quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016




impulso!

100 discos de jazz para cativar os leigos e vencer os cépticos !

 

# 23, # 24 - DIZZY GILLESPIE

 

 
 
 
Fotografia de William Claxton
 
 
 

 
Aumentava dia a dia a acrimónia entre Cab Calloway e o jovem trompetista que apesar de estupendo executante, engenhoso arranjista e nada mau compositor, actuava de maneira meramente perfunctória na sua orquestra, a fazer horas para se juntar aos camaradas do Minton’s Playhouse, uma locanda ordinária no âmago de Harlem, onde tocavam “that chinese music” como o maestro dizia desdenhosamente. Até que uma noite, a meio de um número, um tremeluzente escarro estatela-se aos pés de Calloway; este virou-se de golpe para a banda e topou o trompetista a gracejar com um colega. Quando no final lhe foi pedir contas, palavra puxa palavra, Cab esbofeteia o irreverente e nas mãos deste aparece uma navalha. Por pouco a cena não se consumou numa fatalidade. Até ao fim da vida Dizzy Gillespie negou ter sido ele quem cuspiu, mas foram estas e outras, e não apenas o modo estonteante com que debitava notas, que lhe valeram a alcunha.
O que incubavam (Dizzy, Parker, Monk, Bud Powell, Kenny Clarke, Oscar Pettiford) os conjurados do Minton’s, enquanto a fina flor da juventude americana começava a ser imolada na guerra? A resposta apareceu menos de um ano depois deste torpe episódio com a canção “Salt Peanuts”.
Talvez seja hoje impossível entender, ou melhor sentir, como foi ouvido o tema à época. A morte prematura de Charlie Parker, com todas as tintas do romantismo, arvorou-o instantaneamente à qualidade de semi-deus, à imagem dos heróis gregos. Mas além disto, mitificou a eclosão do bebop como uma cosmogonia. O bebop inoculou seriedade e inquietude no jazz e foi às suas mãos que o jazz se transferiu da condição de entretenimento popular para uma forma de expressão artística, com o inevitável exacerbamento dramático, pois doutro modo não o levariam a sério. Tantas demãos de verniz se passaram sobre o bebop que desbotaram o facto de ele ter irrompido em forma de burlesco, com “Salt Peanuts”, precisamente. Mas o que era este chorrilho de notas saltitantes, propelidas em velocidade frenética, interrompidas de repente para uma voz exclamar o refrão absurdo – “Salt peanuts! Salt peanuts! – com solos meteóricos, varados por dissonâncias agudas? Era Dizzy Gillespie conluiado com o baterista Kenny Clarke a liquidarem a tradição harmónica e melódica do jazz, instituídas no swing, era, ainda, Dizzy, por via da “destruição criativa”, a recriar as leis do trompete fixadas por Louis Armstrong. “Se ninguém imita Dizzy é porque quando alguém pega num trompete sabe que ele é inimitável”, sentenciou o douto Ralph Gleason, sem que o tenham desmentido.
Para a posteridade Charlie Parker ficaria como o arauto do bebop, o artista maldito e trágico, à imagem de Van Gogh; quanto a Dizzy, ficou-lhe reservada a fama ambígua de ter sido – qual Groucho Marx – o truão do movimento ao mesmo tempo que era, na verdade, o seu guia espiritual e intelectual. Havia que recuar até às desgarradas entre Armstrong e King Oliver nos idos de Chicago, para ouvir um jogo de parada e resposta como o de Parker e Gillespie. Mas hoje deita-se um olhar cada vez mais intrigante para o decénio em que ambos formaram uma sociedade descrita pela lenda como indissociável. Eles foram companheiros de viagem orientados pelo mesmo norte? Ou dois viandantes que percorrem o mesmo trilho, mas perseguindo destinos diferentes?
 

Dizzy Gillespie - Charlie Parker, Town Hall, New York City, June 22, 1945
2005 (1945)
Uptown Records - 2751
Dizzy Gillespie (trompete), Charlie Parker (saxophone alto); Don Byas (saxofone tenor); Al Haig (piano); Curly Russell (contrabaixo); Max Roach (bateria); Sidney Catlett (bateria); Symphony Sid Torin (apresentação).
 
