Houve
de tudo, ali. Gente que se lançou contra a cerca electrificada, na ânsia de uma
morte imediata; outros que tentaram suicidar-se ainda no comboio, cortando as
carótidas com lâminas de barbear; mães que julgaram ser capazes de se esconder,
e aos seus filhos, fugindo para perto dos crematórios fumegantes; homens que
vasculharam a boca de cadáveres hirtos em busca de ouro para os cofres do
Reich.
Auschwitz-Birkenau
ilude todos os limites da verosimilhança. Era até possível sair vivo de uma
câmara de gás, após dez longos minutos a inalar Zyklon B, no meio de um
amontoado pastoso de cadáveres, fezes e urina. Aquilo que dá o mote a O Filho de Saul – uma criança que
sobrevive ao gás, morrendo minutos depois às mãos de um médico nazi – aconteceu
realmente em Auschwitz, a crer no testemunho de Shlomo Venezia, o mais completo
relato que existe sobre a actividade dos Sonderkommandos nos campos de
extermínio. Na entrevista que concedeu a Béatrice Prasquier (e que se encontra
publicada entre nós com o título Sonderkommando,
Lisboa, 2008), Venezia conta que, um dia, um dos homens encarregados de retirar
os cadáveres das câmaras de gás ouviu um ruído estranho. Escutar barulhos
estranhos não era surpreendente, já que os corpos das vítimas continuavam a
libertar gás muito depois da morte. Aquele som, todavia, era diferente, quase
inaudível. Shlomo Venezia e outros Sonderkommandos aproximaram-se do local de
onde provinham os gemidos ténues, e encontraram atónitos uma menina de dois
meses, ainda agarrada ao seio materno, que tentava chupar em vão.
Provavelmente, foi isso que lhe salvou a vida: a força da sucção no seio da mãe
terá limitado a absorção do gás mortal pela criança. Os homens do
Sonderkommando retiraram-na da câmara de gás, mesmo sabendo ser impossível manter
uma bebé junto deles por muito tempo. De facto, logo que viu a menina, um
guarda ergueu a espingarda e disparou, matando-a numa fracção de segundo.
O
gesto do guarda das SS não surpreendeu Shlomo Venezia nem os outros
Sonderkommandos. O que os tinha espantado era a sobrevivência milagrosa de um
ser humano nas câmaras de gás. A morte, essa, fazia parte da sua rotina diária,
estava-lhes entranhada na pele – e no espírito. Mais do que isso, era para
trabalhar com os mortos que ali estavam, isolados no «comando especial», sem
contacto com os outros presos, até chegar a altura em que alguém decidisse que
era tempo de os substituir. Entre milhares de detidos, só eles lidavam com os
mortos, só eles dominavam o processo de «tratamento» das vítimas: acompanhá-las
enquanto se despiam, revistar os seus pertences e haveres, conduzi-las
ordeiramente às câmaras de gás, aguardar os dez a doze minutos de gritos horríveis
e de agonia. Depois, por entre dejectos e um terrível odor acre, havia que
retirar dali os corpos esfacelados, muitos deles com os olhos saídos das
órbitas devido ao tremendo esforço feito pelo organismo na busca sôfrega de
oxigénio; em seguida, havia que cortar-lhes os cabelos e extrair-lhes os dentes
de ouro e as próteses, e colocá-los no monta-cargas rumo ao piso de cima, onde
eram incinerados. O chão era constantemente aspergido, como se vê em O Filho de Saul, para facilitar que os
cadáveres deslizassem enquanto eram puxados, do mesmo modo que as placas dos
fornos eram permanentemente molhadas com água para que a pele dos corpos não
ficasse agarrada ao ferro escaldante. Enquanto isso, outros Sonderkommandos alimentavam
as fornalhas com carvão e, no final, transportavam o amontoado de cinzas para
ser lançado no Vístula, sem deixar rasto nem vestígios (os nazis chegaram a
organizar um horripilante comércio com os familiares das vítimas, vendendo-lhes
urnas que supostamente guardavam os restos dos seus parentes, quando, na
verdade, continham um punhado de cinzas apanhadas ao acaso). Alguns ossos, como
os da bacia, queimavam mal, resistiam ao crematório; os Sonderkommandos tinham
de os triturar antes de serem misturados com as cinzas. Em jornadas de trabalho
de doze horas, com turnos de dia e de noite, em laboração contínua, também
escavavam as valas para onde outras vítimas eram levadas e, em fila indiana,
baleadas na nuca, caindo sobre as labaredas e os corpos calcinados (as fossas
eram capazes de queimar mil pessoas numa hora). No fundo das valas, havia que
ter cuidado para que o fogo não se apagasse, pelo que se construiu um canal que
recolhia a gordura libertada pelos corpos em chamas e depois usada como
combustível ou acendalha. Noutros casos, competia-lhes segurar a cabeça da
vítima para que o soldado das SS a abatesse, guardando uma distância suficiente
de modo a que os estilhaços do crânio ou o sangue que jorrava não atingissem o
assassino. «O facto de ficar sujo incomodava o alemão», diz Shlomo Venezia.
