quarta-feira, 2 de abril de 2014

Trifa em Portugal.





 

VALERIAN TRIFA,

UM GUARDA DE FERRO QUE VEIO MORRER EM PORTUGAL

 

 

“É aparência? é realidade?

Como o meu podengo cresce e engorda!

Ele levanta-se poderosamente

Já não tem o aspecto dum cão!

Que fantasma eu trouxe para casa!

Mais parece um hipopótamo

De olhos flamejantes e medonha dentadura!”

Goethe , Fausto

 

 



Valerian Trifa (1914-1987)

 

 

O arcebispo ortodoxo romeno Valerian Trifa (ou Viorel T., Campeni,Transilvânia,17-VII-1914 - Cascais, 27-I-1987) foi expulso dos Estados Unidos em 1984, fixando-se então em Portugal, no Estoril, onde acabaria por morrer, com 72 anos, em começos de 1987, no meio de indignados comentários da imprensa portuguesa[1] devido ao retumbante processo que o visara no seu país adoptivo após ter sido descoberto o seu passado de Guarda de Ferro implicado no pogrom de Bucareste de Janeiro de 1941. O artigo que lhe dedicou o New York Times de 29-I-1987, por ocasião do falecimento em Cascais do antigo legionário (“Valerian Trifa, an Archbishop with a Fascist Past dies at 72”, N.Y. Times) explica de modo claro o escândalo que envolvera a sua expulsão dos Estados Unidos em 1984 e o seu exílio luso.[2]

Valerian Trifa, como era conhecido este arcebispo na Igreja Oriental Ortodoxa nos Estados Unidos e Canadá, era filho dum professor primário e nasceu em 1914 numa aldeia da Transilvânia quando esta era ainda austro-húngara. Estudou no liceu de Sibiu, que terminou em 1931, cursando depois Teologia na universidade de Chisinau e, em seguida, Filosofia na Universidade de Bucareste e, por fim, em 1939, História e Jornalismo na Universidade de Berlim, trabalhando algum tempo numa editora que publicava as obras do seu tio, o sacerdote Iossif Trifa, tendo aderido desde os tempos de estudante ao sector da mocidade da Guarda de Ferro, colaborando mais tarde no jornal Libertatea, em 1940, durante o Estado Nacional Legionário de Antonescu, quando a Legião do Arcanjo São Miguel se integrou nesse regime pró-hitleriano que sucedeu à ditadura de Carol II. Em Janeiro de 1941 participou no golpe legionário contra o seu anterior aliado, Antonescu, tendo manifestado o seu virulento anti-semitismo em apelos e panfletos durante os actos sangrentos que assinalaram esse putsch contra o regime do conducatur Antonescu, insubordinação cujo fracasso o levaria a fugir em seguida para a Alemanha hitleriana, onde foi internado nos campos de concentração de Sachsenhausen, Buchenwald e Dachau, gozando do estatuto especial resultante do acordo estabelecido entre o ditador romeno e as autoridades alemãs.[3]

Mais tarde, tanto na América como em Portugal, no seu derradeiro exílio, Trifa não hesitaria em apresentar o facto de ter estado detido nesses campos para demonstrar até que ponto fora vítima de “perseguição nazi”. Entrevistado em Portugal pelo semanário luso Expresso, Trifa garantiria até que tinha um “passado limpo” e se “orgulhava” disso, já que entre 1930 e 1940 apoiara um tal “Movimento Nacionalista Romeno”, que definia como “um autêntico movimento romeno”, que o seu único erro fora o de apoiar a Alemanha durante a guerra feita contra a Rússia, que nunca dissera a alguém para matar, pois “nem um coelho matei na minha vida”.[4] A Capital, de 17-VIII-84, transcreve as suas declarações ao Diário de Notícias desmentindo ter participado nos crimes do nazismo, pois, pelo contrário, alegava o arcebispo, até estivera preso em Dachau e Buchenwald e que presidira a uma associação de estudantes universitários por oposição ao marechal Antonescu, “o dirigente pró-nazi da Roménia na época”.[5]

