segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

Três escritores brasileiros.

 
 
 
Ariano Suassuna
 
 
 
EM CASA DE ARIANO SUASSUNA (1927-2014)
 
 
Foi por ocasião da minha primeira viagem ao Brasil, nas férias de Natal de 1975, como representante de uma organização cívica de que me haviam feito membro, recentemente, chamada Companheiros das Américas (Partners of the Americas). Segundo os estatutos, essa associação, inspirada na famosa iniciativa diplomática do Presidente John F. Kennedy, intitulada Aliança para o Progresso (Alliance for Progress), consistia em irmanar alguns dos cinquenta estados americanos com países da América Central e da América do Sul, e, no caso do Brasil, dado que, tal como os Estados Unidos, é uma federação de estados, irmanar um estado americano com um estado brasileiro. De maneira que foi assim que o Estado de Connecticut e o Estado da Paraíba se tornaram irmãos. A finalidade fundamental dessa irmandade consiste no intercâmbio profissional, académico e cultural entre os dois estados, fazendo assim, por exemplo, com que professores de universidades do Estado de Connecticut fossem ensinar, temporariamente, para universidades da Paraíba; com que estudantes de medicina da Paraíba viessem estagiar em hospitais de Connecticut; com que músicos, pintores, escultores atletas de ambos os estados estabelecessem intercâmbio cultural e desportivo. A fim de implementar o melhor possível esse programa, passei eu umas duas semanas das ditas férias em encontros individuais e colectivos com diversos representantes das referidas áreas...e de outras, tais como a da agricultura.
       Cumprida essa missão, aproveitei a oportunidade para fazer um pouco de turismo, tendo sido assim que um guia da Universidade Federal da Paraíba, por sinal um professor de Filosofia de origem portuguesa, me mostrou as principais atracções turísticas do Recife e de Olinda. Como se encontrava então a ensinar Estética e literatura na Universidade Federal de Pernambuco um dos escritores brasileiros vivos a quem eu então muito admirava, Ariano Suassuna, a ponto de haver incluído algumas das suas peças de teatro e o seu romance, Romance D’A Pedra do Reino, nos meus cursos de literatura brasileira, perguntei ao meu guia se me podia proporcionar um encontro com ele. Eu a fazer esta sugestão e ele a encaminhar-se para a universidade. Chegados ao Departamento de que Ariano Suassuna era membro, foi-nos dito que nesse preciso momento acabava ele de descer de elevador para ir para casa. Porém, como antes de nos dirigirmos ao Departamento tínhamos dado conhecimento na recepção do motivo que nos levava à Universidade, íamos nós a entrar no elevador quando ele ia a sair, à nossa procura.
Feitas as devidas apresentações, levou-nos para o seu escritório para conversar. E a propósito das apresentações, quando o meu guia, o tal professor de Filosofia, disse que o seu nome de família era Maia, Ariano Suassuna apressou-se a fazer votos, em tom de brincadeira, de que se não tratasse dos Maias da terra dos Suassunas, pois havia ódio velho entre essas duas famílias, assunto de que aliás trata, um pouco cripticamente, em Romance D’A Pedra do Reino, fundamentalmente autobiográfico, fenómeno para que já me havia chamado a atenção o meu bom colega e amigo Gerald Moser, professor de Português na Pennsylvania State University e pioneiro na promoção e na crítica da literatura africana de expressão portuguesa nos Eatados Unidos da América.
