O terceiro e último fator associado às
ciências sociais e humanidades que ajuda a compreender os bloqueios das
sociedades contemporâneas é o vício de se pensar o século XXI com modelos dos
séculos XIX e XX, atitude em grande parte transposta dos países do hemisfério
norte para o resto do mundo, um dos paradoxos das independências dos dois
últimos séculos. Por
responsabilidades das academias, a herança do século XX, ao nível dos modelos de
pensamento dominantes, transformou-se muito mais num obstáculo do que numa
vantagem para percebermos este nosso século, o XXI. Nele não vivemos mais nos
dias da colonização europeia, não vivemos mais nos dias da guerra fria, não
vivemos mais nos dias do racismo formalmente instituído, sejam os dias do
nazismo no hemisfério norte sejam os dias do apartheid no hemisfério sul, dois
dos símbolos maiores do fenómeno. A hegemonia económica do ocidente dá também sinais de, em poucas gerações, poder ser
história. Naquilo que é fundamental para as vidas comuns, o mundo vivido, como
lhe compete, não parou nem parará. Transformou-se de forma substantiva. Em
sentido contrário, o pensamento dominante sobre ele reage cristalizando-se
algures em contextos ideológicos do século XX.
Significa
que as crises contemporâneas quando se manifestam, naquilo em que as sociedades
dependem do pensamento que elaboram sobre elas mesmas (e é muito!), permanecerão
endémicas enquanto as ciências sociais e humanidades não avançarem para
processos de renovação epistemológica, isto é, para processos de profunda
renovação dos significados e da natureza dos saberes que têm produzido e
divulgado. Na verdade, o que vamos assistindo é a uma cavalgada de produção em
grande quantidade de saberes mais ou menos estereotipados, sintoma da
existência de escolas de pensamento único no interior das instituições de
ensino superior, para mais quando muitas vezes está em causa a produção de
tipos de saberes crescentemente dissonantes em relação às perceções de senso comum
sobre a vida vivida. Tais incongruências são insustentáveis a prazo dado que as
ciências, muito em particular as ciências sociais e humanidades, para
sobreviverem com dignidade dependem do crédito que as pessoas comuns lhes
conferem. Vivemos tempos em que se finge não se perceber que esse crédito social
teve melhores dias.
Ao
ponto a que se chegou suponho aceitável considerar que quando os académicos
alegam o descrédito da política não estão mais do que a olhar-se a si mesmos
num espelho côncavo. Será ainda tentar tapar o sol com a peneira supor que o
essencial das soluções reside na taxa de
empregabilidade dos cursos superiores ou médios. Se tal preocupação não
pode deixar de ser tida em conta, será muito mais relevante que não se confunda
o acessório com o essencial. E o essencial, neste caso, é o Conhecimento pelo
Conhecimento.
Em
suma, são diversos os sintomas de um modelo de pensamento e de um modelo de universidade
carentes de reinvenção.
Gabriel
Mithá Ribeiro
Caro Gabriel Mithá Ribeiro,
ResponderEliminarPresentemente é notória e crucial a necessidade de instigar o Conhecimento.
Conhecimento consubstanciado na incessante busca do saber. Liberto de barreiras/balizas intelectuais dadas como adquiridas e predominantes no meio académico.
Verifico no seu texto uma audaciosa, pertinente e promissora abordagem que terá por certo continuidade. Assim espero.
Atentamente,
Henrique de Sousa
Caro Henrique de Sousa
EliminarA função do meio académico, por ser absolutamente essencial para a qualidade da vida social como expliquei no início, necessita de uma permanente (ou cíclica) renovação no domínio do Conhecimento e também das atitudes. A sequência de textos prosseguirá, de agora em diante especificamente focada na questão das identidades coletivas e na questão colonial. Estes quatro primeiros textos eram introdutórios, mas indispensáveis no meu ponto de vista.
Abraço,
Gabriel Mithá Ribeiro
Com o proverbial humor britânico George Bernard Shaw disse que “todas as profissões não eram mais do que uma conspiração contra os leigos”. Com notavel presciência ele já antevia em 1906, ( ano em que escreveu a peça “The Doctor's Dilemma” ,onde pôs um dos personagens a dizer a frase), que a crescente especialização teria como consequencia a formação de grupos zelando ferozmente pelo monopólio do conhecimento em areas bem delimitadas.
ResponderEliminarÉ vulgar encontrarem-se hoje na Universidade esses comportamentos de defesa territorial e de sentimento tribal, muito embora não falte quem alerte para o perigo que representa o afunilamento das areas de conhecimento, não vindo longe o dia em que, ao termos de saber cada vez mais sobre cada vez menos, saberemos tudo sobre nada.