Trifa mentia sem pudor aos jornais portugueses ao negar as suas ligações conhecidas e provadas com a Guarda de Ferro e com o pogrom de Janeiro de 1941, além de que queria apresentar esse golpe anti-Antonescu como uma prova do seu anti-nazismo – quando fora, na verdade, um hóspede alemão protegido pelos nazis, enquanto na Roménia era julgado in absentia, assim como outros Guardas de Ferro implicados no golpe e nos massacre de judeus em Bucareste, sendo condenado a prisão vitalícia e trabalhos forçados –, escondendo ainda que, após esse episódio de horror e carnificina, viveria um cómodo exílio alemão, chegando a conspirar ali contra o chefe legionário também expatriado, Horia Sima, então em situação igualmente de detenção suave.
 
 
 
Ion Antonescu
 
 
 

Partindo, no final da guerra, da Alemanha para os Estados Unidos, onde chegou em 17-VII-1950, Trifa começaria uma nova vida como sacerdote, chegando a bispo da igreja ortodoxa americana romena em 1951, oposto a uma outra que mantivera relações com a instituição eclesial na Roménia, controlada esta pela ditadura comunista. Nesse mesmo ano era feito bispo, passando a viver na sede do episcopado ortodoxo em Grass Lake, no Michigan, numa confortável mansão de 25 quartos num domínio de 25 acres, local onde se instalara a sede da igreja ortodoxa, dela expulsando os membros da igreja dependente da Roménia. Coube-lhe, em 1955, fazer a oração inicial da abertura da sessão do Senado americano, ascendendo em 1970 à posição de arcebispo ortodoxo romeno na América e Canadá. Mas desde 1957 que um outro romeno expatriado, o Dr. Charles Kramer, judeu e “caçador de nazis”, iniciava a denúncia do passado como Guarda de Fero de Trifa, assim como, em 1962, o grande rabino da Roménia, Moses Rosen, em visita a Israel, acusava publicamente Trifa de ter sido um antigo Guarda de Ferro e derradeiro dirigente dos estudantes legionários – o que preocuparia Mircea Eliade.[6] Em 1975, os serviços de justiça e emigração dos EUA iniciariam um inquérito que culminaria, cinco anos volvidos, no processo da sua deportação da América do Norte, medida que Trifa tentou evitar renunciando em 1980 à cidadania americana que lhe fora dada e em cujo processo o antigo legionário mentira sob juramento, fornecendo dados falsos sobre o seu comportamento na Alemanha nazi e na Roménia.

Em Abril de 1983, Neal Sher, do Departamento de Justiça dos E.U.A. propusera a Israel uma oferta de extradição de Trifa, para ali ser julgado por crimes contra a humanidade, o que os israelitas não aceitaram, apesar da anterior tentativa nesse sentido feita pelo procurador Gideon Hausner. Por fim, em 1982, com o processo de extradição a correr no tribunal de Detroit, Trifa concordou voluntariamente com o seu abandono da América do Norte, ao mesmo tempo que, pouco antes da sua partida para Portugal, em 1984, dava uma entrevista aos media americanos na qual avisava que “a preocupação com o Holocausto judeu daria um resultado oposto ao esperado” (the preocupation about the Holocaust among Jews would “backfire”).[7] E a 15-VIII-1984 o arcebispo Valerian (ou Viorel) Trifa, depois de ter obtido, em 1983, da embaixada lusa em Washington a devida autorização, desembarcava de avião em Lisboa. Começava entre nós “O escândalo Viorel Terifa”, como rezava uma nota editorial na primeira página do Diário de Lisboa, que rematava: “Viorel Trifa era uma presença indesejável nos Estados Unidos. E em Portugal? O Governo tem de que intervir para corrigir um erro e impedir que vá mais longe o escândalo.”[8] O alarido de indignação da nossa imprensa e as declarações de Trifa em entrevistas a órgãos noticiosos lusos, despudoradamente falsas, agravariam o seu caso, levando o governo a recorrer aos foros judiciais necessários para corrigir uma autorização que, no mínimo, era absurda para quem a dera e humilhante para o nosso país, ao autorizar que um criminoso, como o arcebispo que fora Guarda de Ferro, pudesse gozar do exílio português. 