Que banquete de cultura popular nordestina Ariano Suassuna nos deu, servido de uma maneira ainda mais cómica e divertida de comunicar e contar estórias do que a que consta dos seus famosos autos de cariz vicentino, entre os quais ocupa lugar cimeiro O Auto da Compadecida! Neste contexto, informo que, a respeito deste auto, traduzido para diversas línguas e representado com grande êxito em vários países, e mais tarde transformado em filme, contou-nos ele, por exemplo, que dias antes havia recebido um convite, com tudo pago, já se vê, para ir assistir à estreia desse auto a Israel. Que, naturalmente, embora com certa pena, não lhe fora difícil declinar tão honroso convite: primeiro porque odiava avião e tinha horror de andar de avião, a ponto de um dos seus maiores desejos na vida era poder libertar o mundo de todos os aviões e de todos os arranha-céus; segundo, porque tinha outras razões ainda mais sérias para dizer não ao amável convite. Senão, que reparássemos bem na fisionomia dele. Com aquele seu nariz de judeu e com aquela sua compleixão facial de árabe, que imaginássemos por um momento o que lhe podia acontecer em Israel: ser liquidado pelos árabes por parecer judeu e ser liquidado pelos judeus por parecer árabe. Voltando-se para assunto mais relevante, mas igualmente tratado com leveza e em tom jocoso, expôs-nos, nas suas linhas gerais, a súmula do seu manifesto intitulado O Movimento Armorial, que orgulhosa e religiosamente conservo, com uma dedicatória sua, datada de 7 de Janeiro de 1975: “Para António Cirurgião, agradecendo o interesse que manifestou por meu trabalho, o abraço de Ariano Suassuna.” Dentro do contexto do movimento armorial, disse-nos que, se as condições lho permitissem, não seria professor universitário nem viveria no Recife. O seu ideal era viver no campo, no seio da natureza, um pouco à maneira dos pastores e dos agricultores das Eglogas e das Geórgicas de Virgílio. Mas a responsabilidade de pai de família impedia-o de realizar por então esse profundo desejo. Mas que esperava poder vir a realizá-lo num futuro não muito longínquo. Que em parceria com um cunhado seu, já tinha um grande rebanho de ovelhas, mas, segundo os cálculos feitos, ainda precisavam de mais umas centenas de cabeças, para poder dedicar-se exclusivamente a essa profissão.  
         A determinado momento, Ariano Suassuna olhou para o relógio e disse-nos que, apesar de ter o maior prazer em continuar a conversar conosco, eram horas para ir jantar, pois na casa dele, com a esposa e as cinco filhas (eram cinco, se bem me recordo), vivia-se a horário. Dito isso, perguntou-nos se tínhamos compromisso com alguém para o jantar. Que não, o que era a pura verdade. E que faz o Ariano Suassuna? Pede-nos que o acompanhemos, que vamos jantar com ele e com a família: que a mulher dele já estava acostumada a que ele aparecesse em casa com convidados para almoçar ou para jantar, sem avisar previamente. E assim fizemos. Sentados todos à mesa, após haver-nos apresentado mutuamente, Ariano Suassuna fez uma breve prece de acção de graças, com uma simplicidade enternecedora. Começava a sopa a ser servida, quando Ariano se volta para o meu colega da Universidade Federal da Paraíba e lhe pergunta pelo motorista. Que o motorista estava à nossa espera no carro. Ouvido o quê, Ariano pediu licença, levantou-se da mesa e, passados instantes, apareceu acompanhado do motorista, apresentou-o a todos e mandou-o sentar à cabeceira da mesa. Quem poderá jamais esquecer esse gesto de uma beleza evangélica? Eu jamais poderei esquecê-lo, tão fundo me calou na mente e no coração.
 
