, o mundo de língua
portuguesa, a fim de, na minha qualidade de professor universitário nos Estados
Unidos, poder falar com conhecimento de causa aos meus alunos e a todos os
interessados sobre a parte mais relevante desse mundo. A viagem começou em
Angola e terminou em Moçambique.
Um dia, ao sair do meu quarto, num
hotel de Lourenço Marques, cujo nome não recordo, para grande surpresa minha,
dou com os olhos na D. Mécia de Sena. Refeito do espanto, corri para ela para a
saudar e para lhe perguntar por Jorge de Sena (passados anos, a D. Mécia, que
nunca esquece nenhuma destas coisas, disse-me que a primeira observação que eu
fiz, ao atinar nela, foi mais ou menos assim: - que lindo cabelo que tem! – É
que, apesar de uma convivência quase diária, durante três verões e um ano
inteiro, com a família Sena em Madison, Wisconsin, sempre tinha visto D. Mécia
com o cabelo apanhado atrás, no toutiço, e nunca a descer-lhe ondulado pelas
espaldas como nesse dia, pela manhã).
A D. Mécia disse-me que o Jorge estava
a acabar de se arranjar para irem tomar o pequeno almoço. Jorge de Sena
apareceu logo e fomos tomar o pequeno almoço juntos. Tanto para dizer e para
contar e, sobretudo, para ouvir, e o tempo tão escasso! Recordo que, entre
outras coisas, referi que no dia anterior eu tinha feito uma conferência na
Universidade de Lourenço Marques e tinha participado num longo debate com um
grande grupo de estudantes e alguns professores. Outrossim lhes disse que dois
dias antes eu tinha feito uma conferência na sede da Sociedade Cultural Luso-Americana,
ou nome parecido, a convite do respectivo presidente, o juiz Montezuma de
Carvalho, e com a presença do Cônsul Americano em Lourenço Marques e de outra
gente culta e fina.
Quase como uma criança, nunca
satisfeita com o que lhe dão, Jorge de Sena, o mais carente e mimado membro da
família Sena (de que faziam parte nove filhos e Dona Mécia, naturalmente), fez
essencialmente este comentário: - Pois é, enquanto o discípulo é convidado a
falar em universidades portuguesas d’aquém e d’além-mar, o Mestre jamais pode
pensar num convite desses. Há de ver que num destes dias o Cirurgião ainda vai
ser convidado a falar na Universidade de Coimbra (o que aliás viria a
acontecer, anos mais tarde, por mais de uma vez, graças aos amáveis convites
dos colegas e amigos Aníbal Pinto de Castro e Vítor Manuel de Aguiar e Silva),
enquanto eu nunca virei a ter essa honra e esse prazer! (Claro que eu podia
retorquir a Jorge de Sena, a brincar, naturalmente, que eu, ao contrário dele,
nunca tinha feito nenhuma cantiga de escárnio e mal-dizer, que ele baptizou de
dedicácias, postumamente publicadas com esse título, contra nenhum venerando
catedrático da veneranda Universidade de Coimbra, nem – o que era mais
importante, e mais grave – tinha posto a ignorância à mostra de alguns dos
pomposos doutores e das vacas sagradas dessa universidade pluri-secular. Para Jorge de Sena, a vaca sagrada era
Carolina Michaelis de Vasconcellos, e os principais pomposos doutores eram
Costa Pimpão, Giacinto Manuppella e Paulo Quintela.) Esclareço que, por ironia
do destino (bendita ironia!), Jorge de Sena fez essa viagem a Moçambique, a
convite da Associação dos Antigos Alunos da Universidade de Coimbra. E a
verdade é que Jorge de Sena se tinha formado na prestigiosa Faculdade de
Engenharia da Universidade do Porto, a funcionar nesse tempo na Rua dos Bragas,
e se tinha doutorado em Letras na Universidade de São Paulo, no Brasil. E
outrossim esclareço que Jorge de Sena, embora não tenha perorado na
Universidade de Lourenço Marques, como tanto teria desejado, nesse Verão
camoniano de 1972, que ele esplendorosamente abrilhantou em três continentes,
em compensação fez uma magnífica conferência sobre o vocabulário de Os Lusíadas, no Teatro de Gil Vicente,
da dita cidade, com casa cheia para além dos limites. Êxito retumbante. De
braços abertos, em grande pose teatral, como ele tão bem sabia fazer, no final
foi ovacionado durante vários minutos.