As Universidades têm o duplo papel de serem o repositório do conhecimento ao mesmo tempo que o expandem através da investigação, e essa dupla função terá de ser um continuum, se quiser preparar as novas gerações para enfrentar o futuro, também ele dinamico e não estático.
A questão é que, (como GB Shaw também disse com ironia...), prever é muito dificil especialmente em relação a esse futuro, logo a melhor garantia para que sejam bem sucedidos num mundo volúvel, é dotar os alunos com uma educação o mais ampla possivel , ou seja falando claro, na qual as Humanidades não tenham sido atiradas para o baú das inutilidades.
Na Grã-Bretanha a tentativa de conciliação entre diferentes tipos de conhecimento remonta aos anos vinte quando a Universidade de Durham inovou com o curso conhecido como PPE, ou seja Politics,Philosophy and Economy e que se veio a tornar a formação académica que o maior numero de líderes deste país escolheu. A lista é longuíssima, e para só falar na actualidade temos o Primeiro-Ministro David Cameron, o Chanceler do Tesouro George Osborne, William Hague dos N. Extrangeiros, Jeremy Hunt da Educação, Danny Alexander, Philip Hammond ,etc, e para se não julgar que apenas os conservadores têm essa preferencia , também Ed Miliband o chefe da oposição fez a mesma opção.Nem tudo são rosas mas é pelo menos alguma coisa.
Mas haveria muito mais a dizer se a prosa não fosse já demasiado longa. Sobretudo sobre o que a transformação que a economia de orientação capitalista causa na Universidade ao torna-la numa mera de manufactura cujo produto é o conhecimento. Sobre isso o livro de Michael Hardt e António Negri “Empire” constitui uma fonte essencial.
Boa sorte no seu trabalho e keep digging!
Caro Manuel.m
EliminarDuas notas sobre o seu comentário.
1ª De natureza institucional. Não estou necessariamente em desacordo consigo, no entanto gostaria de sublinhar que as instituições podem ser tanto mais úteis ao todo social quando mais preservarem aquilo que lhes é específico, sem se confundirem com esse mesmo todo social. É a forma de melhor cumprirem com eficácia o seu papel nos destinos coletivos, no caso das universidades é a qualidade da gestão do Conhecimento. Daí que eu critique a fragilidade de demarcação entre o político e o académico, que considero um ponto muito crítico, enquanto o ponto de vista do Manuel.m tem sido o de colocar o enfoque na relação entre o económico e académico que admito, por exemplo, possa estar a ter consequências em domínio essenciais como a incapacidade (ou o «atraso») na renovação dos modelos energéticos dos quais dependemos. Escrevendo em jeito de caricatura, a ideia é esta: tal como os militares nos quartéis, o lugar dos académicos é nas universidades e quando saem (e é importante que saiam, mas) deveriam ser prudentes na utilização das armas que possuem, sob pena de (também) causarem danos sociais e descrédito à sua instituição.
2º Neste ponto estamos mais de acordo. Dentro das universidades, a tese que defende da conciliação de diferentes tipos de conhecimentos é absolutamente essencial, com a nota de ter de ser feita de acordo com as realidades do século XXI. Esboço aqui também uma caricatura. Parte das limitações de economistas, sociólogos ou antropólogos é o facto de não saberem história, isto é, terem uma relação «adolescente» com o tempo. Por seu lado, parte das limitações dos historiadores tem a ver com a gestão muito limitada do domínio teórico ou conceptual, por persistirem demasiado presos a lógicas descritivas. A grande força dos psicólogos sociais vem do rigor do domínio teórico ou conceptual (veja-se, por exemplo, a edição sobre psicologia social editada pela Gulbenkian e dirigida pelo Prof. Jorge Vala, já com várias edições) e, com eles, tal como com os filósofos, as ciências sociais e humanidades têm muito a aprender, só que os psicólogos sociais (não aplico isto à filosofia por ser eminentemente especulativa) parece-me que têm muito a aprender como captar a realidade empírica, por exemplo, com os antropólogos. Desculpe a expressão, mas esta «salada russa» não sendo benéfica tal como está, no entanto tem um grande potencial de renovação. É uma herança valiosa do século XX e de séculos anteriores, mas nós não evidenciamos saber lidar com ela no século XXI.
Isto também já vai longo. Entre concordâncias e discordâncias, vamos continuando.
Abraço,
Gabriel Mithá Ribeiro