Ninguém escolhia entrar no «comando
especial»; e sair, menos ainda. Os Sonderkommandos eram regularmente
substituídos, sendo mortos os que já não serviam por falta de forças ou pela
necessidade de eliminar todos quantos conhecessem o maior dos segredos dos
campos, o interior das câmaras de gás. Nem sequer aos guardas SS «não
iniciados», que ignoravam os gaseamentos e os crematórios, os Sonderkommandos
podiam dizer o que faziam. Não por acaso, os membros dos Sonderkommando eram
apelidados de «portadores de segredos» (Geheimnisträger).
Manter as vítimas na ignorância era a melhor forma de assegurar que a morte em
massa se desenrolaria com a cadência adequada, a uma escala industrial sem
falhas nem contratempos. Existe uma estranha procura de assepsia num ambiente
carregado de mortes e pestilências, de sangue e excrementos. Após cada
gaseamento, passados vinte minutos para a ventilação do espaço, os
Sonderkommandos avançavam para recolher os cadáveres mas também, como se vê no
filme, para limpar o sangue e a sujidade, sendo inclusivamente retocada a cal
das paredes para que todos – homens e mulheres, crianças e velhos – entrassem
nas câmaras sem suspeitar o que lhes iria acontecer. Curiosamente, os que já
estavam presos no campo há mais tempo eram os que ofereciam menos resistência.
Sabiam o que lhes iria suceder dentro em breve – mesmo que o tempo de espera no
interior das câmaras fosse atrozmente lento, chegando a demorar uma ou duas horas
até que o compartimento estivesse cheio. Ainda assim, aqueles que no jargão do
campo eram designados de «muçulmanos», devido ao seu aspecto macerado e ao
corpo reduzido a pele e osso, estavam de tal forma prostrados que nem a iminência
da morte era capaz de os fazer mover.
Até o caos era premeditado. Na abertura
de O Filho de Saul, numa
impressionante coreografia visual e acústica que se prolonga até ao final do
filme e é um dos seus traços mais distintivos, revela-se de forma ímpar a
confusão que sempre rodeava a chegada de novos presos. Começavam a bater-lhes com
bastões logo na Judenrampe, mal saíam
dos comboios. Tiravam-lhes os nomes, substituindo-os por números inscritos na pele.
Gritavam, dando ordens incessantemente. A assepsia era também verbal, como
notou Victor Klemperer num célebre livro sobre a linguagem do III Reich, e O Filho de Saul dá nota de alguns
eufemismos impostos pelas regras do campo: «tratamentos especiais» (Sonderbehandlung), em vez de «morte»;
«pedaços» (Stücke), em lugar de «corpos»
ou «cadáveres»; «selecção» ou «transferência» como sinónimos de aniquilamento.
Por
ter como protagonista principal um Sonderkommando, este filme de László Nemes –
a sua primeira longa-metragem, feita com um orçamento reduzido – poderá
reacender a controvérsia sobre o papel daqueles homens no Holocausto. Aliás, a
Géza Röhrig, que também se estreia no cinema com uma actuação memorável, já foi
questionado se os Sonderkommandos não teriam sido «meio vítimas, meio
carrascos», o que provocou a ira de alguém cuja trajectória familiar se cruza intimamente
com o Holocausto. À semelhança do realizador do filme, tem familiares que foram
mortos em Auschwitz. Röhrig foi criado num orfanato e adoptado aos doze anos
por uma família judia. Além de músico punk,
poeta, escritor e académico, foi praticante amador de boxe, o que lhe valeu o
nariz quebrado que atravessa o seu rosto, omnipresente no filme. Quando se deslocou
a Auschwitz pela primeira vez, a experiência foi tão intensa que Röhrig decidiu
alugar um quarto nas imediações do campo e visitá-lo todos os dias, durante um
mês. Regressado a Varsóvia, partiu para Israel, procurando conhecer as
tradições dos seus antepassados e aprofundar a fé judaica de que é um fervoroso
seguidor.