Devo dizer que, nalguns destes casos
referentes à carência afectiva de Jorge de Sena, assim como à sua carência do
devido reconhecimento e admiração, a percepção do seu inteiro significado, em
todas as suas dimensões, só eu viria a tê-la com o decorrer do tempo. É que o
contencioso de Jorge de Sena com Portugal era muito complexo e tinha bastante a
ver com a sua personalidade e com a sua agudíssima sensibilidade; tinha a ver
com o seu genial temperamento polémico; tinha a ver com indizíveis injustiças e
perseguições de que havia sido vítima, e continuava sendo vítima, por parte de
muitos escritores e de membros da classe académica de Portugal; tinha a ver,
sobretudo, com uma profunda relação de amor e ódio, por parte de Jorge de Sena,
para com Portugal.
Desta relação de amor e ódio fui eu
testemunha sinóptica em mais de uma ocasião. Quando as circunstâncias assim o
postulavam, Jorge de Sena proferia e escrevia contra alguns governantes e
membros da inteligentzia portuguesa as mais duras catilinárias. Porém,
quando os americanos ou indivíduos de outras nacionalidades, tão encontradiços
nos meios académicos dos Estados Unidos, e que mal conheciam Portugal, se
atreviam a fazer críticas dessa natureza, Jorge de Sena parecia uma fera a
defender a velha pátria e os seus valores e pergaminhos. E devo dizer que com
toda a razão, como a mim me aconteceu e acontece com demasiada frequência.
(Neste
contexto, em parêntesis, a título de exemplo, no sentido de melhor elucidar a
fúria de um génio como Jorge de Sena, quando, em terras estrangeiras era
chamado a terçar armas pela velha Pátria, vou referir o que me aconteceu uma
vez durante os meus dois anos de professor de Espanhol, Francês e Latim na
Universidade da Nevada, em Reno, entre 1966 e 1968. Sucedeu que a minha
ex-mulher, a especializar-se em Física e Matemática, nessa mesma universidade,
resolveu fazer alguns cursos de literatura francesa, tendo sido um deles sobre
a literatura do século XVIII, dado por um professor de França, radicado nos
Estados Unidos, de cujo nome não quero lembrar-me. Um belo dia a Júlia contou-me
que esse professor tinha passado a aula a tentar comentar o famoso poema de
Voltaire sobre a Divina Providência, composto, como se sabe, a propósito do
terramoto de Lisboa de 1 de Novembro de 1755. Que fez o dito professor? Passou
a aula inteira a repetir vezes sem conta, à guisa de estrebilho, “le
tremblement de terre en Espagne”, sem nem sequer uma vez dizer o que todos
sabem ou devem saber: “le tremblement de terre à Lisbonne.” A raiva com que eu
fiquei contra esse mesquinho e velhaco colega gaulês não se pode descrever. Até
porque eu já o conhecia de ginjeira pelo chauvinismo gálico que lhe escorria
dos lábios asquerosos a toda a hora. Tendo-lhe ficado com uma ojeriza
inqualificável, pus-me à cata da primeira oportunidade para o desmascarar em
praça pública. E essa oportunidade não levou – nem podia levar - muito tempo a
surgir, tal e tanta era a minha fúria contra esse maldoso ignoramus. Estávamos numa recepção e eu aproveitei o momento em que
ele se encontrava rodeado de vários colegas para me aproximar do grupo e
encaminhar imediatamente a conversa para a célebre polémica entre Rouseau e
Voltaire, a propósito do Terramoto de Lisboa e da Divina Providência. À maneira
de quem não quer a coisa, fazendo-me ignorante e desejoso de aprender coisas
que só esse minus habens Gaulês
sabia, peço-lhe que me esclareça certo aspecto dessa polémica entre os dois
grandes escritores, a respeito da Divina Providência. E nem dito nem feito.
Como já esperava, Monsieur Gaulois escancara os beiços babosos e vomita o seu
repelente veneno, falando do “tremblement de terre en Espagne.” - Alto aí, seu
gálico sem vergonha – berro-lhe eu, olhos nos olhos. Tout en français, naturellement, que agora traduzo para Português.
Que ignore desavergonhadamente as minhas Cantigas de Amigo e o meu Gil Vicente
e o meu Camões e outros mais, vá lá cos diabos: mas o terramoto de Lisboa de
1755 é meu, só meu: é todo única e exclusivamente de Portugal. Ouviu, seu
ladrão nojento. “Le tremblement de terre
à Lisbonne”, “le tremblement de terre
à Lisbonne”; “le tremblement de terre
à Lisbonne” – berrei-lhe eu nas fuças gálicas, num crescendo cheio de
castiça raiva lusitana.)
