Retomo a necessidade de se repensar a questão
colonial para sugerir ao leitor um exercício especulativo simples. Construa uma
tabela de dupla entrada. Coloque de um lado, como título, «Contributos da herança colonial de romanos e árabes para a
transformação civilizacional dos povos europeus». Depois preencha esse lado
da tabela com tópicos exemplificativos. Sugiro alguns: introdução da cultura escrita,
da ideia de estado territorial centralizado fundado na lei, de um modelo de civilização
material até aí desconhecido (cidades, estradas e demais edificações), da monetarização
e complexificação das economias, do cálculo, de novos hábitos de vida e do
cristianismo, de progressos técnicos, a imposição da pax romana ou a tolerância religiosa islâmica. Conjunto de
contributos valorizados nas interpretações que os povos europeus fazem do seu
passado enquanto colonizados, por isso mesmo transmitidos à generalidade dos
cidadãos desde os mais elementares níveis de ensino. Do outro lado da tabela, coloque
como título «Contributos dos europeus
para a transformação civilizacional dos povos africanos nos séculos XIX e XX».
As palavras contributos e civilizacional gerariam polémicas de
imediato, mesmo sabendo antecipadamente que esse lado da tabela seria preenchido
com tópicos na substância semelhantes aos do outro lado da tabela. Para
terminar o exercício, tenha sempre em mente o lugar dos portugueses (ou dos que
viriam a ser portugueses) em qualquer dos processos históricos e sociais
referidos enquanto colonizados e enquanto colonizadores.
A revolução cultural associada à
introdução da escrita em curso e, por essa via, a massificação da
escolarização, bem como as transformações associadas ao cristianismo ou à
civilização material de tipo urbano, entre muitas outras transformações que dignificam
os africanos de hoje são de génese colonial. Nesse mesmo sentido, acrescento que
nas cabeças das pessoas comuns moçambicanas, referência que tenho utilizado
como exemplo, não existem necessariamente contradições entre a filiação
inequívoca (ou profunda) à
independência do seu país, portanto a recusa das mais diversas formas de
dominação alienígena, e a valorização do legado colonial português em diversos aspetos.
Desse modo, não será ilegítimo inferir que a dignidade daquela identidade
nacional africana na atualidade alimenta-se construtivamente de ambas as fontes
(colonização portuguesa e conquista da independência), bem como das heranças
tradicionais africanas, as últimas tão incómodas ou indiferentes para a
dominação colonial europeia quanto para a dominação nacionalista africana que tutela
a sociedade desde a independência. Impor sobre qualquer desses referentes históricos
representações marcadamente depressivas, isto é, de tendência única implica
negar a complexidade do sentido existencial que um povo, por ele mesmo, atribui
ao seu destino coletivo. Significa isso que o lado opressivo, violento ou traumático
da dominação colonial europeia não esteja presente nas memórias coletivas dos
africanos? De modo nenhum. Mas o mesmo vale para o extremo oposto, tal como tenho
considerado.
Em contracorrente ao que têm sido as
tradições académicas coloniais e pós-coloniais – europeias, africanas ou
outras, produzidas por elites que por sistema desconsideram o senso comum, isto
é, desconsideram o sentido da vida quotidiana efetivamente vivida geração após
geração autóctone ou miscigenada –, afirmo que as avaliações dos africanos
sobre o passado colonial são heterogéneas, complexas e dinâmicas. No caso do
último atributo, é quase inviável que se possa garantir com objetividade
analítica qual dos extremos da colonização (disruptivo ou construtivo) mais pesou
na época colonial, mais pesa nas representações de senso comum desse passado elaboradas
no presente ou qual dos extremos mais pesará no futuro. Características da
colonização a que se deve acrescentar outra. Recorro, uma vez mais, ao exemplo
moçambicano: as pessoas comuns com as quais tenho trabalhado revelam, nos seus
discursos, especial propensão para gerir as ambivalências da sua relação com os
universos de sentido de que fazem parte, ao contrário da bem mais forte propensão
maniqueísta dos discursos sofisticados das
minoritárias elites políticas, académicas ou económicas moçambicanas. Tem sido também
no domínio dos discursos institucionais ou formais que africanos, europeus e
outros revelam-se muito parecidos, uma espécie de concordata de elites contra o
senso comum, muito em particular quando está em causa a fase final da
colonização, a da guerra (1961-1974).
Tendo em conta que desde que a história
se fez história que os processos de dominação colonial contam-se entre os que
mais contribuíram para a transformação dos povos, quando esses mesmos processos
são rotulados de colonialismo tal
perspetiva é sustentada por pressupostos, confessados e/ou inconfessados, de
atribuir ao fenómeno em causa uma natureza próxima ou equivalente à de crime
contra a humanidade. Mesmo admitindo que tal opção seja legítima no domínio das
atitudes políticas e ideológicas, torna-se inaceitável no plano analítico ou
académico sob pena de reduzirmos a história e demais ciências sociais a
tribunais que julgam as relações entre povos em vez de se limitarem a
compreendê-los e a analisá-los. Para citar um exemplo bem mais extremo ainda
que de natureza diferente, é legítimo condenar moralmente o nazismo, mas
dificilmente compreendemos ou analisamos esse fenómeno se, a montante, não
considerarmos o Tratado de Versalhes (1919) e se, a jusante, fizermos tábua
rasa do modo como a identidade alemã tem gerido, nas últimas mais de seis
décadas, os seus complexos de culpa e de arrependimento que (re)fundaram uma
ordem social e moral, no sentido freudiano dos termos, não menos legítima na
sua sustentabilidade.
De resto, a identidade portuguesa, como
outras, é constituída essencialmente pela sedimentação da consciência de um
longuíssimo passado, sendo que a colonização corresponde ao mais longo e
recente ciclo histórico, formalmente balizado entre a conquista de Ceuta, em
1415, e as independências africanas, de 1975. Este multissecular ciclo
colonial, bem ou mal, projetou a identidade portuguesa no mundo, identidade que
passou a alimentar-se (também) desse mesmo mundo. Como é improvável que os
séculos que se seguirão esvaziem esta dinâmica, existem motivos suficientes
(mesmo de sobra) para avançar com renovações interpretativas como as que venho propondo
nesta série de textos e no livro que lhes serve de referência.
Termino com uma apreciação valorativa
que, na prática, abre um parêntesis na lógica argumentativa que procuro manter
nestes textos: sobra a ideia de que as elites académicas e intelectuais
portuguesas (hegemonicamente) dominantes muito têm feito nas últimas décadas, e
com sucesso, para não perceberem nem deixarem perceber o lugar do povo a que
pertencem na história das transformações do mundo, muito em particular no século
XX. Os trabalhos de campo que levo a cabo desde final do século passado com
gente humilde moçambicana demonstram que estes (ou parte deles) perceberam
primeiro e melhor os significados ambivalentes da herança colonial portuguesa,
provavelmente como outros africanos comuns de antigas colónias dominadas pelas
então potências ultramarinas europeias. Sintoma do crónico atraso cultural (sei
que isso não existe…) português.
Gabriel
Mithá Ribeiro
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