A questão foi ficando por responder devido à escassez de registos das actuações de ambos ao vivo. Até que em 2005, numa bizarra parecença entre o jazz e a egiptologia, foram descobertos, tratados e digitalizados uns discos esquecidos na prateleira de um alfarrabista, em que se gravaram 41 minutos de um concerto realizado em 22 de Junho de 1945 no Town Hall de Nova Iorque. Pouco menos do que um mês antes dessa data, Parker e Dizzy haviam interpretado em estúdio pela primeira vez temas matriciais como “Salt Peanuts”, “Groovin’ High” e “Hot House” – estava tudo à flor da pele... Mais do que arqueológica, esta gravação captura o ardor do momento, a labareda do acontecimento. Envolvendo a música, ouve-se o timbre jubiloso e um pouco expectante do apresentador Symphony Sid (célebre disc jockey radiofónico que foi cardeal na promoção do bebop), perturbado com o habitual atraso de Parker, substituído por Don Byas enquanto não chegou; sente-se a exultação do público, surpreendido com a novidade daqueles sons. Mas o que é assaz vibrante na gravação é a pujança e a vivacidade que os intérpretes empenham em cada instante, conscientes de que exploravam terra incógnita.
 
Afro
1955 (2002)
Verve - 5170522
Dizzy Gillespie (trompete); Gilbert Valdez (flauta); Quincy Jones, Jimmy Nottingham, Ernie Royal (trompetes); Leon Comegys, J. J. Johnson, George Matthews (trombones); George Dorsey, Hilton Jefferson (saxofones alto); Hank Mobley, Lucky Thompson (saxofones tenor); Danny Bank (saxofones barítono); Réne Hernandez, Wade Legge (piano); Lou Hackney, Roberto Rodríguez (contrabaixo); Charlie Persip (bateria); Cándido Camero(congas, percussão); Mongo Santamaria (congas); José Mangual (bongós); Ubaldo Nieto (timbales), Ralph Miranda (percussão); Chico O'Farrill (arranjos).
 
Nesta década de 40 não bastou a Dizzy Gillespie ter cometido a revolução do bebop, feito suficiente para ser entronizado. Outra admirável bandeira haveria ele de erguer, ao selar um pacto de paz perpétua entre duas tradições musicais. Que o jazz e a música afro-cubana partilhavam as mesmas remotas raízes negras era incontestado, que se tentara a experiência de os acordar era sabido, mas nada de substancial se conseguira e tal identidade comum permanecia um projecto por desenvolver.
Fora o cubano Mario Bauza que convencera Cab Calloway a sentar Dizzy ao lado dele na secção de trompetes da sua orquestra. Em 1946 Gillespie contrata com a etiqueta RCA a formação de uma big band e pede ao amigo cubano que lhe indique um percussionista. Este referiu-lhe Chano Ponzo, já célebre em Havana, acabado de desembarcar em Nova Iorque. Da consonância que em três tempos se gerou entre Dizzy e Chano brotou o tema “Manteca”. Já houve quem afirmasse a pés juntos que se trata da mais importante música produzida nos Estados Unidos, mas mesmo dando desconto à hipérbole, convém reparar na formidável repercussão da obra, cujos efeitos criativos ainda hoje se fazem sentir.
Em vez do atalho menos complicado que seria o da apropriação de um estilo pelo outro, ou o de uma fusão entre eles, Dizzy Gillespie procede à delicada ourivesaria de ligar, compasso a compasso, ambos os géneros musicais, numa unidade pulsional e coleante, preservando a identidade harmónica de cada deles. Um nota em falso e saia-lhe um frankenstein, mas como a composição ficou perfeita, resultou obra-prima. Juntando “Manteca” a outras peças de igual filigrana, todas de fazer tremer o chão debaixo dos nossos pés, publicou-se, em 1955, o disco “Afro”, monumento de meia-hora da música negra norte-americana.
Contrariando o destino dos seus companheiros de geração, Dizzy Gillespie não morreu a tempo de ser idolatrado, nem se insulou numa esfera como o misantropo Monk. Sobreviveu muito para além dos intensíssimos 10 anos em que mudou o mundo, sempre activo e sem se conformar ao presente envenenado dos louros em vida. Soube não ficar esquecido, evitando que com o passar do tempo, o tempo passasse por ele.
 
 
 
José Navarro de Andrade



 

2 comentários:

  1. Muito bem.
    Vou imediatamente tratar do Eric Dolphy, este fica para daqui a uns dias.
    É que estou atrasado nos filmes dos Oscar.

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