Carta à Directora do «Público» (07.11.2013) – Moçambique:
árvore e floresta*
Enquanto natural do país e
investigador, há muito que vou acompanhando a realidade moçambicana. Se é por
demais preocupante o que vai acontecendo, seria útil que víssemos não apenas
as árvores mas também a floresta. Não sendo negativo em si, a verdade é que só
despertamos para certas realidades por vagas episódicas quando, até por razões
históricas como é o caso, a atenção aos espaços de língua oficial portuguesa
poderia ser bem mais consistente. E é difícil trazer certos temas para a
comunicação social portuguesa. Para citar um caso recente, disponho de registos
áudio deste ano de 2013 de discursos de cidadãos comuns moçambicanos com
passagens sobre o que pensam dos portugueses (de hoje e do tempo colonial), da
criminalidade, dos linchamentos, entre outros temas, e tenho tentado sem
sucesso colocá-los numa rádio portuguesa. Ainda não perdi a esperança, mas...
O que agora acontece em Moçambique
implica que se percebam algumas das causas estruturais, pois trata-se de um dos
destinos inevitáveis da emigração portuguesa agora e no futuro, como Portugal
será um dos destinos inevitáveis da imigração e da circulação de cidadãos das
ex-colónias. Abordo de modo sucinto três aspetos fundamentais: (i) a forte
incapacidade da sociedade moçambicana em exorcizar a violência, questão que se
arrasta desde o fim da guerra civil, em 1992; (ii) a evolução demográfica que
explica parte importante dos problemas estruturais de Moçambique (como de outros
países) e em relação à qual a consciência (ou mesmo pressão) internacional tem
sido quase nula; e (iii) pontuais porém significativas regressões na forma como
o estado tem gerido a sociedade em relação ao que foi a herança colonial
portuguesa.
Quanto à incapacidade de exorcizar a
violência, os dezasseis anos de uma guerra civil devastadora (1976-1992) têm
sido em geral silenciados nos discursos oficiais do poder e da oposição
moçambicanos através do empolamento da guerra anterior, a colonial ou de libertação
(1964-1974). Tal silenciamento, entre outros aspetos, está a impedir que se
passe aos mais novos a consciência do mal que os povos podem fazer a eles
mesmos, numa sociedade em que grande parte dos indivíduos nasceu depois da
independência (1975) e mesmo depois da guerra civil (1976-1992). A guerra
colonial matou cerca de três mil militares, a que devem acrescentar os
guerrilheiros da Frelimo e civis, todavia decorreu num contexto regenerador da
sociedade à época, o mais importante do século XX tendo em conta a qualidade de
vida das populações. A guerra civil que se seguiu entre a Frelimo e a Renamo
foi das mais violentas de sempre em Moçambique (ou mesmo a mais violenta),
durou muito mais tempo e matou cerca de um milhão de pessoas, tendo sido quase só
destrutiva a nível material e social. No entanto, este último conflito paira
num limbo que contribui seriamente para que a violência se torne endémica,
posto que o seu ciclo não foi fechado dado que o exorcismo dos males da guerra
está em grande parte por fazer. A guerra civil sobrevive, portanto, como que
num interdito corrosivo para os fundamentos da ordem social moçambicana. É como
se na Europa falássemos essencialmente da I Guerra Mundial (1914-1918) e
ignorássemos a mais recente, a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), sendo que a
última não era ensinada nas escolas, não havia imagens, debates recorrentes,
etc.
A nível demográfico, o problema
assume contornos dramáticos há muito, porém estranhamente pouco têm chamado a
atenção. Moçambique passou de cerca de 8 para 24 milhões de habitantes entre
meados dos anos 70 e atualidade, portanto a população triplicou em quatro
décadas e apesar do longo período de guerra civil, com a nota desse fenómeno
ser pautado por uma urbanização rápida e em grande parte descontrolada. Esta
situação, por si, gera todo o tipo de problemas, entre eles os de segurança, de
acesso à saúde, à habitação, ao ensino, de circulação automóvel, ambientais,
etc. Nem o melhor governo do mundo teria ou terá capacidade para enfrentar tais
bloqueios sem que se coloque no centro das preocupações de todos (governo,
universidades, sociedade, outros governos e organizações internacionais) a
questão demográfica. Só que, no caso de África e por razões históricas, não é
viável entrar pelo debate demográfico com racionalidade e eficácia sem que
antes se debata com renovada maturidade crítica a questão colonial e o racismo,
temas cujas abordagens permanecem muito deficientes. Foi por essas e outras
razões que publiquei o livro «O colonialismo nunca existiu!» (Gradiva, 2013)
que permanece mais ou menos silenciado, mas acrescento que faz reparos críticos
severos a académicos que, no meu ponto de vista, contam-se entre os maiores
responsáveis pelo que acontece nas sociedades, como se as universidades não fossem
das maiores responsáveis pelo facto de as sociedades não serem capazes de
antecipar e enfrentar com maior eficácia as crises. Em Portugal, em Moçambique
ou onde quer que existam ciências sociais e humanidades. Estou, sem dúvida, a
fazer publicidade em causa própria, mas não menos a fazer serviço público.