Fechado
o longo parêntesis, e rogando se me releve a concessão feita ao “moi haissable”
de que fala Pascal, só me resta concluir que nos longos anos que Jorge de Sena
peregrinou e sofreu, auto-exilado, pelo mundo de Deus e do diabo, conheceu e
viveu muitos momentos idênticos ao acabado de narrar.
Sobre a justa razão de ser da ambivalência da atitude
de Jorge de Sena para com Portugal (a balançar entre amor e ódio), refiro
apenas um caso, à guisa de exemplo. Estávamos em 1973, segundo me parece. Um
dia a D. Mécia, com a dignidade que sempre a distinguiu, fez-me saber que ela e
o marido gostavam muito que duas das filhas – a Joaninha e a Manelinha, se bem
me recordo - fossem nesse verão fazer um curso de férias na Universidade de
Lisboa, mas que não tinham meios para lhes pagar as despesas com a viagem e com
as propinas, pelo que só uma bolsa de estudos lhes podia valer.
Apostado
em compensar, ainda que só simbolicamente, a quem tanto culturalmente devia,
admirava e estimava, pensei logo nalguma maneira de dar o meu modesto contributo
para ajudar a resolver esse problema.
Como eu estava bem relacionado com o
Instituto de Alta Cultura, em virtude de, entre outras coisas, ter convidado o
Professor Américo da Costa Ramalho, vogal do dito Instituto, a fazer uma
conferência sobre Virgílio e Camões na minha universidade, o que muito
contribuiria para, nesse mesmo ano, ter conseguido a criação de um Leitorado de
Português na minha Universidade – Universidade de Connecticut -, pedi uma audiência à Presidente desse
Instituto, ao tempo a Professora Doutora Maria de Lourdes Belchior, que eu
conhecia muito bem, e disse-lhe do desejo manifestado por Jorge de Sena e pela
D. Mécia. A Professora Maria de Lourdes ficou um momento em silêncio e depois
disse-me que gostaria muito de dar uma bolsa de estudos a cada uma das duas
filhas do Jorge e da Mécia, mas que, infelizmente, não poderia fazê-lo, dado o
facto de Jorge de Sena ser persona non grata em Portugal, como eu devia
saber. Que por favor compreendesse e que fizesse também compreender isso ao
Jorge e à Mécia, por quem ela – reiterava – tinha uma grande admiração e
amizade. Eu, porém, com a liberdade que o meu passaporte americano me dava,
senti-me à vontade para dizer à Professora Maria de Lourdes que temer
represálias por parte do governo que ela servia, como Presidente do Instituto
de Alta Cultura (as más línguas de então chamavam-lhe Instituto de Alta
Costura), era descabido. Que era verdade que Jorge de Sena não morria de amores
pelo governo português e que de ninguém escondia isso, mas que era igualmente
verdade que ninguém, fora de Portugal, amava mais Portugal e fazia mais em prol
de Portugal que Jorge de Sena. Que não faltariam testemunhas para provar esta
minha asserção. Que eu, pela minha parte, estava disposto a pôr as mãos no fogo
para defender o encendrado amor da pátria vivido a toda hora por Jorge de Sena.
Que Portugal, além de praticar um acto de justiça, só tinha a ganhar com a
concessão de bolsas de estudo às filhas de Jorge de Sena.
E, ouvidas estas e outras palavras idênticas, a
Professora Maria de Lourdes disse-me que eu a tinha convencido. Que não sabia o
que lhe iria acontecer, mas que ia dar essas bolsas de estudo às duas filha do
Jorge e da Mécia. Deu as bolsas e nada lhe aconteceu, nem nada lhe podia
acontecer, como eu sabia de antemão.
É o momento de confessar que este facto me deu muita
alegria. Indirectamente, além de pagar simbolicamente o muito que devia à
família Sena, era também uma maneira de eu servir os interesses de Portugal nos
Estados Unidos em mais uma dimensão.
Arrastado pela minha mania das
digressões, de que Jorge de Sena, aliás, era mestre exímio, só agora me dou
conta de que estas breves notas têm por finalidade, não falar do narrador, mas
evocar a viagem triunfal de Jorge de Sena a Moçambique, em 1972,
metaforicamente compendiada no extraordinário poema que ele escreveu na Ilha de
Moçambique: “Camões dirige-se aos seus contemporâneos”, contemporâneos que,
como nos ensinam os leitores atentos e os entendidos, são não só os de Camões
mas também os de Jorge de Sena.
António Cirurgião
Quem lê isto até pode convencer-se de que a universidade portuguesa melhorou...
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