É um facto que certos depoimentos de
sobreviventes do Holocausto não são, de modo algum, favoráveis aos
Sonderkommandos, apresentando-os como cúmplices de uma indústria de extermínio
que, devido à sua colaboração, conseguiu produzir milhões de mortos a um ritmo
sem precedentes. Esta acusação foi feita de forma bastante explícita por Miklos
Nyiszli, no seu testemunho de memórias enquanto auxiliar de Josef Mengele, Auschwitz: A Doctor’s Eyewitness Account (1960),
livro que abre com um famoso e lamentável prefácio do psicólogo Bruno
Bettelheim, que para responder à pergunta polémica de Nyiszli – «porque é que
em 14 grupos de Sonderkommandos só um se revoltou contra os nazis?» – acaba
por, no limite, culpabilizar todo o povo judeu, e a sua proverbial «passividade»,
pelos rumos do Holocausto. Esquece-se, desde logo, que, além de diversos apelos
aos «resistentes» no interior e no exterior dos campos, houve outras tentativas
de revolta dos Sonderkommandos, a mais conhecida das quais ocorrida no final de
1942 – e prontamente afogada em sangue.
Outro sobrevivente, Primo Levi, em Os que Sucumbem e os que se Salvam (1986),
trata daquilo a que chama a «zona cinzenta», o território brumoso onde judeus
aceitaram colaborar na matança dos seus semelhantes. No livro, refere-se o caso
de uma adolescente que, como em O Filho
de Saul, terá milagrosamente sobrevivido à câmara de gás, dizendo-se que a
obra de Levi foi a principal fonte de inspiração do filme de László Nemes. Já
antes, em 1996, fora levada à cena em Nova Iorque, sob direcção de Doug Hughes,
uma peça de teatro cujo título é precisamente «A Zona Cinzenta», a qual seria
adaptada ao cinema em 2001 por Tim Blake Nelson. A «zona cinzenta», como seria
de esperar, converteu-se em tópico e lugar-comum de (mais) uma controvérsia sobre
o Holocausto, levando à produção de abundante literatura, como Judging “Privileged” Jews: Holocaust Ethics,
Representation, and the “Grey Zone”, de Adam Brown (2012), e extravasando
para o domínio judicial aquando do infindável processo contra John Demjanjuk,
que, entre Israel e a Alemanha, começou em 1975 e só terminou em 2011, com a
condenação do réu (que faleceu no ano seguinte). Após a condenação de
Demjanjuk, um artigo no Der Spiegel
salientou que «Ivan, o Terrível» fora considerado culpado de cumplicidade em
28.062 homicídios mesmo não existindo provas do seu envolvimento directo na
morte de vítimas concretas, o que levou o procurador alemão, Kurt Schrimm, a
dizer na altura: «esta sentença significa que mesmo aqueles que trabalhavam nas
cozinhas dos campos de extermínio podem ser tidos por responsáveis por fazer
parte da máquina de morte nazi». Tal afirmação, naturalmente, aplica-se com
particular acuidade aos membros do Sonderkommando. Todavia, existe uma abissal
diferença entre eles e Demjanjuk, já que este foi um guarda no campo de Sobibor
e não um preso forçado a participar em actos de extermínio. Os Sonderkommandos,
aliás, jamais foram chamados a matar pessoas e, segundo parece, nenhum o fez,
pelo menos de forma espontânea ou sistemática. O seu estatuto era demasiado
«subalterno» ou «auxiliar» (por vezes, chamavam-lhes «ajudantes», Hilflinge) para que possam, no seu
conjunto, ser tidos como homicidas. E o direito penal, de resto, possui
numerosas categorias (e.g., causas de
exclusão da ilicitude, causas de exculpação) que dificilmente tornariam
admissível a condenação criminal dos Sonderkommandos por cumplicidade em
homicídios ou outros actos criminosos (desde logo, por omissão do dever de
auxílio às vítimas). Com isto não se pretende dizer que, em casos muito
específicos, um membro do Sonderkommando não possa ser condenado por um crime
(por ex., se matou alguém deliberada e injustificadamente). O que se deve concluir,
isso sim, é que, de um modo geral, o
conjunto de tarefas atribuídas aos Sonderkommandos – e, acima de tudo, a
natureza peculiar do seu estatuto e condição – os tornam praticamente imunes a
qualquer forma de censura penal. É certo que, ao contrário do que ocorreu com
outros prisioneiros, poucos Sonderkommandos se suicidaram ou tentaram
evadir-se. Quando algum fugia, como aconteceu a um companheiro de Shlomo
Venezia, era perseguido com redobrada intensidade, pois os alemães não podiam
deixar escapar com vida alguém que tivesse visto o interior das câmaras de gás
e dos crematórios. Uma vez capturado o fugitivo, mataram-no de uma forma
horrível e o seu corpo desmembrado foi exposto à vista dos demais
Sonderkommandos. Quem desviasse o olhar era severamente agredido à
paulada.