Quanto ao terceiro aspeto, sem
jamais colocar em causa a justiça e a dignidade das independências nacionais
africanas que, sem dúvida, trouxeram benefícios fundamentais e inalienáveis aos
povos de África, a verdade é que em aspetos muito precisos da governação e da
vida coletiva não é tão absurdo colocar a hipótese da existência de regressões
em relação ao passado. Uma delas reside precisamente na área da justiça e é
explicada pelo senso comum moçambicano. Na primeira fase da independência a
justiça foi trazida para a praça pública pelo presidente Samora Machel, a
«justiça popular». Sem colocar em causa a legitimidade do regime para ter
procedido, à época, desse modo, e sem generalizar a avaliação para outros
domínios da ação do presidente Samora Machel (meritória aos olhos dos seus
concidadãos em aspetos como a massificação do ensino ou a ética na gestão da
«coisa pública»), o que é facto é que Moçambique vive hoje o problema endémico
gravíssimo dos linchamentos populares de alegados criminosos, atitude cuja
génese e legitimidade remete, ao menos em parte, para a forma «popular» de
fazer justiça do primeiro presidente de Moçambique. E o fenómeno dos
linchamentos não pode ser desligado do «novo» fenómeno dos raptos naquilo que
tem a ver com a regulação da vida social pelo estado e pelas elites africanas.
Se a isso juntarmos o facto de a criminalidade estar a transitar de ter apenas
bens materiais como alvos (fixos ou móveis: casas, carros, telemóveis, etc.) para
atingir crescentemente a própria dignidade da condição humana (sequestros e
raptos), creio que existem razões para se considerar que existem sintomas de
regressões civilizacionais em Moçambique em domínios muito precisos da vida
coletiva. Eles, no entanto, jamais podem ser generalizados. Devo sublinhar que
não escrevi «retrocessos», mas «regressões» no sentido freudiano do termo. Os
termos apontam para domínios muito diferenciados. Também não receio utilizar o
termo «civilizacional».
A terminar, insisto: nada do que
está em causa se entenderá com propriedade enquanto não retornarmos com sentido
crítico renovado ao tema da colonização e ao tema do racismo.
Gabriel Mithá Ribeiro
* Versão com acertos de texto enviado ao «Público» e
não publicado.
O Gabriel Mithá Ribeiro deveria saber que no país de que ele é natural se escreve, e bem, «aCção», «aCtualidade», «aspeCto» e «coleCtiva».
ResponderEliminarCaro Octávio dos Santos
EliminarTem razão. Resisti algum tempo, mas por razões pragmáticas (algumas instituições e editoras simplesmente impõem o novo AO) acabei por optar pela coerência. Com a alma dorida. Talvez como muitos.
Cumprimentos,
Gabriel Mithá Ribeiro
Tem de me explicar, se conseguir, onde e como é que há «coerência» no AO90. Quanto às instituições e editoras que (lhe) impõem o dito cujo, mande-as... àquele sítio. Verá como fica com a alma menos «dorida».
EliminarMoçambique e Angola é que nos poderão ajudar... Querem impor-nos o desgraçado AO90 como facto consumado!
ResponderEliminarCaro Prof Mithá Ribeiro,
ResponderEliminarAsssiti à sua Confª na Beira e fiquei com uma ideia do seu pensamento. Mais que ideia, interesse em acompanhar o caminho que está a percorrer, e confesso-lhe, um enorme prazer intelectual e admiração cidadã pelas portas (ousadas) que nos abre. Mas devo dizer-lhe que escolheu um caminho muito difícil. O establishment é por natureza conservador, mesmo quando o seu conservadorismo assenta nos pressupostos marxistas com que relação colonial foi analizada no séc XX. E dá trabalho, para além de "arriscado" em termos de correcção política, sair desse paradigma.No caso dos PALOPS tem ainda que contar com a enorme actividade, incluindo intelectual, de confissões missionárias, a maioria protestantes e que nunca perceberam nada sobre colonização portuguesa, da mesma forma que a Europa do Norte nunca percebu nada de Portugal nem dos portugueses.... Era conversa para horas.... mas não desista. O seu trabalho é altamente meritório e merece ser seguido com atenção. Seja persistente. A bem da fraternidade Portugal-PALOP's que sei que existe e é profunda a nível dos povos. Uma relação que uma certa geração de Goeses também tem connosco e que pude testemunhar. Mas não peça à grande maioria dos estrangeiros que entendam isso, para além de todos os defeitos e das muitas qualidades, os portugueses foram no passado grandes sedutores de almas e quem não entender isso perde metade do filme. Gosto de ouvir o Sr Niquisse, que trata do meu quintal, quando me diz "...para lá de Manica falam "uma coisa" que a gente não entende...." - referindo-se claro ao Inglês, do Zimbabué. É a minha vingança relativamente ao Economist que escreveu uma vez referindo-se à nossa língua "...who cares about learning it, anyway....". Com a colonização é igual. Tivemos a nossa e ao fim deste tempo todo, como V. dizia na sua Conferência, está largamente por estudar e conhecer. Bem haja e vá em frente. Abraço António, Beira
Obrigado, António. Interessante comentário seu sobre realidades que têm muito por revelar. Faço o possível tal com o António seguramente fará.
EliminarAbraço amigo,
Gabriel Mithá Ribeiro
Não se preocupe por utilizar o AO90. Se todos os jovens dos 5 aos 18 o usam, daqui a 10 ou 20 anos só os caretas anquilosados é que não o usam.
ResponderEliminarQuanto ao texto, está interessante.
Debaixo das mangueiras carregadas, olhando lá para a frente, isolado e aterrorizado pela crescente onda de racismo, pelos raptos, pela guerra que vai crescendo, li o teu artigo.
ResponderEliminarSó o facto de alguém investigar com seriedade o fenómeno social moçambicano, engrandece o que fazes.
Devias acompanhar os últimos acontecimentos, o bluff político e o momento eleitoral - só visto.
Abraço
Jafar
Obrigado e abraço, Jafar.
ResponderEliminarGabriel