sexta-feira, 15 de novembro de 2013

Uma história pequenina.

 
 
 
 




          Há já alguns anos, uma revista francesa – creio que a Paris Match, mas não juro – fez a seguinte reportagem: numa das principais artérias de Paris, um homem era agredido violentamente, aos pontapés e bofetadas, por um grupo de outros homens. Sei que a ideia não era inteiramente nova, que já havia sido concretizada antes, sendo retomada depois, num propósito que é indiscutivelmente manipulador e sensacionalista. Desconheço se era tudo uma encenação teatral ou se, pelo contrário, a vítima, a troco de dinheiro ou outra benesse, aceitou mesmo ser espancada em público. O que sei é que, à vista das agressões, os que passavam por ali afastavam-se, fingiam que não viam, fechavam os olhos. Poucos interpelaram os agressores, e fizeram-no ainda assim de forma fugaz e passageira. Ao fim de várias horas, tendo sido captadas à distância dezenas de imagens de pessoas que passavam indiferentes ou atemorizadas, surgiu uma conclusão sombria: ninguém parou a violência, ninguém chamou a polícia.

          Há uma frase de Dickens que diz mais ou menos isto: “O Evangelho manda-nos amar o próximo. Mas, nas nossas sociedades, quem é o meu próximo?”. Já que estamos em maré de citações, outra, de George Bernard Shaw: “O pior pecado contra o nosso semelhante não é odiá-lo, mas ser indiferente para com ele”.

          Vem toda esta conversa a propósito de uma história simples, banal – que só não o é porque o mundo é um lugar estranho. Há poucos dias, Isaac Theil, de 65 anos, viajava de metro, na linha de Brooklyn, Nova Iorque. Sossegado e quieto, a quiet man. O passageiro sentado ao lado adormeceu, tombando a cabeça no seu ombro. Outro passageiro, vendo aquilo, perguntou se Isaac queria ajuda para afastar o estranho que se pusera com  aproximações sonolentas. Isaac respondeu algo como “Ele deve ter tido um dia comprido, deixemo-lo dormir. Já passámos pelo mesmo, não é?” A resposta deixou o interlocutor boquiaberto. Tão espantado que, sorrateiramente, tirou uma fotografia à cena e colocou-a na Internet. A partir daí, a imagem virou “viral”, como agora se diz: a fotografia percorreu célere a blogosfera inteira (são muitos anos-luz, atenção), recebeu mais de um milhão de “likes” no Facebook e foi aí partilhada umas 200 mil vezes.

          Na manhã seguinte, a irmã de Isaac, que vive no Canadá, ligou-lhe excitadíssima, dizendo que a sua fotografia voava pela Net fora, que era o herói da jornada. O telefone de casa (ainda há disso?) não parou de tocar, com chamadas comovidas de aplauso e de orgulho. Para Isaac Theil, tudo isto é um pouco bizarro e surpreendente. Conta que, quando se apeou na estação de saída, colocou a cabeça do passageiro em sono para o outro lado, não olhando sequer para trás para ver como ficara o viajante. Desconhece-se a identidade do jovem cansado. Saberá que é uma estrela dormente na Internet? Terá já acordado, ao fim destes dias todos?

          Esta é uma história pequenina, daquelas que por vezes aparecem por aqui no Malomil. Outras também cá vêm parar, como aquela, terrível, do homem que caiu à linha do metro de Nova Iorque, morrendo sem que ninguém o salvasse.

          Voltando a Isaac Theil: nada mais literal do que a expressão “herói do momento”. E não vamos citar a estafada frase do Warhol… Amanhã ninguém se vai lembrar dele. Mas agora todos recordam coisas boas que fez na vida. Até a ex-mulher fala da forma civilizada como se divorciaram, tendo-lhe Isaac dito que estaria disponível para a ajudar sempre que fosse necessário. A filha de ambos, de 32 anos, desfaz-se em orgulhos filiais, perguntando: “Quem deixaria que um estranho se encostasse a si, dormindo, no metro de Nova Iorque?” But this is so typical of Dad(entoação de voz babada). Os vizinhos confirmam a sua generosidade, a sua disponibilidade para ajudar os outros, contam histórias em que transportou ao hospital gente que mal conhecia. Frank Capra está vivo e do céu caiu uma estrela.