Importa
sublinhar, por outro lado, que a perspectiva de Primo Levi é mais matizada,
complexa e até ambivalente do que a de uma mera acusação de colaboracionismo
(ele próprio se definiu um dia como «uma pessoa ambígua» e sempre combateu as
simplificações na abordagem da Shoah). Na verdade, se Levi apelida os
Sonderkommandos de «semelhantes aos perpetradores» e questiona a fiabilidade
dos seus testemunhos, acaba por concluir que «ninguém está autorizado a
julgá-los, não quem tenha conhecido a experiência do Lager e muito menos quem não a conheceu».
Poderíamos, com efeito, questionar-nos
sobre os motivos pelos quais não existiram mais revoltas entre os
Sonderkommandos, como aquela que deflagrou em 7 de Outubro de 1944 e levou à
inutilização para sempre do Crematório IV de Auschwitz. O episódio serve,
aliás, de pano de fundo a O Filho de Saul.
Interessa lembrar, no entanto, que a retaliação nazi foi implacável: em dois
dias, 452 membros do Sonderkommando foram mortos. Mais ainda: como punição
exemplar, os nazis decidiram liquidar sumariamente cerca de um terço dos
membros de outros «comandos especiais» que nada tiveram a ver com a revolta. O
mesmo ocorrera em Sobibor, no levantamento de Outubro de 1943: o Sonderkommando
do Campo III não participara na revolta levada a cabo no Campo I mas foi, ainda
assim, totalmente liquidado.
É indesmentível que os Sonderkommandos beneficiavam
de condições de vida muito mais favoráveis do que os outros prisioneiros.
Porém, a acusação feita por Miklos Nyiszli de que tinham uma existência
privilegiada é, no mínimo, caricata, sobretudo se atendermos a que o médico e
colaborador de Mengele, como o próprio reconhece, gozava de regalias muito mais
substanciais: sestas após o almoço, leitura na cama antes de adormecer, livre acesso
a bebidas alcoólicas… Em O Filho de Saul,
surge um médico judeu, Miklos, que tudo indicia ser uma alusão velada a Miklos
Nyiszli, o colaborador de Mengele. O ponto é pouco relevante. Mais importante é
compreender que os benefícios concedidos aos Sonderkommandos revestiam-se de um
carácter «instrumental» face à acção que exerciam: para que pudessem trabalhar
com vigor e sem desfalecimentos no pior
dos lugares dos campos de morte era imprescindível terem uma alimentação
mais abundante do que a dos outros presos. Com a agravante de se encontrarem, digamos
assim, «marcados para morrer». O caso de Filip Müller, que esteve três anos no
«comando especial» e sobreviveu a cinco vagas de «transferências», é
absolutamente singular, tão raro que serve de subtítulo às suas memórias: Eyewitness Auschwitz: Three years in the gas
chambers (1979). E se as condições de vida dos Sonderkommandos eram, sem dúvida,
bastante melhores do que a dos restantes detidos, devemos atentar mais de perto
no exemplo de Shlomo Venezia: após a Libertação, esteve internado em diferentes
hospitais durante sete anos; e só 47 anos depois, em 1992, teve coragem de
voltar a falar da sua experiência em Auschwitz-Birkenau. «Os outros
sobreviventes sofreram seguramente muito mais fome e frio do que eu, mas não
estavam constantemente em contacto com os mortos. Aquela visão diária de todas
aquelas vítimas gaseadas…», diz Venezia, concluindo: «nunca se sai
verdadeiramente do Crematório.»
Só
uma profunda ignorância do mal radical
do nazismo permite supor que os Sonderkommandos dispunham de alternativa ao que
faziam ou poderiam ter-se levantado em massa contra os seus carrascos, evitando
a Shoah. Em regra, os membros dos «comandos especiais» eram recrutados logo que
chegavam aos campos e o número dos que se recusaram a participar foi ínfimo, inexpressivo,
não tendo qualquer efeito para o resultado da Solução Final. Um dia, três
jovens húngaros, seleccionados para o Sonderkommando onde estava Shlomo Venezia,
tiveram a ousadia de questionar essa escolha. Foram sumariamente liquidados com
um tiro de revólver e no minuto seguinte já tinham sido substituídos por outros
prisioneiros. De nada adiantava resistir, portanto. Como mostra O Filho de Saul, foi a iminência de
serem executados que conduziu alguns Sonderkommandos à revolta e tentativa de
fuga de Outubro de 1944. Voltando-se para
os seus camaradas de infortúnio, Saul Ausländer profere uma afirmação lapidar,
definitiva: «já estamos todos mortos». Era essa a condição e a circunstância
dos Sonderkommandos. E é a essa luz que devemos avaliar o seu comportamento.
