Anca Petrescu
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Chegado
há pouco de Bucareste, um amigo grande trouxe-me um presente grande: um suculento
catálogo do Palácio do Parlamento. Como edifício, o Palácio do Parlamento
romeno também é grande. Chamar-lhe «enorme», peca por defeito: com 340.000
metros quadrados, 86 metros de altura e 90 metros no subsolo, é o maior palácio
do mundo (palácio?!) e o segundo maior edifício do planeta, só superado pelo
Pentágono. No que se refere ao volume, qualquer coisita como 2.550.000 metros cúbicos, o Monstro de Bucareste só é ultrapassado pelo edifício de lançamento de foguetões em Cabo Canaveral e pela pirâmide de Quetzalcoatl, no México.
Mal sabia o Gonçalo, quando aterrou em
Bucareste, que se encontrava em coma Anca Petrescu, devido a um acidente de
automóvel que a vitimou em Agosto passado. Anca Petrescu não recuperou do coma
e morreu há dias, com 64 anos de idade. Nascida em Sihişoara, em 1949, Anca
formou-se na Universidade de Arquitectura e Urbanismo Ion Mincu, de Bucareste.
Tinha 27 anos de idade quando um terramoto abalou a capital da Roménia, fazendo
1.500 mortos e dando pretexto a Ceaucescu para levar a cabo mais uma das suas façanhas
demenciais, a construção do Palácio do Povo. Já se observou que o nome era de
um enorme cinismo, entre as muitas coisas cínicas e delirantes que aconteceram
na Roménia de Ceaucescu. De facto, chamar «Palácio do Povo» a um edifício em
que o povo não entrava e que chegou a consumir, na sua manutenção, cerca de 30%
do PIB do país… Estamos a falar, note-se, de uma construção com 7.000 divisões
e 3.500 quilómetros de corredores. O interior é grotesco, no pior kitsch, um devaneio onírico de um
ditador e da sua arquitecta de estimação (correm certas histórias sobre o modo
como Anca Petrescu foi contratada para desenhar o Palácio).
Algumas notícias, como esta, dizem que
Anca Petrescu era uma recém-licenciada quando, em 1981, foi escolhida para
traçar as linhas deste pesadelo. No entanto, outras fontes dizem que ela se
licenciou em 1973, mas o pormenor é irrelevante. Recém-licenciada ou não, o
risco de Anca Petrescu era uma desgraça. O dono da obra também não tinha grandes
aptidões: há quem diga que Nicolae Ceaucescu era incapaz de imaginar, a partir
de um desenho, uma construção em três dimensões. Daí que no Palácio dos Desportos
existisse uma enorme maqueta da cidade de Bucareste, com uma ponte por cima. A
partir daí, observando para baixo, Ceaucescu apontava o dedo e dava ordens. Quase
sempre, ordens arrasadoras. Para a construção da obra concebida por Petrescu
foi necessário desalojar, num prazo de 24 horas, os habitantes de três bairros
inteiros. 40.000 famílias abandonaram o centro da capital, 12 igrejas e 3 sinagogas
foram destruídas. Estima-se aqui que a área arrasada corresponda aproximadamente a
todo a zona central de Amesterdão ou, se preferirmos, a todo o núcleo histórico
de Veneza (Veneza terá algum núcleo que não seja histórico?).
Anca e Elena observam o projecto original, em versão bolo de noiva. O melhor de tudo? O senhor de gravata ao fundo. |
Havia que trabalhar depressa e em
força: a obra foi iniciada em 1985 e a construção durou três anos. Ironicamente,
Ceaucescu inaugurou-a um mês antes de morrer, ainda o edifício não estava
concluído. Nele trabalharam, a todo o vapor, 700 arquitectos, sob a batuta
desafinada de Anca Petrescu. Os termos «faraónico», «versalhesco» ou «hollywoodesco»
ficam sempre aquém da realidade. Mesmo sem estar acabado, o Palácio do Povo já
consumia 50 vezes mais electricidade do que Bucareste inteira. O ditador exigiu
que tudo fosse feito em materiais nacionais, pelo que várias florestas das
montanhas romenas foram dizimadas para fornecer a madeira bela, tendo-se gasto
na brincadeira qualquer coisa como um milhão de metros quadrados de mármore da
Transilvânia.
Feia como as casas, um autêntico
camafeu, Anca Petrescu, falecida há dias, em 30 de Outubro, era também um
desastre como arquitecta. O exterior e os interiores do Palácio demonstram-no à
saciedade. Não saciada, mal Nicolae e Elena foram fuzilados, após um
julgamento-fantoche, desatou a denunciar o antigo patrão, queixando-se que lhe
fazia visitas inopinadas, a meio da obra, e mandava destruir várias peças por
desconfiar não serem de mármore verdadeiro. Nem a delação a salvou da desgraça.
Anca Petrescu foi acusada de desvio de dinheiros públicos e a sua casa foi
incendiada. Fugiu para Paris, onde os seus dotes artísticos foram aproveitados
pelo Club Med. Projectou ainda em Marrocos e Cuba.