Jorge Amado

JORGE AMADO (1912-2001) NA “ÂGE DE LA SAGESSE”
 
         Em  Janeiro de 1982, vi-me convidado pelo Cônsul Geral de Portugal em Salvador, Dr. Malheiro Dias, filho do célebre diplomata e escritor português de princípios do século XX,  Carlos Malheiro Dias, por iniciativa e a conselho do adido cultural do Consulado Americano em Salvador, o Doutor John Dwyer, grande amigo meu e casado com uma antiga aluna minha na Universidade de Connecticut, a D.ra Rosa Veloso Dwyer. Vi-me convidado, repito e esclareço, para fazer duas conferências no Real Gabinete Português de Leitura de Salvador: uma sobre Camões e outra sobre Jorge de Sena. Para grande satisfação minha, a família Dwyer teve a amabilidade de me hospedar na casa deles, uma penthouse com uma vista fabulosa para a cidade e para o mar. Aí pelo terceiro dia da minha estadia em Salvador, a Rosa e o John decidiram dar uma festinha em honra do velho amigo e antigo professor. Festa simples, em família, com poucos convidados, para jantar e conversar. Festa inolvidável, porém. Presente, para agradável surpresa minha, enchendo o ambiente com a sua alegria palpavelmente irreverente, esfusiante e contagiante, estava o maior cantor da história e dos mitos, das glórias...e das inglórias da Bahía, o escritor do Brasil mais lido, conhecido e celebrado em todo o mundo: Jorge Amado. Foi no ano em que ele celebrou 70 anos. Bahía embandeirada em festa e mergulhada em multímodas comemorações jorgeanas durante 365 dias. Nem outra coisa era de esperar de quem se propunha festejar e honrar condignamente a maior atracção turística da Cidade de Salvador de Todos os Santos...e de muitos pecadores, como o autor de Gabriela, Cravo e Canela gostava de sublinhar, no seu tom festivo e carnavalesco. Confesso que eu ainda me não tinha convertido de todo à magia de Jorge Amado, quer dizer ao seu realismo mágico à brasileira, embora alguns dos seus romances fizessem parte obrigatória dos meus cursos sobre o romance brasileiro contemporâneo, entre os quais se contavam Jubiabá, Dona Flor e seus dois Maridos, e Gabriela, Cravo e Canela. É que o primeiro professor que me iniciou formalmente  na obra de Jorge Amado foi um brasileiro muito culto, mas também muito mineiro, o que quer dizer muito tendencioso: o meu saudoso Professor António Salles Filho, mestre exímio de filologia e de linguística. Com isto quero dizer que, para muitos dos intelectuais e homens de letras mineiros, em Minas Gerais faz-se literatura e artes a sério e em profundidade e no resto do Brasil faz-se...folclore e carnaval. Não posso esquecer-me que esse meu professor, na Universidade de Madison, em Wisconsin, onde fiz o meu PH. D. em Espanhol e Português, começou a sua primeira aula sobre Jorge Amado da seguinte maneira: a obra de Jorge Amado pode dividir-se em duas fases: na primeira tem ideias, mas não tem estilo; na segunda tem estilo, mas não tem ideias. Claro que Jorge Amado, muito vivido e espertalhão que era, sabia muito bem o juizo crítico que muitos faziam dele e da sua obra, sobretudo a crítica dita académica e universitária. E foi por isso que, em tom brincalhão, lá me foi dizendo, nessa noite e na tarde do dia seguinte (que ele me convidou a passar com ele e com a esposa, a Zélia Gattai, na sua casa de Rio Vermelho), que não era em vão que os anos tinham passado por ele. Mas vamos por partes. Ao convidar-me a passar a tarde com ele em Rio Vermelho, fê-lo mais ou menos nestes termos: - gostaria que amanhã viessem passar a tarde comigo, você e o John, à minha casa de Rio Vermelho, que é a única zona verde que o governador respeita. E feito e aceito o convite, no fim do serão, ofereceu-me um exemplar do seu livro autobiográfico, O Menino Grapiúna, em edição de luxo, com