Além de ser moralmente abusivo fazer
apreciações sobre a atitude de seres humanos involuntariamente colocados em
situações-limite («um homem na prisão não é um homem, é um homem na prisão»,
disse um dia o escritor Mário de Carvalho), deve notar-se que a esmagadora
maioria dos prisioneiros, em todos os lugares dos campos, não tiveram um
comportamento moralmente irrepreensível para os (nossos) padrões convencionais:
lutavam ferozmente entre si por um pedaço de pão ou pelos melhores lugares nos
beliches, roubavam-se e agrediam-se uns aos outros, mentiam, atraiçoavam, formavam
grupos e facções, denunciavam os caídos em desgraça. Ou seja, todos foram, num
certo sentido, participantes do horror moral do Lager. Contudo, os sobreviventes dos Sonderkommando tiveram que
carregar consigo uma dupla culpabilidade: a de terem sobrevivido, sentimento
muito comum às vítimas da Endlösung;
e, a acrescer a isso, o fardo de terem pertencido aos esquadrões que conduziam
os seus semelhantes ao interior das câmaras de gás ou às fossas onde seriam
baleados a sangue-frio. Eram eles, para mais, os que corriam o maior risco: na
lógica do sistema dos campos, nenhum membro do Sonderkommando poderia ou iria
sobreviver. O seu tempo vital estava marcado à partida – três, quatro meses –,
enquanto os demais prisioneiros não tinham um horizonte de morte predefinido. Desde
que foram instituídos até à evacuação dos campos, existiram em Auschwitz cerca
de 14 gerações de Sonderkommandos, o que dá bem a noção do ritmo a que eram
dizimados (em Treblinka, o «comando especial» era substituído – ou seja,
assassinado – diariamente). Aos detidos era dito regularmente que dali ninguém
sairia vivo para testemunhar fosse o que fosse. Eis a razão pela qual praticamente
todos os membros dos Sonderkommando eram judeus: se o não fossem, não existiria
a garantia a priori de que, no final,
todos iriam morrer. Nos últimos tempos
de Auschwitz-Birkenau, quando os alemães evacuam o campo levando consigo os
prisioneiros numa «marcha da morte», era frequente perguntarem aos detidos:
«Wer hat im Sonderkommando gearbeitet?» «Quem trabalhou no Sonderkommando?»
Ninguém dizia nada, ninguém se acusava, bem sabendo que uma resposta afirmativa
implicaria ser sumariamente baleado.
Poder-se-ia
argumentar que os Sonderkommandos cometeram o mais grave dos pecados, o da
omissão e do silenciamento, o da cumplicidade na mentira do sistema nazi, nada
dizendo aos que encaminhavam para as câmaras de gás. This way for the gas, ladies and gentlemen, é o título irónico e
provocatório da tradução inglesa do relato memoralístico de Tadeusz Borowski
publicado em 1948, um dos mais impressivos que algum dia se escreveram sobre o
Holocausto. Mas seria concebível – e até piedoso – proferir uma frase dessas
aos que, apavorados, tinham pela frente apenas uns breves minutos de vida? Um
membro do «comando especial» quis, uma vez, informar as vítimas do seu destino;
foi queimado vivo no fogo do crematório e os seus camaradas tiveram que
assistir à execução. Existiu, para mais, a agravante horrível de muitos deles –
como aconteceu com Shlomo Venezia, por exemplo – terem presenciado a entrada de
familiares seus nas câmaras de gás e nada puderam fazer, ou sequer dizer. Antes
de queimar os corpos, recitavam um kaddish
em sua memória, nada mais podendo fazer. Entre as labaredas, a gordura dos
corpos crepitava, os cadáveres contorciam-se sob o efeito do calor intenso,
parecendo ganhar vida, e na sua pele formavam-se bolhas que rebentavam umas a
seguir às outras. «Sob o efeito do calor ardente, o abdómen da maior parte dos
corpos estalava», diz Filip Müller nas suas memórias.
É
possível não aceitar como verídicas as declarações de Shlomo Venezia quando diz
que na altura desejava morrer ou que trocaria o seu lugar no Sonderkommando por
qualquer outro que lhe oferecessem em Auschwitz. Porém, a estas afirmações
devemos acrescentar outras, de cortante honestidade, designadamente quando Venezia
diz: «confesso que me sinto um pouco cúmplice, ainda que não os tenha matado»;
ou ainda: «a solidariedade só existia quando tínhamos o suficiente para nós; de
outro modo, para sobreviver, era preciso ser egoísta.»
