sexta-feira, 29 de novembro de 2013

Reflexões a propósito de um livro - 6

 
 



 
Retomo a necessidade de se repensar a questão colonial para sugerir ao leitor um exercício especulativo simples. Construa uma tabela de dupla entrada. Coloque de um lado, como título, «Contributos da herança colonial de romanos e árabes para a transformação civilizacional dos povos europeus». Depois preencha esse lado da tabela com tópicos exemplificativos. Sugiro alguns: introdução da cultura escrita, da ideia de estado territorial centralizado fundado na lei, de um modelo de civilização material até aí desconhecido (cidades, estradas e demais edificações), da monetarização e complexificação das economias, do cálculo, de novos hábitos de vida e do cristianismo, de progressos técnicos, a imposição da pax romana ou a tolerância religiosa islâmica. Conjunto de contributos valorizados nas interpretações que os povos europeus fazem do seu passado enquanto colonizados, por isso mesmo transmitidos à generalidade dos cidadãos desde os mais elementares níveis de ensino. Do outro lado da tabela, coloque como título «Contributos dos europeus para a transformação civilizacional dos povos africanos nos séculos XIX e XX». As palavras contributos e civilizacional gerariam polémicas de imediato, mesmo sabendo antecipadamente que esse lado da tabela seria preenchido com tópicos na substância semelhantes aos do outro lado da tabela. Para terminar o exercício, tenha sempre em mente o lugar dos portugueses (ou dos que viriam a ser portugueses) em qualquer dos processos históricos e sociais referidos enquanto colonizados e enquanto colonizadores.
A revolução cultural associada à introdução da escrita em curso e, por essa via, a massificação da escolarização, bem como as transformações associadas ao cristianismo ou à civilização material de tipo urbano, entre muitas outras transformações que dignificam os africanos de hoje são de génese colonial. Nesse mesmo sentido, acrescento que nas cabeças das pessoas comuns moçambicanas, referência que tenho utilizado como exemplo, não existem necessariamente contradições entre a filiação inequívoca (ou profunda) à independência do seu país, portanto a recusa das mais diversas formas de dominação alienígena, e a valorização do legado colonial português em diversos aspetos. Desse modo, não será ilegítimo inferir que a dignidade daquela identidade nacional africana na atualidade alimenta-se construtivamente de ambas as fontes (colonização portuguesa e conquista da independência), bem como das heranças tradicionais africanas, as últimas tão incómodas ou indiferentes para a dominação colonial europeia quanto para a dominação nacionalista africana que tutela a sociedade desde a independência. Impor sobre qualquer desses referentes históricos representações marcadamente depressivas, isto é, de tendência única implica negar a complexidade do sentido existencial que um povo, por ele mesmo, atribui ao seu destino coletivo. Significa isso que o lado opressivo, violento ou traumático da dominação colonial europeia não esteja presente nas memórias coletivas dos africanos? De modo nenhum. Mas o mesmo vale para o extremo oposto, tal como tenho considerado.
Em contracorrente ao que têm sido as tradições académicas coloniais e pós-coloniais – europeias, africanas ou outras, produzidas por elites que por sistema desconsideram o senso comum, isto é, desconsideram o sentido da vida quotidiana efetivamente vivida geração após geração autóctone ou miscigenada –, afirmo que as avaliações dos africanos sobre o passado colonial são heterogéneas, complexas e dinâmicas. No caso do último atributo, é quase inviável que se possa garantir com objetividade analítica qual dos extremos da colonização (disruptivo ou construtivo) mais pesou na época colonial, mais pesa nas representações de senso comum desse passado elaboradas no presente ou qual dos extremos mais pesará no futuro. Características da colonização a que se deve acrescentar outra. Recorro, uma vez mais, ao exemplo moçambicano: as pessoas comuns com as quais tenho trabalhado revelam, nos seus discursos, especial propensão para gerir as ambivalências da sua relação com os universos de sentido de que fazem parte, ao contrário da bem mais forte propensão maniqueísta dos discursos sofisticados das minoritárias elites políticas, académicas ou económicas moçambicanas. Tem sido também no domínio dos discursos institucionais ou formais que africanos, europeus e outros revelam-se muito parecidos, uma espécie de concordata de elites contra o senso comum, muito em particular quando está em causa a fase final da colonização, a da guerra (1961-1974).
Tendo em conta que desde que a história se fez história que os processos de dominação colonial contam-se entre os que mais contribuíram para a transformação dos povos, quando esses mesmos processos são rotulados de colonialismo tal perspetiva é sustentada por pressupostos, confessados e/ou inconfessados, de atribuir ao fenómeno em causa uma natureza próxima ou equivalente à de crime contra a humanidade. Mesmo admitindo que tal opção seja legítima no domínio das atitudes políticas e ideológicas, torna-se inaceitável no plano analítico ou académico sob pena de reduzirmos a história e demais ciências sociais a tribunais que julgam as relações entre povos em vez de se limitarem a compreendê-los e a analisá-los. Para citar um exemplo bem mais extremo ainda que de natureza diferente, é legítimo condenar moralmente o nazismo, mas dificilmente compreendemos ou analisamos esse fenómeno se, a montante, não considerarmos o Tratado de Versalhes (1919) e se, a jusante, fizermos tábua rasa do modo como a identidade alemã tem gerido, nas últimas mais de seis décadas, os seus complexos de culpa e de arrependimento que (re)fundaram uma ordem social e moral, no sentido freudiano dos termos, não menos legítima na sua sustentabilidade.
De resto, a identidade portuguesa, como outras, é constituída essencialmente pela sedimentação da consciência de um longuíssimo passado, sendo que a colonização corresponde ao mais longo e recente ciclo histórico, formalmente balizado entre a conquista de Ceuta, em 1415, e as independências africanas, de 1975. Este multissecular ciclo colonial, bem ou mal, projetou a identidade portuguesa no mundo, identidade que passou a alimentar-se (também) desse mesmo mundo. Como é improvável que os séculos que se seguirão esvaziem esta dinâmica, existem motivos suficientes (mesmo de sobra) para avançar com renovações interpretativas como as que venho propondo nesta série de textos e no livro que lhes serve de referência.
Termino com uma apreciação valorativa que, na prática, abre um parêntesis na lógica argumentativa que procuro manter nestes textos: sobra a ideia de que as elites académicas e intelectuais portuguesas (hegemonicamente) dominantes muito têm feito nas últimas décadas, e com sucesso, para não perceberem nem deixarem perceber o lugar do povo a que pertencem na história das transformações do mundo, muito em particular no século XX. Os trabalhos de campo que levo a cabo desde final do século passado com gente humilde moçambicana demonstram que estes (ou parte deles) perceberam primeiro e melhor os significados ambivalentes da herança colonial portuguesa, provavelmente como outros africanos comuns de antigas colónias dominadas pelas então potências ultramarinas europeias. Sintoma do crónico atraso cultural (sei que isso não existe…) português.
 
 
Gabriel Mithá Ribeiro
 

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