Há já alguns anos, uma revista
francesa – creio que a Paris Match,
mas não juro – fez a seguinte reportagem: numa das principais artérias de
Paris, um homem era agredido violentamente, aos pontapés e bofetadas, por um
grupo de outros homens. Sei que a ideia não era inteiramente nova, que já havia
sido concretizada antes, sendo retomada depois, num propósito que é
indiscutivelmente manipulador e sensacionalista. Desconheço se era tudo uma encenação teatral ou se,
pelo contrário, a vítima, a troco de dinheiro ou outra benesse, aceitou mesmo ser espancada em público. O que
sei é que, à vista das agressões, os que passavam por ali afastavam-se,
fingiam que não viam, fechavam os olhos. Poucos interpelaram os
agressores, e fizeram-no ainda assim de forma fugaz e passageira. Ao fim de várias horas,
tendo sido captadas à distância dezenas de imagens de pessoas que passavam
indiferentes ou atemorizadas, surgiu uma conclusão sombria: ninguém parou a
violência, ninguém chamou a polícia.
Há uma frase de Dickens que diz mais
ou menos isto: “O Evangelho manda-nos amar o próximo. Mas, nas nossas sociedades, quem é o meu próximo?”. Já que estamos em maré de citações, outra, de
George Bernard Shaw: “O pior pecado contra o nosso semelhante não é odiá-lo, mas
ser indiferente para com ele”.
Vem toda esta conversa a propósito de uma história simples, banal – que só não o é porque o mundo é um lugar
estranho. Há poucos dias, Isaac Theil, de 65 anos, viajava de metro, na linha
de Brooklyn, Nova Iorque. Sossegado e quieto, a quiet man. O
passageiro sentado ao lado adormeceu, tombando a cabeça no seu ombro. Outro
passageiro, vendo aquilo, perguntou se Isaac queria ajuda para afastar o
estranho que se pusera com aproximações sonolentas. Isaac respondeu
algo como “Ele deve ter tido um dia comprido, deixemo-lo dormir. Já passámos pelo mesmo, não é?” A resposta deixou o interlocutor boquiaberto. Tão
espantado que, sorrateiramente, tirou uma fotografia à cena e colocou-a na Internet.
A partir daí, a imagem virou “viral”, como agora se diz: a fotografia percorreu
célere a blogosfera inteira (são muitos anos-luz, atenção), recebeu mais de um
milhão de “likes” no Facebook e foi aí partilhada umas 200 mil vezes.
Na manhã seguinte, a irmã de Isaac,
que vive no Canadá, ligou-lhe excitadíssima, dizendo que a sua fotografia voava pela Net
fora, que era o herói da jornada. O telefone de casa (ainda há disso?) não parou de tocar, com
chamadas comovidas de aplauso e de orgulho. Para Isaac Theil, tudo isto é um
pouco bizarro e surpreendente. Conta que, quando se apeou na estação de saída,
colocou a cabeça do passageiro em sono para o outro lado, não olhando sequer para
trás para ver como ficara o viajante. Desconhece-se a identidade do jovem
cansado. Saberá que é uma estrela dormente na Internet? Terá já acordado, ao fim destes
dias todos?
Esta é uma história pequenina,
daquelas que por vezes aparecem por aqui no Malomil. Outras também cá vêm
parar, como aquela, terrível, do homem que caiu à linha do metro de Nova
Iorque, morrendo sem que ninguém o salvasse.
Voltando a Isaac Theil: nada mais
literal do que a expressão “herói do momento”. E não vamos citar a estafada
frase do Warhol… Amanhã ninguém se vai lembrar dele. Mas agora todos recordam
coisas boas que fez na vida. Até a ex-mulher fala da forma civilizada como se
divorciaram, tendo-lhe Isaac dito que estaria disponível para a ajudar sempre
que fosse necessário. A filha de ambos, de 32 anos, desfaz-se em orgulhos
filiais, perguntando: “Quem deixaria que um estranho se encostasse a si, dormindo,
no metro de Nova Iorque?” But this is so typical of Dad… (entoação de voz babada). Os
vizinhos confirmam a sua generosidade, a sua disponibilidade para ajudar os
outros, contam histórias em que transportou ao hospital gente que mal conhecia.