A
dado passo, o filme parece aflorar fugazmente os alegados casos de profanação
sexual de cadáveres femininos por parte dos Sonderkommandos. Shlomo Venezia nega
a sua existência e qualifica tais rumores como «absurdos». Mas ocorreram, sem
dúvida, episódios bizarros, só explicáveis naquele contexto: por exemplo, os
que trabalhavam no Crematório II decidiram manter junto de si, o máximo tempo
possível, o corpo imaculado de uma mulher tremendamente bela; depois, foram
obrigados a queimá-la. Num alcance completamente distinto, houve um SS, de
apelido Forst, que se comprazia em postar-se diante da porta das câmaras de gás
para apalpar o sexo de cada jovem mulher que ali entrava, e era assim humilhada
nos derradeiros instantes da sua existência.
Muitos
Sonderkommandos encontraram uma forma muito engenhosa de subverter as regras
vigentes num mundo de silêncio e trevas. Aí reside o seu feito mais admirável e
heróico. A rebelião de Auschwitz – ditada, no limite, por motivos «egoístas» de
sobrevivência – foi esmagada em pouco tempo. Muito mais notável foi a acção que
os Sonderkommandos desenvolveram para preservar a memória do Holocausto,
contrariando, na sua essência, o projecto de extermínio em massa e a tentativa
de ocultá-lo. Na caracterização de Didi-Huberman, eram «aqueles a quem os SS
quiseram erradicar a qualquer preço a possibilidade de testemunhar». Estavam ali
para calar a verdade e apagar os vestígios das matanças, mas combateram esse inelutável
destino através de um extraordinário esforço de denúncia que visava o futuro, a
posteridade. Correndo enormes riscos, tudo fizeram para deixar registo dos
horrores que viam. Em Abril de 1944, Filip Müller reuniu vários documentos –
uma planta dos crematórios IV e V, uma nota sobre o seu funcionamento, uma
lista dos nazis em funções, até uma etiqueta de Zyklon B – e entregou-os a dois
prisioneiros que, sem sucesso, tentaram evadir-se do campo. Outros, na certeza
de que iriam morrer, optaram por enterrar testemunhos para as gerações
vindouras. Foi em redor dos barracões dos Sonderkommandos, mais do que em
qualquer outro lugar dos campos, que se encontraram fragmentos de papel,
enterrados, com descrições e plantas dos edifícios, além de poemas e relatos
sobre o que os detidos chamaram «o Inferno de Auschwitz-Birkenau». Alguns desses
documentos foram reunidos por Bernard Mark em 1985, numa obra intitulada Os Rolos de Auschwitz, um dos mais
importantes legados testemunhais do Holocausto. Corroídos pela humidade, alguns
documentos são hoje ilegíveis, mas já foram identificados, pelo menos, cinco
autores desses textos, escritos em ídiche, francês e grego. Em entrevistas,
Nemes tem dito que o argumento de O Filho
de Saul, escrito em parceria com Clara Royer, se baseou no livro Des voix sur la cendre (2006), que o
realizador diz corresponder a Os Rolos de
Auschwitz, o que só parcialmente é verdade pois aquela obra contempla
outros testemunhos de Sonderkommandos. Seja como for, o filme pode ser visto
como uma homenagem póstuma àqueles heróis da memória ou, se preferirmos, um
reflexo fulgurante da força dramática e da expressividade dos escritos
enterrados em Auschwitz-Birkenau pelos membros do «comando especial».
Nos julgamentos do pós-guerra, muitos «comandos
especiais» foram testemunhas de acusação: Filip Müller, Morris Venezia, Shlomo
Venezia, Henryk Tauber, David Olère, etc. No processo contra Eichmann, um
Sonderkommando, pelo menos, prestou depoimento. No filme Hannah Arendt (2013), de Margarethe von Trotta, é mostrado um
trecho da filmagem no tribunal em que o antigo Sonderkommando, que começa a
testemunhar, fala por breves instantes, chora compulsivamente e acaba por desfalecer,
sendo retirado em braços da sala de audiências.
Além desse testemunho, os
Sonderkommando deixaram-nos quatro celebérrimas fotografias tiradas em Birkenau.
