segunda-feira, 7 de abril de 2014

Gadawan Kura.

 
 
 
 
Abdullahi Mohammed com Mainasara
2007
 
Mummy Ahmadu e Mallam Mantari Lamal com Mainasara
Abril de 2005
 
Mallam Galadima Ahmadu com Jamis
2007
 
 
 
Dayaba Usman com o macaco Clear
Abuja, 2005

Mallam Mantari Lamal com Mainasara
Abuja, 2005


 
 
 
Abdullah Mohammed com Mainasara
Lagos, 2007
 
The Hyena Men of Abuja
Abuja, 2005





No dia – que está próximo – em que um cataclismo levar à destruição do mundo, os visitantes doutros planetas, quando cá chegarem, não terão dificuldades em perceber como é que estes povos terráqueos arrasaram uma civilização que, não desfazendo, até era muito jeitosa. Basta verem o vídeo de Heathen Child, de Nick Cave, e perceberão nesse instante que batemos no fundo. Não dá mais, acabou. Fim de linha e ponto.
Vem isto a propósito do facto daquele artista australiano, para a feitura do seu clip, se ter baseado à larga e à farta na obra de Pieter Hugo, fotógrafo sul-africano nascido em 1976 em Joanesburgo, que vive actualmente na Cidade do Cabo e do qual está patente uma fabulosa retrospectiva na Fundação Calouste Gulbenkian, com o título This Must be the Place (ver a entrevista ao autor, por Sérgio B. Gomes, aqui).
Hugo, interpelado, já disse que não se importava de ter sido abusado à bruta no vídeo de Nick Cave, em que a sua série de fotografias Nollywood (2008-9) foi bastamente inspiradora daquela produção videográfica. No jornal Sol, na crítica que faz à exposição de Pieter Hugo na Gulbenkian, a Alexandra Ho diz que Nick Cave se baseou no trabalho de Hugo sobre as hienas. Custa-me muito apontar esta pequeníssima correcção, pois a Alexandra é pessoa amiga e por quem tenho grande afeição (já agora, um abraço ao Luís). Mas o facto é que Nick Cave não se baseou no trabalho de Pieter Hugo sobre as hienas. Quem se inspirou, e sem pudor nenhum, na série The Hyena & Other Men (2005-7) foi outra artista, Beyoncé de seu nome, como esta imagem, vestida de Givenchy e retirada do clip de Run the World (Girls), o documenta:
 

Run the World (Girls), de Beyoncé


 
Depois, até já houve quem tivesse feito uns desenhos esquálidos a partir das imagens do clip da Beyoncé, realizado por Francis Lawrence, sem citar, claro, a fonte original inspiradora, ou seja, a obra de Pieter Hugo.  

 
 
 
 