Entretanto,
na Roménia ninguém sabia o que fazer ao mono: uns advogavam a sua demolição,
outros quiseram lá instalar um Museu do Comunismo. Pensou-se mesmo em fazer daquilo
um parque temático de diversões, dedicado ao Conde Drácula, ou montar no espaço
um casino, provavelmente o maior de todos, maior que os de Las Vegas ou de
Macau. O bom senso triunfou: o edifício foi conservado em todo o seu esplendor bacoco.
Nada melhor, então, do que fazer dali a sede do parlamento romeno, que é bicameral. Os
deputados gostam destas larguezas. E, como a memória é curta e o bom gosto escasso,
aos poucos os romenos afeiçoaram-se a este mastodonte de estimação, onde além
do Parlamento existe, desde 1997, um Museu de Arte Abstracta. Petrescu
regressou à pátria. Entrou na política, como os piores. Lá conseguiu um lugar
na casa que concebera, sendo deputada entre 2004 e 2008 pelo Partido da Grande
Roménia (dizer que é uma força política de cariz nacionalista é demasiado
óbvio). Assumiu a vice-presidência da comissão das relações internacionais.
Entusiasmada, candidatar-se-ia em 2005 à presidência da câmara da capital
romena mas, apesar de tudo, ainda há bom senso: teve 0,4% dos votos.
Sublinhe-se
que as autoridades romenas sempre lhe reconheceram a autoria do projecto e,
inclusivamente, convidaram-na, já em democracia plena, no ano de 2002, a
rematar a obra com uma cúpula de vidro (gigantesca, claro está). A obra de
Petrescu está no Guinness, devido ao
seu tamanho, assim a atirar para o descomunal. Mira
Anca Victoria Mărculeţ Petrescu, 1949-2013, será provavelmente esquecida. Por isso aqui a
lembramos, prestando sentida homenagem à grande diva da arquitectura comunista
romena.
Para o Gonçalo, com um
abraço,
António Araújo
Por favor retire este post. Pode dar ideias ao senhor engenheiro Sócrates quando do seu regresso a cargos de mando.
ResponderEliminarPor favor mantenha o post. Pode ser para que quando Sócrates tiver as ideias, o sr. Portas ou o sr. Cavaco tenham para onde ir, confraternizar. Que confraternizar em grande, é com esses.
EliminarAcho mais provável ser aproveitado pela nossa Troika - Passos, Portas e Cavaco!!!
Eliminar.
Ainda dizem mal do Novo Museu dos Coches.Ingratos.
ResponderEliminarA parte do post que refere a horripilência do edifício é ironia, não é? É que as imagens postadas tanto do exterior como do interior parece-me esplendorosas. E a não ser que a arquitectura tenha sido tomada pela ditadura dos técnicos à revelia do gosto simples dos comuns(simples aqui é paradoxal se aplicado ao edifício)... Nããããããã, é ironia.
ResponderEliminarUm elefante branco com uma história curiosa. Não me canso de aprender com este blogue. Um bem-haja.
ResponderEliminarObrigado.
EliminarCordialmente,
António Araújo
Em boa verdade, este mega-edifício parece mesmo é a Sede lisboeta da nossa Caixa Geral de Depósitos - só que em muito grande (e em bom...)!
ResponderEliminarE, já agora, talvez tivesse também interesse um Artigo semelhante sobre quem assinou a sua reconhecidamente discutível Arquite(c)tura, sobretudo para aquela zona de Lisboa...
Quanto ao resto, que tem o seu interesse, aponto apenas uma eventual gralha - falta um "g" - no nome atual (romeno) da Cidade-natal da Anca Arquite(c)ta, que é SIGHISOARA (e a cedilha aposta no segundo "s" está correctíssima, eu é que não tenho essa letra romena à mão aqui neste teclado...), uma bela e histórica Cidade que, poucos anos antes do nascimento da Anca, era húngara e se chamava Ségésvár (lê-se Xêguêsvar, com acento tónico na primeira sílaba...).
No entanto, antes da I Guerra Mundial e durante alguns séculos, foi austríaca (melhor, austro-húngara) e chamava-se "Schässburg" (ler Xêssburg).
É talvez a Cidade mais bela e mais fascinante da Transilvânia e o seu pitoresco Castelo reclama-se de ter pertencido ao Príncipe Vlad Tepes, Cavaleiro emérito da Ordem do Dragão (Dracul) que, no Séc. XIV, se destacou nas sangrentas lutas fronteiriças da então Hungria contra os invasores otomanos e o qual, reza a lenda, se caracterizava não só por uma enorme bravura, como por uma crueldade comparável (a ponto de empalar os seus inimigos!) e que terá inspirado Bram Stoker na criação do seu célebre personagem "Conde Drácula" - aliás de uma forma totalmente fantasiosa, pois Stoker nunca pôs sequer os pés na Hungria, muito menos na silvestre Transilvânia...
Região hoje romena (desde 1945) mas culturalmente ainda húngara e que, como deveis saber, se recomenda a todos os amantes de História, de Etnografia europeia e de Natureza.
Marci.