uma linda dedicatória, a que se juntou a do ilustrador desse livro, Floriano Teixeira, que também fora convidado para a festinha em minha homenagem, em casa da Rosa e do John. Informo, a propósito, que a dedicatória de Floriano Teixeira tem um significado muito especial. É que, além das palavras da praxe, desenhou um belíssimo passarinho, com ar muito digno e pensativo, o que, modéstia à parte, me sensibiliza pelo seu carácter original e peculiar. (Transcrevo entre parêntesis as respectivas dedicatórias: “Para António Cirurgião, na Bahia, com a melhor estima e admiração, o abraço do Jorge Amado. 1982 Salvador Bahia.”  “Para António Cirurgião, com o grande abraço do Floriano Teixeira. Salvador, 16/1/82.”)       
         Tal como ficara combinado, o John Dwyer e eu fomos passar a tarde do dia seguinte, 17 de Janeiro, a casa de Jorge Amado, em Rio Vermelho. Era Verão, e ainda por cima Verão da Bahía, e, por isso, não me surpreendeu ver o Jorge Amado em camisa de manga curta, toda florida, e em calções. Meus santos Orixás! Tanto quadro, tantas peças de escultura, tantos objectos de arte popular, numa casa cheia de luz, de plantas, de sol e da alegria hospitaleira de Jorge Amado e de Zélia Gattai!
           De muito se conversou, mas quero chamar a atenção para um ou outro pormenor mais relevante, na medida em que esses pormenores contribuem para definir um Jorge Amado que eu infelizmente desconhecia. O Jorge Amado marxista militante, deputado federal pelo Partido Comunista Brasileiro, forçado ao exílio na Rússia e em países da União Soviética, autor de romances subversivos, quase panfletários, de tese, à neo-realista mais ortodoxa, era uma vez, passara à história: Fuit Troia. O Jorge Amado que encontrei nessa tarde, e já havia encontrado no dia anterior, tinha atingido l´âge de la sagesse. E esse estatuto fez ele questão de nô-lo traduzir em palavras e acções insofismáveis, começando por nos dizer a mim e ao John que tinha passado a manhã a escrever um prefácio para uma biografia do antigo presidente do Brasil, Juscelino Kubitschek de Oliveira, de quem Jorge Amado nos disse maravilhas, passando depois a criticar, a zurzir e a ridicularizar, sem dó nem piedade, os meninos ricos do Brasil que ocupavam o tempo em passeatas frívolas e inconsequentes, fingindo de revolucionários esquerdistas, em vez de estudarem e trabalharem, a fim de realizarem o lema da bandeira do Brasil: Ordem e Progresso.
          Outra observação que desejo fazer, servindo-me, à guisa de parábola, de dois factos ocorridos nesse preciso dia, é dar o meu testemunho pessoal da fama internacional de Jorge Amado  (para já não falar da fama nacional), e do seu desprendimento das coisas materiais. Exemplifico. Durante a manhã desse dia apareceu-lhe em casa um empresário americano interessado em negociar um contrato no sentido de Jorge Amado lhe dar autorização para adaptar uma das suas obras para um musical na Broadway; e durante a tarde apareceu lá em casa um jovem casal da Argentina a pedir-lhe autorização para adaptar um outro romance seu ao teatro. E o curioso é que, através da conversa, o John Dwyer veio a depreender que a dita adaptação já tinha sido feita, o que levou o John a dizer ao Jorge (o John e o Jorge tratavam-se por tu) que não devia deixar-se explorar assim tão descaramente: que devia defender devidamente os seus direitos autorais.  Em resposta a este conselho amigo Jorge Amado limitou-se a observar que os jovens também tinham direito a governar-se; que, pelo que a si, Jorge, dizia respeito, já tinha mais do que aquilo que precisava para viver desafogadamente. E, proferindo estas palavras, sorriu e fez um gesto largo,  em que mostrava que nada lhe faltava naquela ampla, farta e benta casa.
 