O filme mostra o momento da captura dessas imagens, em que Saul tem uma acção
fulcral. Em 2004, Georges Didi-Huberman dedicou-lhes um ensaio brilhante, Imagens apesar de tudo, a partir do qual
podemos perceber que a narrativa de O Filho
de Saul é, neste passo, inconsistente do ponto de vista histórico, ao
colocar Saul num papel que foi desempenhado por um sobrevivente do
Sonderkommando, David Szmulewski. Desconhece-se como a câmara fotográfica
entrou no campo. Há quem diga que foi obtida no «Kanada», o gigantesco depósito
dos pertences roubados às vítimas. Outros falam num trabalhador civil polaco,
que trabalhava nas imediações e conseguiu passar a máquina a um preso, à
socapa, uma vez que os chefes da Resistência na Polónia há muito pediam
fotografias dos campos para transmitir aos Aliados. Sabe-se que foi um grego,
«Alex», que captou as imagens com o apoio de Szmulewski, sendo este que se
encarrega de esconder a máquina. Ainda que o ponto não seja analisado por
Didi-Huberman, uma vez que os elementos existentes só apareceram por volta de 2014,
tudo aponta para que «Alex» seja o oficial de marinha Alberto Israel Errera
(1913-1944), que teve um papel fundamental no levantamento de 1944, onde acabou
por ser morto após ter conseguido evadir-se de Birkenau. Em O Filho de Saul é-nos mostrado o momento
em que são tiradas as fotografias (segundo Didi-Huberman, a partir do interior
da câmara de gás do Crematório V, outra questão controversa). A acção
desenrola-se no Verão de 1944, quando afluiu a Auschwitz um número colossal de
judeus húngaros, fruto da razia efectuada entre Maio e Julho desse ano, que
levou até ao campo 435 mil pessoas. Daí a necessidade de agir com rapidez,
evitando a lentidão do processo de gaseamento: as vítimas eram abatidas a tiro
e de imediato incineradas. É isso que mostram as imagens apesar de tudo. Também aqueles que tentavam romper o
isolamento do mundo tiveram de actuar rapidamente: a 4 de Setembro de 1944, as
fotografias de «Alex» chegaram às mãos da Resistência polaca de Cracóvia.
As
fotografias sobreviveram até aos nossos dias, ainda que, muito provavelmente,
não tenham contribuído para que qualquer preso em Auschwitz tenha sobrevivido.
Ao evocá-las, O Filho de Saul intervém
na querela sobre o papel dos Sonderkommandos com um argumento definitivo,
esmagador: foram os membros do «comando especial» que tiraram aquelas
fotografias. São imagens apesar de tudo, apesar do fogo e dos cadáveres, imagens
captadas sob o risco de uma morte horrível. Feitas num mês de Agosto – e que
a memória as não esqueça.
O Filho de Saul
ensaia uma aproximação cinematográfica ao Holocausto como nunca tínhamos visto,
fruto de um enorme virtuosismo técnico e da evocação de lugares até aqui não
filmados: as câmaras de gás e os fornos em acção, como se se tratasse de uma
versão animada, em movimento trepidante, dos pungentes desenhos e aguarelas que
David Olère começou a fazer quando ainda integrava o Sonderkommando. Não por acaso,
há quem fale de afinidades com a técnica cinematográfica dos irmãos Dardenne.
De facto, em contraste com os travellings
lentos, lentíssimos, de Noite e Nevoeiro
(1955), de Alain Resnais, ou com os longos e sufocantes testemunhos de Shoah (1985), de Claude Lanzmann, O Filho de Saul opta por uma abordagem
ambivalente, em que a câmara se fixa no rosto esfíngico e inexpressivo do
protagonista mas, em simultâneo, oscila incessantemente, criando uma atmosfera
irrespirável e claustrofóbica que evoca de forma avassaladora a trepidação dos
campos de morte. Mesmo nos momentos finais, quando a imagem se fixa na copa das
bétulas da floresta para onde se evadiram Saul e os seus companheiros, a câmara
mexe-se, saltita. Em contraste com esse ruído – sonoro e visual – os detidos
falam quase sempre por sussurros, murmurando breves palavras nas costas dos
guardas SS.