Trifa em Portugal, anos 1980
 
 
 

A 18-XII-84, o Diário de Notícias publicava uma notícia intitulada “Recusa de residência a Trifa confirmada pelo Ministério” (da Administração Interna), na qual se dava conta do processo que se arrastava entre nós quanto ao destino a dar ao antigo legionário romeno, noticiando que o Ministério da Administração Interna confirmara na totalidade, no dia anterior, o indeferimento do pedido de autorização de residência feito por Trifa, “apátrida de origem romena”.[9] E, a 28-I-1984, Trifa, então com 72 anos, vivendo no Estoril a  aguardar a decisão do Supremo Tribunal de Justiça acerca do seu caso, falecia no hospital de Cascais, ficando o seu corpo no cemitério da Guia. O mesmo jornal informava que uma agência funerária americana, solicitada pelos familiares de Trifa na América, contactara uma congénere lusa para negociar a trasladação do cadáver. E deste modo fúnebre se encerrava o caso dum antigo Guarda de Ferro cuja sinistra memória perdura associada ao pogrom de judeus em Bucareste, em Janeiro de 1941, e que escolhera, com a cumplicidade duma subserviente embaixada lusa no estrangeiro, expatriar-se num país que uma década antes recuperara a sua liberdade, já nada tendo a ver com o Portugal de Salazar que tanto se empenhara em acolher benevolamente chefes políticos e monarcas europeus associados a ditaduras que tinham vigorado nos mais sombrios anos europeus – por exemplo, o ditador húngaro Horthy, o rei da Itália, o rei Carol II da Roménia e outros tinham beneficiado da hospitalidade salazarista.

 

Bibliografia essencial:

- Gerald J. Bobango, Religion and Politics: Bishop Valerian Trifa and his Times, Boulder e N. Iorque, East European Monographs, 1981.

- Traian Lascu, Valerian, 1951-1984, Detroit, Knello, 1984.

- Radu Ioanid, The Holocaust in Romania: The Destruction of Jews and Gypsies under the Antonescu Regime, 1940-1944, pref. de Elie Wiesel, Chicago, Ivan R. Dee, 2000, ilustr. e mapas.

NB: O presente texto foi extraído do nosso estudo Mircea Eliade no purgatório português (1941-1945).

  

               Monte Estoril, Março-Abril de 2014

                                                                                                                 

 

João Medina

 

 






[1] Veja-se o seu caso, por exemplo, nos seguintes jornais portugueses da época, por nós consultados: Diário de Notícias, 16-VIII, p.3 (“Nazi em Lisboa com visto consular”), Capital, 17-VIII-84 (“Acusado quer ficar em Portugal. Autoridades rebuscam passado de Trifa”), O Jornal, semanário, 17-VIII-84, p. 48 (“Ninguém tem culpa…/Nazi T. saiu-nos na rifa”), Expresso , semanário), 20-VIII-84, p.5 (“Caçador de nazis suspeita de acordo entre EUA / Portugal para colocar Trifa em Lisboa”, Diário de Lisboa, 20-VIII-84, p.5 (“Viorel T. é um  mentiroso”), O Jornal, 24-VIII-84, p.1, com foto de Trifa vestido de Guarda de Ferro, ao lado de oficiais nazis (Ele mentiu aos portugueses /Trifa: com que então não era nazi!…”), Expresso, 25-VIII-84, p.1 (“Documentos provam passado criminoso / Viorel T. quer ir par a Grécia”, com uma foto do Dr. Charles H. Kremer, judeu romeno naturalizado americano, dentista no Michigan, “caçador de nazis”), Diário de Notícias, 30-I-1987, p.13 (“Acusado de crimes de guerra falecido em Cascais / Familiares de Trifa nos EUA querem trasladação do corpo”).