 
Pieter Hugo não apreciou muito que Beyoncé tivesse metido as moças girl power com as hienas lá no seu clip (coisa a que os povos antigos da chamavam «teledisco»). Quanto a Nick Cave, Hugo referiu que gostava da música dele e, portanto, nada de quezílias. Já no que toca a Beyoncé, largou a farpazita, dizendo que os «homens das hienas» da Nigéria ficariam certamente deliciados com se recebessem algum dinheiro por causa disto… Pois é: no fundo, no fundo, anda tudo ao mesmo –  o Cave e a Beyoncé, o Piet Hugo e os homens das hienas. Só estas, coitadas, é que não vêem nada, ficando apenas com a fama vil de serem hienas até ao fim dos seus dias, que está próximo. A questão começou num artigo na New Yorker e alastrou pelo mundo fora, metendo-se o Guardian ao barulho, páginas e páginas a discutir se era legítimo, ou não, a Beyoncé ter usufruído à borla das hienas do Pieter Hugo (aqui, por ex.). Razão suplementar para pensarmos: se anda tanta gente, incluindo eu, a perder tempo e a polemizar por coisas destas, é mais do que certo que a civilização prestes a desabar no abismo.
É curiosa a forma como Pieter Hugo travou conhecimento com os «homens das hienas», mais conhecidos por Gadawan Kura. Um dia, recebeu por e-mail uma fotografia, tirada por telemóvel, que dizia «As Ruas de Lagos». mostrava um domador de hienas a passear o bicho pelas ruas de Lagos (na Nigéria). Um jornal sul-africano publicou uma fotografia parecida, dizendo que se tratava de um gangue de cobradores de dívidas, ladrões e traficantes de droga que, à falta de roweilers, se socorriam de hienas para ajudar as suas actividades, todas muito maldosas. Com a ajuda de um amigo, o repórter nigeriano Adetokunbo Abiola, Pieter Hugo lá descobriu a trupe nuns arrabaldes infectos de Abuja, que, desde 1991, é a capital da Nigéria, tendo destronado Lagos nessa qualidade. Concluiu que não se tratava de um bando de malfeitores marginais mas antes de um grupo carnavalesco de menestréis que andavam de terra em terra: um punhado de homens, uma miudita, três hienas, quatro babuínos e duas cobras píton, por esta ordem de entrada. Faziam espectáculos de rua, praticavam umas curas de feitiçaria, ministravam umas mezinhas e nada mais. Hugo acompanhou-os algumas semanas e, não contente com isso, regressou dois anos depois, para com mais calma e detença os fotografar fazendo pose com os animais à sua guarda. Publicado em 2008, o livro de Pieter Hugo, The Hyena & Other Men, ainda está à venda, mas é caríssimo, objecto para uns 350 US dólares. Logo que foi publicado, escreveram-se no hemisfério Norte, e provavelmente ao teclado de um Mac faiscante, doutos ensaios falando de «pós-colonialismo» e das «periferias africanas», e até usando expressões como «trans-species relationship». É um facto que Hugo, nas legendas das fotos, coloca o nome de cada um dos Gadawan Kura e, ao lado, o nome da hiena respectiva, como se se tratasse de um duplo retrato, em que tanto vale a hiena como vale o homem (e, de facto, só falamos destes homens por causa das hienas que trazem à trela). O nome do projecto é, aliás, bastante elucidativo: The Hyena & Other Men. Para isto concorre uma razão, mais do foro da superstição: os Gadawan Kura crêem, ou fazem crer, que os seres humanos são capazes de se transformar em hienas, e vice-versa. Daí a necessidade das poções mágicas e dos encantamentos; caso contrário, os homens viram hienas – o que, pelo que tenho visto na vida, é fenómeno frequente. Uma das fotografias «Mallam Galadima Ahmadu com Jamis» foi galardoada em 2006 com o World Press Photo, na categoria de «Retrato», que o é. Está aqui na Christie's à venda pela bela maquia de 5,115 dólares.
Acabamos de ser informados que, ao contrário do que é corrente dizer-se, as hienas não são hermafroditas. As fêmeas são mais possantes e agressivas do que os machos, sendo muito difícil distinguir umas dos outros, o que constitui uma curiosa metáfora da nossa contemporaneidade e reforça a sabedoria implícita na aproximação que Hugo faz entre o mundo das hienas e o universo d@s human@s. Não sendo hermafroditas, as hienas-fêmeas, além de um belo útero, têm, isso sim, um clítoris desmesuradamente alongado, que se assemelha a um pénis no tamanho, na forma e na sua capacidade eréctil. Como não possuem uma vagina exterior, urinam, copulam e dão à luz através deste pseudo-pénis, uma bizarria anatómica que criou a lenda do seu hermafroditismo, em que até caiu gente experimentada nas verdes colinas de África, como Ernest Hemingway. Nos bestiários medievais, eram mostradas hienas a copular como forma de aviso contra a homossexualidade, justamente devido à ideia feita em torno da sua ambivalência sexual, motivada por aquela disfunção anatómica que as singulariza entre o reinado animal. Desenganem-se os que julgam que as hienas, ali onde as vemos, podem ser domesticadas. Quando menos se espera, atacam – e têm umas mandíbulas poderosíssimas, capazes de esmagar os ossos de animais duros de roer, a que se junta uma invulgar capacidade digestiva, resistente ao mais gordurento pitéu. São capazes de digerir qualquer parte de um animal e, não por acaso, as suas fezes têm uma cor esbranquiçada devido à quantidade inusitada de ossos que ingerem. Não estou a inventar nada, está tudo explicado aqui. Um dos objectivos que tinha colocado na vida, nesta passagem efémera pela terra bruta, era escrever um dia sobre a cor esbranquiçada das fezes das hienas – e, pronto, tendo-o feito já posso morrer em paz.   
 Diz-se, e com razão, que as hienas, nas imagens de Pieter Hugo, estão deslocadas do seu ambiente natural. Como os saltimbancos que as guardam, deambulam de cidade em cidade, numa existência miserável que lhes garante uns restos de comida. Fala-se num «spectacle of displacement», de homens e de hienas, que as imagens de Hugo mostram em toda a sua crueza (aqui).  A isto juntaria eu a aparência estranha dos bichos com os focinhos açaimados, o que lhes confere a imagem de animais pós-apocalípticos, feras danadas vindas de uma sequela de Mad Max. Além do mais, um açaime num bicho evoca sempre qualquer coisa de castração do instinto natural. Neste caso, há razões para isso: todos os membros dos Gwanda Kura apresentam feridas e escoriações nos seus corpos, o resultado de quem faz a vida na companha de animais que, de vez em quando, se viram contra o patronato explorador e nele ferram os seus dentes potentes.   
 
