Três dos quatro avós fugiram da Índia Britânica durante a convulsão de
fronteiras que originou o Paquistão e a República da Índia (1947). Como eram
muçulmanos, tiveram de sair da sua terra situada no norte já empoleirado nos
Himalaias. Ir para o Paquistão, porém, tornou-se perigoso e a solução
encontrada foi um barco para Moçambique. Sim, um barco para Lourenço Marques
foi o seu primeiro avião para Lisboa, e até foi o início de algo mais fundo do
que uma bela amizade: a avó paterna, Khatija, engravidou na viagem ao longo do
esverdeado Índico. Abdul Hamid Mohamed, filho de Khatija e Cassim, nasceu assim
em Moçambique, numa cidadela qualquer junto à curva do rio. Enquanto Naipaul
tomava notas, a família montou o seu negócio e educou Abdul nas artes do
comércio, na fé muçulmana e num imprevisto patriotismo português. Tinham a sua
comunidade religiosa, a sua loja de traquitanas e o hábito de falar português.
Entretanto, Abdul casou com Khajira Aboobaker Mohamed, filha do terceiro
embarcadiço desta história e de uma mulher que havia fugido do Yemen, Ayssa.
Seguindo a tradição, Abdul Hamid e Khajira Aboobaker constituíram família e
loja numa terra que já consideravam sua. Mas esta ligação ao Portugal africano
ainda estava à superfície, era um mero laço comercial. O laço só passou a
cordão umbilical a partir de 1961, cortesia da guerra colonial. Só a violência
pode fundir sangue e terra. Perante nova disputa de fronteiras e mapas, a
família Hamid Mohamed pegou em armas. Com as suas misérias e grandezas, aquele
Moçambique português já era a sua casa. Antes de entrar no exército português,
Abdul terá formado milícias com os seus amigos, fazendo uso de armas soviéticas
capturadas aos guerrilheiros. E, sim, depois entrou no exército regular e
envergou a farda da cavalaria portuguesa. Abdul Hamid Mohamed, herdeiro tardio
de Mouzinho da Silveira, estava a ganhar a guerra no terreno, mas alguém
assinou a rendição em Lisboa. No caos que se seguiu, Abdul e Khajira não
tiveram chance de fugir. Como tinham sido “senhores” e como tinham combatido ao
lado dos “brancos”, sofreram humilhações que não cabem num jornal. Foi durante
esse período negro que nasceu a personagem principal desta história, Imran
Hamid Mohamed, meu amigo há vinte e dois anos.
Em 1981, tendo Imran dois anos, Abdul voltou a mudar de fronteira: entrou
novamente num barco de condenados e viajou até Portugal numa espécie de vaga
tardia de retornados. Largou âncora na Póvoa de Santo Adrião, marquise de
Lisboa e terra de retornados brancos, negros e castanhos e de outro tipo de
migrantes desterrados (alentejanos e beirões). Abdul Hamid percebeu que a
tensão entre negros e indianos continuava activa, mas era mais latente do que
explosiva. Apesar de tudo, encontrar uma Ak-47 na Póvoa não era assim tão
fácil. Esperou um ano e mandou telegrama: “podem vir”. Dez anos depois, foi ali
que conheci o Imran. O cenário não foi a curva de um rio, foi mesmo a Ribeira
de Frielas, um casto afluente do Trancão. É o que se arranja, é a vidinha.
Infelizmente, o Portugal europeu não tem o encanto fílmico do Portugal
africano. Talvez seja por isso que o meu amigo Imran Hamid Mohamed continua a
ter passaporte moçambicano, apesar de ser tão português e benfiquista como eu. Sempre
na fronteira.
Henrique Raposo
Expresso, 5 de Abril
Expresso, 5 de Abril
O autor de História Politicamente Incorrecta de Portugal Contemporâneo continua a subir na tabela da asneira historiográfica gratuita. Agora a descolonização foi rendição, a guerra colonial uma disputa de fronteiras e mapas e o pobre Mouzinho da Silveira virou africanista e militar. Tudo isto para chegar a um Imran benfiquista e patriota. Quem nos salva desta demagogia inane?! Parece que a Maria Filomena Mónica encarnou em Raposo, vestiu uma camisola do Glorioso e foi beber umas jolas ali à Bobadela.
ResponderEliminarMouzinho da Silveira? Guerra em Moçambique em 1961?
ResponderEliminarNão batam no Raposo.
ResponderEliminarLembrem-se do Salgari, nunca saiu de Itália e escreveu maravilhosas histórias do Sandokan - O Tigre da Malásia.
O Raposo também nunca esteve no "Ultramar" e só o conhece das histórias que ouve contar e como é muito piedoso acredita em tudo.
Nem todos podem ser Salgari's.
De facto só por crença. Não quis comentar aquela de um grupo de amigos se formar em milícias roubando armas aos guerrilheiros, por imposição caritativa derivada à época religiosa que atravessamos.
ResponderEliminar