[2] Veja-se o artigo “Valerian Trifa, an Archbishop with a Fascist Past dies at 72”, New York Times, 29-I-1987, p. B6, a 3 colunas.


[3] Um dos episódio mais trágicos no período sombrio da história romena entre 1930 e 1945 foi o putsch de 21/23 de Janeiro de 1941, levado a cabo pela Guarda de Ferro contra o regime de Ion Antonescu (1882-1946), do qual essa organização fora íntima colaboradora no seio do chamado “Estado Nacional Legionário” resultante da deposição do rei Carol II (que em 1938 mandara assassinar o fundador da Guarda de Ferro, Codreanu, então detido numa prisão em Jilava) e a sua substituição pelo seu filho Miguel, em 1940, ou seja, a coligação nacionalista de extrema-direita formada entre um grupo militar chefiado pelo general Ion Antonescu (feito marechal em 22-VIII-1941, já com o exército romeno a combater na Rússia) e o movimento nazifascista e anti-semita dos legionários, que decidiram derrubar o conducator romeno em seguida ao assassinato em Bucareste do major alemão Döring. Tal incendiou os adeptos da Guarda de Ferro, decididos a tomarem o poder sob a chefia de Horia Sima, que invadiram a capital, atacaram o exército, os bairros judeus e outras instituições, incendiando as sinagogas aos gritos contra os Judeus e os Maçons, procedendo a massacres dos seus inimigos, com especial ímpeto contra a população judaica, sendo muitos destes torturados, mortos e pendurados, alguns deles ainda vivos, nos espigões de aço do matadouro de Bucareste – com letreiros “kosher” pregados aos seus corpos –, num total de 125 israelitas abatidos e outras 120 vítimas diversas sido contabilizadas nessas acções, além, de 30 soldados mortos, havendo entre os guardas de Ferro cerca de 200 vítimas. Horia Sima e muitos outros dirigentes legionários, entre os quais o futuro bispo Valerian Trifa, conseguiram fugir para a Alemanha, onde os hitlerianos os internaram em campos de concentração, mas sem lhes fazerem qualquer mal. Esmagada a revolta legionária, ante a neutralidade benevolente das tropas hitlerianas presentes na capital, Antonescu falou na rádio aos romenos, sem nunca mencionar os massacres antijudaicos, mandando julgar e condenar os responsáveis do putsch legionário de Janeiro de 1941, entre os quais se achava um dos seus mais activos patrocinadores, o referido Trifa. Antonescu seria directo responsável, mais tarde, de atrozes pogroms antijudaicos e contra os ciganos. Já depois da queda do regime comunista na Roménia, o governo de Ilion Iliescu criou em 2008 uma comissão, presidida por Elie Wiesel, para estudar a responsabilidade de Antonescu nos pogroms judeus desde 1940 a 1944, como os massacres em Jassy e Odessa. O relatório final desta comissão foi editado em 2006 e em 2008 o Supremo Tribunal de justiça romeno confirmava a responsabilidade do regime de Antonescu no Holocausto e em crimes  de guerra.


[4] Expresso, Lisboa, 18-VIII-1984, entrevista “Viorel Trifa ao EXPRESSO/«Nunca fui acusado no Tribunal»”, p. 3.


[5] A Capital, 17-VIII-84, artigo “Acusado quer ficar em Portugal/ Autoridades rebuscam passado de Trifa”, p. 40.


[6] Vide F. Turcanu, Mircea Eliade. Le prisionnier de l’Histoire, Paris, La Découverte, 2003, p. 478.


[7] N. Y. Times cit.


[8] Diário de Lisboa, 16-VIII-84, “O escândalo Viorel Trifa”, p.1, com foto de Viorel Trifa.


[9] Diário de Notícias, 18-XII-84, p.3.

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