 
José J. Veiga
 

ENCONTROS COM JOSÉ J. VEIGA (1915-1999)
 
         Durante umas férias de Natal, quando começava a preparar o meu curso sobre o conto brasileiro contemporâneo, deparei, casualmente, com três colectâneas de contos, da autoria de José J. Veiga, cuja primeira edição data, respectivamente, de  1959, 1966 e 1972: Os cavalinhos de platiplanto, A hora dos ruminantes, e Sombras de reis barbudos, os quais me eram totalmente desconhecidos. Lidos com certa sofreguidão, logo me dei conta de que eram dignos de figurar num curso dessa natureza. E a verdade é que os alunos saborearam esses contos diferentes, originais, dum realismo mágico sui generis. Lembro-me que a sua leitura e a sua breve análise me levaram a considerar José J. Veiga uma espécie de Kafka menor brasileiro, em tom festivo, fantasista, carnavalesco, brasileiríssimo.
         Por uma daquelas coindidências felizes e benvindas, resolvi ir passar ao Brasil as férias de Verão a seguir ao semestre em que dei esse curso (no primeiro semestre de 1977, se bem me recordo). Tinha acabado de chegar quando vim a saber, por meio de um antigo aluno meu e muito especial amigo, Dr. Armand Pereira, professor de administração pública na Fundação Getúlio Vargas, no Rio de Janeiro, que o goiano José J. Veiga era o director da editora dessa instituição, sita no bairro de Botafogo. Havendo manifestado a esse meu antigo aluno e amigo a minha admiração pela obra desse senhor, ele apressou-se a apresentar-me a ele. E como se tratava de uma pessoa excepcionalmente amável e simpática, e também com bastante tempo para lazer, aproveitei a oportunidade para ter vários encontros com ele. Entre as muitas coisas de que conversámos, três factos me ficaram indelevelmente gravados na mente, que acho oportuno registar. O primeiro relaciona-se com a idade relativamente tardia em que ele, José J, Veiga, apareceu nas luzes da ribalta como contista, a nível nacional (nasceu em 1915 e a primeira edição da primeira colectânea de contos data de 1959, como foi referido acima). Ao perguntar-lhe pela razão de isso ter acontecido assim, ele respondeu-me que, ao verificar que praticamente ninguém se tinha dado conta da sua iniciação no mundo das letras, quando, bastantes anos antes, se lembrara de publicar uns contos em revistas literárias, decidiu passar a escrever – sempre muito pouco – para a gaveta.
         O segundo facto relaciona-se com a colaboração que José J. Veiga deu a João Guimarães Rosa na escrita do vasto, estilística e esteticamente subversivo e heterodoxo romance que lhe deu renome internacional: Grande Sertão: Veredas, cuja primeira edição é de 1956. Contou-me ele que Guimarães Rosa passava horas e horas a fazer e a desfazer as páginas desse complexo romance, fazendo lembrar Penélope a fazer e a desfazer as teias do tecido que nunca tinha fim. Escritas primeiro em plena conformidade com as regras fundamentais da ortografia e da sintaxe tradicionais, essas páginas passavam depois por metamorfoses sem conta até atingirem a sua forma final. Que às vezes Guimarães Rosa agonizava dias inteiros perante a página em branco e o parágrafo escrito primeiro em Português correcto e depois virado e revirado, vertido e subvertido de mil e uma maneiras.
         O terceiro facto relaciona-se com as cerimónia pública no dia em que ele, José J. Veiga, foi galardoado, em paridade com Ariano Suassuna, com um prémio, não sei de que associação cultural brasileira. Por qual das suas obras tenha sido premiado José J. Veiga confesso que não me lembro, mas do que sim me lembro é ele haver-me dito que Ariano Suassuna foi premiado pelo seu Romance d’ A Pedra do Reino. Quando chegou o momento de Ariano Suassuna ser chamado à tribuna para receber o respectivo prémio, aconteceu que, ao contrário do que se esperava – que ele puxasse de umas folhas de papel e passasse a ler um discurso de agradecimento ao digníssimo júri e à digníssima audiência - Ariano Suassuna saiu-se com um improviso tão engraçado, feito no estilo dos sábios matutos do sertão, de que a personagem Grilo do seu famoso Auto da Compadecida é o exemplo emblemático, que fez morrer de rir toda aquela gente. No momento em que a assistência teve a percepção que o improviso tinha chegado ao fim, levantou-se em peso para coroar com uma retumbante e sonorosa salva de palmas as palavras divertidíssimas de Ariano Suassuna. Porém, quando todos pensavam que ele ia abandonar a tribuna, sob o ribombar dos aplausos,  Ariano Suassuna introduziu os dedos da mão direita no bolso de dentro do paletó e pediu a todos que se sentassem, pois ainda tinha de ler-lhes o discurso que escrevera para a ocasião, como mandava a praxe. E leu e leu, numa voz e numa tonalidade tão sem jeito, que parecia um daqueles casos em que a assistência se sente mortificada pelo deplorável papel que o pobre orador é tristemente obrigado a fazer. Isto contou-me José J. Veiga, com visível pena de Ariano Suassuna, mesmo à distância dos anos e dos milhares de milhas que os separavam no espaço, rematando mais ou menos com estes termos: - “que pena que uma pessoa tão inteligente como o Ariano não se tivesse dado conta de que tudo o que dissesse para além do seu inesquecível improviso para mais não serviria senão para causar um tédio mortal aos seus ouvintes!”
 
António Cirurgião

 

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