W. A. Trumper, Nigerian Strolling Players, c. 1914
 
 
         Quando foram publicadas as imagens de Pieter Hugo, logo se alevantaram activistas de defesa dos direitos dos animais. O rapaz defendeu-se, colocando-se ao lado dos homens, dizendo que os críticos se deveriam interrogar, isso sim, por que é que aquelas pessoas têm de fazer aquilo para sobreviver ou por que é que a Nigéria, sendo o sexto maior exportador de petróleo do mundo, sobrevive naquela indigência completa. Pode ver-se a entrevista de Pieter Hugo aqui.
         Sem querer entrar em apreciações de carácter, o facto é que Pieter Hugo e as suas hienas ganharam fama, são plagiados pela Beyoncé, arrecadam prémios e as imagens da miséria nigeriana são – pasme-se – objectos de decoração em casas fashion em NY e outros lugares decadentes. Num blogue brasileiro de decoração de interiores, uma tontita discorre sobre «Pieter Hugo e o Africanismo», numa charla arrivista e deslumbrada sobre quão bem fica, em qualquer parede de um apartamentão ou bar da moda, uma foto de Pieter Hugo mostrando a miséria nigeriana. Não arranjou melhor do que a mais cruel e desoladora série de Hugo, Permanent Error (2009-10), que mostra o quotidiano daqueles que têm de aspirar os venenosos fumos das queimadas de material informático, de onde extraem componentes e matérias-primas vendáveis na ocasião.
 

