impulso!
100 discos de jazz para cativar os leigos e vencer os cépticos !
# 63 - ROLAND
KIRK
Uma enfermeira toxicómana confundiu o
colírio com outras gotas e cegou Roland Kirk, ainda bebé de berço. Nunca ele
haveria de se conciliar com o negrume primordial em que ficou apresado; recusava-o
como um azar ou golpe do destino, porque o vindicava como crédito pessoal a
cobrar à sociedade, se não mesmo à humanidade. Este estado de espírito de Kirk
impregna a sua música, da qual perdurava uma sensação, se nem sempre de
revolta, no mínimo de inquietação constante, de uma impaciência e uma aspereza
sem tréguas.
Mas isto só se apreendia depois de o
ouvir, dado que a primeira impressão infundida por Roland Kirk era de extravagância.
Entrava em palco encapuçado com umas coifas arrevesadas e, sobretudo,
ostentando no colo uma despropositada panóplia de instrumentos de sopro.
Recorria com frequência à técnica da respiração circular, conseguindo soprar
ininterruptamente, o que às vezes resultava em habilidade circense – o
espectador incauto ou neófito intrigava-se: será que assistia a uma palhaçada?
Os laivos de comédia que Roland Kirk gostava de intentar, eram pesados de
sarcasmo e, às vezes, embaraçantes. O pior, porém, era a espécie de filosofia
que evocava: que primeiro mudara o nome de “Ronald” para “Roland” e depois
antepusera-lhe um exótico “Rahsaan”, em ambos os casos porque os sonhos assim
lho ditaram e ele tinha crença na divindade do onírico.
We
Free Kings
1961 (1991)
Polygram / Mercury - 826455-2
Roland Kirk (saxofone tenor, flauta, stritch,
manzello, sirene); Richard Wyands (piano); Hank Jones (piano); Art Davis
(contravaixo); Wendell Marshall (contrabaixo); Charles Persip (bateria).
Em abono de Roland Kirk entenda-se que procurar
algum destaque nos anos 60 era tarefa ingrata, dado o panorama saturado de
mudanças, com novos nomes e novas propostas a surgirem quase todos trimestres.
Mas é pertinente questionar se aquilo que fazia para se tornar conhecido, não impediria
precisamente que fosse respeitado. Ou seja, se para admirar a sua música há que
contornar o estorvo da fancaria intelectual, então é lícito questionar os
motivos que o levaram a engendrar tais distrações, julgando trazer
engrandecimento onde toda a gente viu diminuição. Por outro lado, que o génio
de Roland Kirk tenha sido reconhecido debaixo de tão opaca camuflagem, é prova
cabal da sua exuberância. Confirma também que ele nunca era bem aquilo que
fazia crer.
“We Free Kings” foi a obra que notabilizou
Roland Kirk. E é preciso tê-la sempre à vista para não cair em ilusões com o
que veio mais tarde. Quando um par de anos depois começou a alternar temas mais
pirotécnicos do que substanciais, com aventuras sónicas frívolas sob a égide da
desconstrução harmónica, ainda assim vislumbra-se uma centelha de redenção,
atiçada pelo arraigamento de Kirk aos blues, esse um poço sem fundo que dá de
beber a todos os desenvolvimentos musicais. “We Free Kings” é, portanto, a
pedra de toque que tudo sustenta, porque regressa ao chão genuíno da música
negra americana, numa altura em que o davam como gasto, e dele recolhe um
revigorado alento. E quanto a esta autenticidade, não há maluquices que
enganem.
José Navarro de Andrade
Deste e do anterior vou publicar da Verve Jazz Masters os discos que ela lhes dedicou.
ResponderEliminar