Frank Capra está vivo e do céu caiu uma estrela.
Como sempre acontece, apareceram logo
os idiotas de serviço, falando de paternalismos e de racismos, aludindo ao facto
– fruto do acaso! – de Isaac ser judeu e de o jovem ser negro. Isaac disse
umas banalidades tão correctas e banais como o gesto que tivera: que o mais
importante seria recordar não sua pessoa mas a necessidade de ajudarmos os
outros, etc., etc.
Não me causa espanto o facto de uma
imagem destas, que deveria ser mais do que normal, se converter num fenómeno de
massas. Para o melhor e para o pior, a Internet é assim, a América também. Nem
sei se o gesto de Isaac será tão invulgar como o pintam. Mas pergunto-me e
pergunto-lhe: o que faríamos nós se numa
noite de Inverno um viajante…? Que faríamos se, ao entrarmos no Metro de
Lisboa, um jovem negro, com um capuz na cabeça, se encostasse a nós,
adormecendo? Deixaríamos que aí permanecesse, até sairmos na estação que
queríamos? Muito provavelmente, abandonaríamos a carruagem logo na paragem seguinte.
Sim, que faríamos nós? Respondam a esta pergunta, de certeza certa, e depois critiquem este «post» à vontade, por ser ridículo e piegas, por ser sentimentalão ou delicodoce - ou simplesmente por ser estúpido e tonto, como de facto é. Mas, que faríamos nós?
Para o José António,
com um abraço.
:) como gosto deste blogue.
ResponderEliminarjá me aconteceu, no comboio, com uma senhora. pediu-me desculpa, disse que estava a morrer de sono. disse-lhe que não fazia mal e deixei-a ficar. não sei se o teria feito com um homem, não sei. mas, sinceramente, não me pareceu, nem na altura, nem agora, nada de transcendente, apenas um «pequeno jeitinho». estranha sociedade esta.
Obrigado pela suas palavras, muito obrigado.
EliminarCordialmente,
António Araújo
É muito difícil saber de antemão, com alguma certeza, qual seria a minha reação a uma situação hipotética. Dependeria de demasiadas variáveis, Mas, no mundo estranho em que vivemos, o mais provável é que a sensação de insegurança que nos domina, notadamente nos grandes centros urbanos, contribuísse em grande medida para a minha decisão.
ResponderEliminarÉ por estas , e por todas as outras, que "venho" aqui todos os dias.
ResponderEliminarObrigado.
Eu é que agradeço a sua simpatia
EliminarCordialmente,
António Araújo
No Porto sei o que é que acontecia: ó meu caralho, chega pra lá a proa.
ResponderEliminarvinha enternecida anuir com o sentimento geral até dar com esta desagradável nota sobre um certo tipo de portuenses. Que vergonha..., existirem pessoas rudes e grosseiras a esse ponto não é exclusivo da Invicta, embora seja muito difundida a ideia de que por aqui 'se fala mal' e eu admita que o uso do vernáculo é muito mais liberal e comum do que noutras paragens nacionais.
ResponderEliminarMas a generosidade e a ternura também fazem parte do nosso ser e por cá dá-se muito colo e partilha-se muito carinho e o pão que se pode arranjar.
Mas a vida é feita disto: amor e o seu contrário, por isso que remédio tenho se não engolir a mágoa do que acabei de ler e ir-me embora.
Que pena...
Oh! Uma portuense terna e que não sai à rua, nem anda de metro, nem de comboio. Pois fique-se pela delicadeza das tílias de Lordelo do Ouro e do veludo da fímbria do mar. E nunca, mas nunca vá a Campanhã ou a Rio Tinto ou à Areosa ou ao Lagarteiro ou ao bairro do Cerco. Mas sim, percorra as ilhas e derrame generosidade por aquelas singelas misérias. E depois volte consolada para a Marechal Gomes da Costa. Triste, muito triste, é o meu Porto ocidental, ou acidental.
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