Uma fotografia de Pieter Hugo num belo interior déco
 
 
         Mas também é certo que o propósito de Hugo, não sendo de denúncia inflamada e militante, exibe e, explícita ou implicitamente, questiona o estado de coisas que viu na Nigéria, no Ruanda, no Gana. E é igualmente certo que, ao contrário do que as imagens dos Gadawan Kura podem sugerir, não se trata de um bando de indigentes, atendendo aos padrões africanos, pois claro. O negócio parece ter uma componente familiar. Assim, por exemplo, quando começou a trabalhar com o seu pai, aos quinze anos de idade, Abdullahi Ahmadu já sabia que tinha de arranjar a sua hiena e pô-la a render. Não é fácil, pois o bicho é arisco e, evidentemente, não gosta de ser açaimado. O avô, Nalado Ahmadu, ensinou-o a apanhar a sua hiena. Os Gadawan Kura fazem crer que têm um método infalível e muito mágico de capturar as hienas e que só os membros da família sabem capturá-las e lidar com elas (muita magia, muita magia, mas todos têm marcas de mordidelas no corpo e não dispensam uma vara ou um pau para dar no lombo das hienas quando estas se começam a eriçar todas de raiva atávica). Bem, prosseguindo: para capturar uma hiena ao natural, os Gadawan Kura tomam uma poção de ervas naturais, banham-se com ela (a poção), e viajam até às florestas do Norte da Nigéria. No caminho, usam lanternas potentes, acreditando que a magia da poção os tornou invisíveis para o animal acossado. Descoberta a toca, cantam encantamentos e sopram nuvens de pó branco, um tranquilizante natural africano: o animal fica atordoado e já está.
         A menina que os acompanha nestas andanças chama-se «Mummy», é filha de Abdullahi e, na altura das imagens, tinha seis anos de idade. Deitava-se sem medo algum em cima das imprevisíveis criaturas, pois, segundo o progenitor, tomara uma poção protectora, que a defendia das mordeduras  das hienas, dos babuínos e das cobras. O negócio corre bem. À conta deste lenocínio das hienas, Abdullahi Mohammed, outro membro do grupo, responsável por um dos babuínos, já comprou uma fazenda em Danja, no Estado de Katsina, e o grupo tem planos para comprar uma fazenda de mandioca em Ogene-Ofada, no Estado de Kogi. Trata-se de um caso bem-sucedido de empreendedorismo, na novilíngua do vazio. Quando chegam a uma localidade, fazem grande alarido com rufar de tambores tradicionais Hausa e vozearias (a trupe tem um trio de bateristas: Nura Garuba, Abdulkarim Lawal e Sanusi Ahmed). Depois, avançam os babuínos com cambalhotas e outras macacadas, a quem as pessoas dão algum dinheiro, que os símios entregam honestamente aos seus donos. A propósito da analogia entre homens e animais, atrás citada, note-se que os babuínos envergam camisolas humanas, o que adensa a sua comicidade e encanto. Só no final entram as hienas em cena, a peça de resistência do espectáculo. Há magia no ar, acreditam os Gadawan Kura e quem neles acredita, mas também música e dança: nos tornozelos, trazem akayau, anéis de metal que melhoram a performance bailarina. Os comerciantes locais, porque aquilo lhes traz gente e freguesia, dão a sua contribuição, em dinheiro ou em espécie. Biola Adekumi, dono de uma loja, diz, encantado: «quando eles estão cá, vendemos mais. Além disso, trazem-nos divertimento, especialmente os mais jovens. Os animais fazem-nos rir e sentimo-nos mais animados».
 
 
 
 
Ademais, o treino de uma hiena não é muito dispendioso: nos primeiros meses, comem carcaças de cabra, compradas nos matadouros nigerianos, que são um mimo de asseio e limpeza. Uma cabra dá para alimentar a hiena durante uns três dias ou mais. Os condutores de autocarros que transportam a trupe também saem a ganhar, pois cobram mais se levarem consigo hienas, babuínos e cobras picantes do que se carregarem os veículos com nigerianos racionais. Lekan Fabuyi, que faz a carreira Ogere-Remo-Lagos, aprecia muito os Gadawan Kura e até os defendeu quando a polícia e os jornais, as hienas dos nossos dias, os acusaram de terem usado uma hiena e um macaco para roubar uma pessoa. Segundo um jornal de Lagos, houve até tiroteio, com dois membros da trupe mortos e quatro feridos. A hiena e o macaco foram baleados e, à hora do fecho desta edição, devem provavelmente estar mortos, tanto mais que, como bons repórteres, estamos a copiar à farta de um blogue brasileiro uma notícia que tem quase um ano.
Pelo meio, os Gadawan Kura ainda vendem de vez em quando um ou outro animal aos comerciantes de bichos ou aos jardins zoológicos da Nigéria, dos Camarões, do Burkina Faso e do Benin. Existe um blogue inteiramente dedicado aos «Hyena Men», que alcançaram o estrelato quando foram imortalizados no YouTube, neste vídeo:
 
 
 