Ao longo de todo o filme, Saul procura
obsessivamente encontrar um rabino e enterrar a criança que, por uns instantes,
sobrevivera à câmara de gás. No fundo, Saul encontrara o mais fácil – um
cadáver em Auschwitz – mas busca o mais difícil, aquilo que ali era
absolutamente vedado – uma sepultura. Mortos havia muitos, aos milhares por
dia; mas nenhum poderia ser enterrado. Menos ainda, ser enterrado condignamente,
segundo os ritos da sua crença. Não nos é apresentado um motivo racional para a
insana demanda de Saul, de Saul Ausländer, nem sequer sabemos se o rapaz era
verdadeiramente seu filho ou se a alegada paternidade resultava de uma
perturbação da sua mente – ou até mesmo de um estratagema racional de
autodefesa e sobrevivência, tendo Saul encontrado naquele corpo algo que o agarrasse à vida e mantivesse
os seus sentidos bem despertos (na espantosa interpretação de Röhrig, os
movimentos de Saul são bruscos, nevróticos, à semelhança da câmara que os
acompanha). Devemos saudar este manto de incerteza e ambiguidade que recobre a
narrativa, assim transformada em metáfora da insanidade reinante no Lager. Enquanto os «comandos especiais»
planeavam revoltar-se e se ergueram contra os SS, Saul escondia o cadáver de um
rapaz e procurava um rabino que o sepultasse. Entre os Sonderkommando rebeldes
e a busca de Saul Ausländer é difícil dizer quem adoptou a atitude mais
demencial. De igual modo, não tenhamos por implausível que um Sonderkommando
carregasse e mantivesse junto de si o cadáver de um rapaz, pois Auschwitz – já
o dissemos – ilude e confunde todas as fronteiras da verosimilhança. Apenas na
parte final do filme, com a aparição «redentora» de outra criança em cena, nos
interrogamos se O Filho de Saul não
terá enveredado por caminhos próximos do onirismo desastrado de A Vida é Bela ou do registo
melodramático de Jakob, o Mentiroso.
Contudo, apesar da sua carga
dolorosíssima, insuportável, o filme mantém alguma reserva e uma grande
contenção formal. «Não podemos fazer um filme de horror», foi uma frase
frequentemente usada entre László Nemes e os seus colaboradores. Daí que a
câmara se detenha à entrada das câmaras de gás, não filmando a lenta agonia das
vítimas no seu interior. Tal não significa que O Filho de Saul pretenda sustentar a ideia da natureza indizível do Holocausto, tese que, como bem demonstrou
Giorgio Agamben, acaba por servir o nazismo e os seus arcanos, homenageando, em jeito
de adoração mística, os responsáveis pela Solução Final, aqueles que, como
Rudolf Höss, comandante de Auschwitz, proibiram terminantemente a captação de imagens
no interior do campo e nas suas redondezas. «Só no dizível se prova o
pensamento», disse um dia Joseph Ratzinger. Considerar que o Holocausto é
«indizível» representa o triunfo póstumo daqueles que o pretenderam esconder,
retirando-o da História – e da nossa memória.
Mais
do que Saul, o protagonista principal é o seu rosto, e a respiração ofegante. «A
sua fisionomia era prenúncio da sua alma», como se lê nas primeiras linhas de Candide, de Voltaire. É no rosto de Saul
que se concentra o olhar dinâmico da câmara, mantendo desfocadas ou relegando para
segundo plano as imagens das atrocidades mais explícitas. Os amontoados de
cadáveres, por exemplo, nunca ocupam o lugar central da tela. O horror não é superconstruído, ao contrário do que
sucedia com as «fotos de choque» que Barthes verberou em Mitologias. É isso que resgata O
Filho de Saul da banalidade do mal ou, melhor dizendo, da banalidade das representações
contemporâneas do mal. Aí reside o segredo e a salvação deste filme, a chave
redentora que lhe confere um estatuto singular na cinematografia do Holocausto.
Durante muitos anos, ouviremos falar daquela que é, literalmente, uma
obra-prima.
António Araújo
(uma versão ligeiramente mais reduzida deste texto foi publicada no jornal Público, suplemento Ípsilon, aqui)
obrigada.
ResponderEliminarEstes horrores ocorreram apenas há cerca de 70 anos.
ResponderEliminarOutros horrores, embora com outra dimensão, estão ocorrendo neste momento para os lados do Médio Oriente e praticamente os mesmos protagonistas (centro da Europa) continuam tapando os olhos e negando ajuda.
Ainda que isso represente ficarmos todos com menos uma pequena percentagem dos nossos luxos (aos olhos de quem não tem nada), a acção de certos governantes e pessoas continua a envergonhar a raça humana.
Li no Público (e deixei lá o único comentário ao artigo – positivo, porque... bem não vale a pena agora, aqui, discutir os comentários nos jornais), mas fico desiludido por não me ter apercebido, na altura, de que se tratava de um "Araújo"!
ResponderEliminarDifícil de digerir, mas brilhante relato sobre o filme e sobre a Shoah, algo que a nós europeus hoje parece quase uma lenda "indizível" mas que aconteceu e foi praticada por homens como nós, letrados e supostamente racionais. É crucial manter estes relatos porque a banalidade do mal é real e a memória do que aconteceu é quiçá o principal impedimento para que voltemos a cair no abismo do mal absoluto praticado por pessoas comuns.
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