          Como sempre acontece, apareceram logo os idiotas de serviço, falando de paternalismos e de racismos, aludindo ao facto – fruto do acaso! – de Isaac ser judeu e de o jovem ser negro. Isaac disse umas banalidades tão correctas e banais como o gesto que tivera: que o mais importante seria recordar não sua pessoa mas a necessidade de ajudarmos os outros, etc., etc.

          Não me causa espanto o facto de uma imagem destas, que deveria ser mais do que normal, se converter num fenómeno de massas. Para o melhor e para o pior, a Internet é assim, a América também. Nem sei se o gesto de Isaac será tão invulgar como o pintam. Mas pergunto-me e pergunto-lhe: o que faríamos nós se numa noite de Inverno um viajante…? Que faríamos se, ao entrarmos no Metro de Lisboa, um jovem negro, com um capuz na cabeça, se encostasse a nós, adormecendo? Deixaríamos que aí permanecesse, até sairmos na estação que queríamos? Muito provavelmente, abandonaríamos a carruagem logo na paragem seguinte. Sim, que faríamos nós?  Respondam a esta pergunta, de certeza certa, e depois critiquem este «post» à vontade, por ser ridículo e piegas, por ser sentimentalão ou delicodoce - ou simplesmente por ser estúpido e tonto, como de facto é. Mas, que faríamos nós? 
 
 
 
Para o José António,
com um abraço.
 
 
 
 
 


8 comentários:

  1. :) como gosto deste blogue.

    já me aconteceu, no comboio, com uma senhora. pediu-me desculpa, disse que estava a morrer de sono. disse-lhe que não fazia mal e deixei-a ficar. não sei se o teria feito com um homem, não sei. mas, sinceramente, não me pareceu, nem na altura, nem agora, nada de transcendente, apenas um «pequeno jeitinho». estranha sociedade esta.

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    1. Obrigado pela suas palavras, muito obrigado.
      Cordialmente,
      António Araújo

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  2. É muito difícil saber de antemão, com alguma certeza, qual seria a minha reação a uma situação hipotética. Dependeria de demasiadas variáveis, Mas, no mundo estranho em que vivemos, o mais provável é que a sensação de insegurança que nos domina, notadamente nos grandes centros urbanos, contribuísse em grande medida para a minha decisão.

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  3. É por estas , e por todas as outras, que "venho" aqui todos os dias.
    Obrigado.

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    1. Eu é que agradeço a sua simpatia
      Cordialmente,
      António Araújo

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  4. No Porto sei o que é que acontecia: ó meu caralho, chega pra lá a proa.

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  5. vinha enternecida anuir com o sentimento geral até dar com esta desagradável nota sobre um certo tipo de portuenses. Que vergonha..., existirem pessoas rudes e grosseiras a esse ponto não é exclusivo da Invicta, embora seja muito difundida a ideia de que por aqui 'se fala mal' e eu admita que o uso do vernáculo é muito mais liberal e comum do que noutras paragens nacionais.
    Mas a generosidade e a ternura também fazem parte do nosso ser e por cá dá-se muito colo e partilha-se muito carinho e o pão que se pode arranjar.
    Mas a vida é feita disto: amor e o seu contrário, por isso que remédio tenho se não engolir a mágoa do que acabei de ler e ir-me embora.
    Que pena...

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  6. Oh! Uma portuense terna e que não sai à rua, nem anda de metro, nem de comboio. Pois fique-se pela delicadeza das tílias de Lordelo do Ouro e do veludo da fímbria do mar. E nunca, mas nunca vá a Campanhã ou a Rio Tinto ou à Areosa ou ao Lagarteiro ou ao bairro do Cerco. Mas sim, percorra as ilhas e derrame generosidade por aquelas singelas misérias. E depois volte consolada para a Marechal Gomes da Costa. Triste, muito triste, é o meu Porto ocidental, ou acidental.

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