VVVVO blogue «Hyena Men», salvo o devido respeito, é um bocado apalermado. O seu autor, Blake Porter, descobriu que, além dos Gadawan Kura, existe um senhor na Etiópia, chamado Yusuf, que gosta de passar as noites com as hienas. Dão-se bem, como de resto a maioria dos etíopes. Os etíopes acreditam que as hienas têm o poder de libertar uma região da influência maligna dos espíritos demoníacos, os temidos djinn. Daí que na cidade de Harar as muralhas tenham umas fendas para deixar entrar as hienas de noite. Quando um habitante de Harar vê, por acaso, uma hiena na rua, cumprimenta-a e saúda-a dizendo «darmasheik», o que significa «jovem homem sábio». Yusuf é um caso à parte. São as hienas que vão ter com ele, dormindo juntos e o resto que por lá acontece pertence à intimidade dinâmica do casal. Espanta-se Blake Porter que Yusuf, ao contrário dos Gadawan Kura, não aproveite essa sua habilidade para fazer negócio. O pateta vai ao ponto de, no seu blogue, formular um conjunto de perguntas para, caso encontremos o Sr. Yusuf, lhe colocarmos. Por exemplo, como é a sua situação financeira e porque é que não tira partido das hienas.  Estou muito tentado a apanhar já um avião para a Etiópia, uns quinze ou vinte autocarros até Harar, perguntar por um senhor de nome Ysuuf e interrogá-lo: «desculpe lá, amigo, mas porque é que você não me põe estas hienas todas a render, como os seus colegas ali da Nigéria?».  Apetecia responder, baseado aqui, que, em Harar, há mais de 500 anos que as hienas são bem-vindas e vivem na companhia dos homens. Yusuf não é um caso especial. Sempre as quiseram na cidade como agentes sanitários, que comem o lixo e os detritos causadores de pestilências. É essa a razão pela qual as muralhas da velha urbe permitem a entrada das hienas, muito mais prosaica – mas real – do que as estórias dos djinn, os espíritos maléficos. Há várias lendas sobre os «homens das hienas» de Harar. O folclore local diz que, durante umas grandes fomes do século XIX, as hienas começaram a atacar os humanos e, para aplacar as feras, lhes deram uma papa salvífica. Outros atribuem a pacificação dos bichos à acção de uns muçulmanos santos. Em qualquer caso, no Dia de Ashura a tradição mantém-se: os habitantes de Harar dão papa às hienas; se estas comem, é um bom presságio e o ano terá boas colheitas; se recusam a oferta, o povo reúne-se em preces para afastar o mau-agouro. Hoje, poucos são já os «homens das hienas» de Harar. Fala-se em Yusuf, já referido, e num tal de Mulugeta Wolde Mariam, que só à sua conta alimentava uma matilha de uns 40 exemplares, todos mamíferos e carnívoros. Mas há outros artistas das hienas, mesmo em Harar.
Pieter Hugo conta aqui as suas peripécias com os Gadawan Kura. Particularmente saborosa é a reacção dos ocidentais, entre a reprovação moral pela exploração animal e a curiosidade fascinada por esta trupe tão estranha. Uma empresa de segurança norte-americana chegou a contactar o fotógrafo, pedindo que estabelecesse diálogo com os Gadawan Kura. Acreditavam os americanos que, se os Gadawan Kura eram capazes de lidar com animais tão ferozes, deveriam ter alguma protecção – um unguento mágico, uma poção misteriosa – que talvez interessasse comercializar em larga escala. Mais outros, enfim, a quererem ganhar à conta das hienas.   
No livro que acompanha a retrospectiva de Pieter Hugo, This Must Be the Place (ed. Prestel, 2012), um ensaio de TJ Demos refere a «iconografia carnavalesca» do seu projecto sobre as hienas, evocativa do pós-colonialismo (pág. 213). Noutro ensaio, Aaron Schuman assinala que, nas notas de trabalho que escreveu enquanto fazia The Hyena & Other Men, Hugo usou com frequência palavras como «dominação», «co-dependência», «submissão» (pág. 219). Palavras, palavras, palavras. Pouco interessam quando confrontados com a realidade nua e, já agora, crua: andam muitos a comer à custa das hienas. Até nós, e o nosso voyeurismo. Comprazemo-nos a olhar estas imagens porque elas suscitam um realidade estranha, que queremos distante, mas gostamos de saber que existe, lá longe. Porque ela confirma e reitera a bondade da opção que tomámos, ao criar uma «civilização» (a propósito, os ursos amestrados da Roménia, não se fala?). Criámos algo que nos afasta das hienas que viram homens e dos homens que se tornam hienas. Será mesmo assim? Será que os mercantis Gadawan Kura da Nigéria, em confronto com os seus colegas etíopes de Harar, não são um produto da nossa «civilização»? Questões que ficam no ar – e que jamais terão resposta até ao dia em que a civilização, tal como a conhecemos, entre em derrocada irreversível. Para quem duvide, veja o clip de Heathen Child, de Nick Cave. É o fim da picada. A mordedura letal.
 
 
António Araújo
 
 

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