No
dia 10 de Março de 2014, decorreu na Colectividade Corações de Vale Figueira,
São João da Talha, uma sessão de esclarecimento cujo tema era a revisão do
Plano Director Municipal do concelho de Loures. O encontro não mereceria atenção
se não tivesse sido um confrangedor exemplo de desapego à realidade. Suspeito
que esse desprezo pelos dados empíricos não é exclusivo do poder local, mas a contínua
referência ao município lourense não é meramente ilustrativa, é o fundamento desta reflexão.
O
artigo 2.º do PDM (Objectivos e estratégia) declara que «o Plano Diretor
Municipal de Loures assenta numa
visão sistémica com o objetivo de contribuir para o desenvolvimento sustentável
do território municipal, assente em
três eixos estratégicos fundamentais». Deixemos a repetição verbal e atentemos
na alínea a) do terceiro eixo estratégico fundamental (qualificação
socio-económica), que consiste em «ajustar o quadro de desenvolvimento
urbanístico às iniciativas de criação de emprego qualificado, adequado às
necessidades de qualificação de recursos humanos, designadamente nas áreas da
indústria de conteúdos e do terciário avançado, em ligação aos meios académico
e de investigação e desenvolvimento». Descontada a eventual anexação do
concelho de Oeiras e do Taguspark, ou a hipotética criação da Universidade de
Loures, a ligação aos meios académicos far-se-á, talvez, através do Centro
de Ciências e Tecnologias Nucleares do Instituto Superior Técnico, antigo Instituto Tecnológico e Nuclear, o que dispensa o
discurso pretensioso.
A
alínea d) consiste em «estabelecer oportunidades de desenvolvimento do sector
turístico e das funções de recreio e lazer, ajustadas à diversidade territorial
concelhia, que se perspetivem como alavancas de reabilitação ou conservação dos
recursos territoriais, designadamente culturais e naturais». Boas intenções
que, infelizmente, contrastam com a realidade, pois enquanto espera apostar no
turismo, a Câmara Municipal de Loures deixou que a Quinta de Valflores
(localizada na freguesia de Santa Iria de Azóia), um precioso exemplo de arquitectura
civil do século XVI, classificada como imóvel de interesse público em 1982, e
adquirida pela CML em 2006, se tornasse uma ruína. Imagino as explicações para
o descaso: a propriedade privada, o regimento jurídico, o Governo… Mas a
verdade é que após a destruição da característica estrutura agrícola da quinta
(o pomar, o tanque e o sistema de rega), a loggia
ruiu e com ela um dos poucos edifícios, juntamente com o Palácio do Correio-Mor
(privado) e o Palácio dos Arcebispos (Casa do Gaiato), que poderiam levar uma
pessoa a ir propositadamente a Loures
em turismo.
O
artigo 172.º identifica (com volúpia) as UOPG e as SUOPG, pois «o território do
município de Loures é abrangido por 5 Unidades Operativas de Planeamento e
Gestão (UOPG) e 19 Subunidades Operativas de Planeamento e Gestão (SUOPG)». Um
dos objectivos da SUOPG 19 (Plataforma Ribeirinha) é a «promoção da ligação das
margens do Rio Trancão, devendo contribuir para a continuidade do espaço verde
de recreio e lazer do Parque das Nações». O problema é que apesar de agradável,
o despretensioso relvado que bordeja a margem sul da foz do Trancão dificilmente
se compara com os espaços verdes do Parque das Nações e a associação de ambos
só pode demonstrar uma excessiva liberalidade.
A
alínea f) do primeiro eixo estratégico fundamental (qualificação ambiental e
territorial) faz «assentar a qualificação e a expansão da rede urbana num
modelo de mobilidade baseado numa rede de transportes públicos estruturada que
responda às necessidades de deslocações inter e intra-concelhias». Ora a câmara
que pretende «ajustar o quadro de desenvolvimento urbanístico às iniciativas de
criação de emprego qualificado», mas que é naturalmente incapaz de impedir as
transformações do tecido produtivo, desperdiçou duas oportunidades de agir de
forma consequente e de acordo com os objectivos estratégicos que apregoa. Na Estrada
Nacional 10, as fábricas construídas junto ao apeadeiro da Bobadela foram
substituídas por dois supermercados sem que se tivesse aproveitado a
oportunidade para construir parques de estacionamento (tal como junto a algumas
estações da Fertagus) que convidassem os habitantes da freguesia a deixarem os
automóveis e a seguirem para Lisboa de comboio.
Suspeito
que o mundo do PowerPoint e da
planificação cria e alimenta um discurso convencional feito de boas intenções e
destinado, em grande medida, ao consumo interno. Talvez para justificarem a sua
própria actividade, agentes políticos e funcionários dedicam-se a platitudes
frustres sobre a economia do conhecimento
e novas centralidades, quando a
maioria dos munícipes deseja prosaicamente um abastecimento de água a preços razoáveis,
limpeza urbana regular e adequada iluminação pública.
António J. Ramalho
Se a Quinta de Valflores ficasse no lado certo da área metropolitana de Lisboa já estaria recuperada. Infelizmente, não está nem em Oeiras nem em Cascais. A direita intelectual só se distingue por um anti-intelectualismo perene. Tudo o resto são tretas: preocupação com o património, com a memória e com a identidade nacional. Tudo coisas que ou o mercado, ou a prosápia, ou o Miguel Esteves Cardoso resolvem falando dos pêssegos de Colares e das passarinhas do Estoril.
ResponderEliminarParabéns pela denúncia tão certeira. E tão necessária, em tempos de discursos balofos e empolados. Causa dó o estado a que se deixou chegar um monumento como a quinta de Valfores. Por outro lado, achei curioso o comentário anterior, que parece deitar as culpas para a "direita intelectual", quando, como é inegável, a referida quinta fica no concelho de Loures e, portanto, sob a responsabilidade de um município há muito dominado pela esquerda.Talvez o facto de se tratar de uma casa senhorial explique o descaso criminoso a que tal edifício tem sido votado...
ResponderEliminarConcordo inteiramente com o que diz o nosso leitor e estimado amigo Miguel Metelo de Seixas.
EliminarUm abraço a ambos,
António.