Na
história dos comics em Portugal cabe
à revista O Gafanhoto (1948-1949) algum
protagonismo: ter sido a única publicação integralmente apreendida (ou quase) e, por isso mesmo, alguns dos seus números transformaram-se em raridades para os coleccionadores .
Vamos
por partes. António Cardoso Lopes, mais conhecido pelos leitores de O Mosquito e mesmo entre os amigos por
Tiotónio ( nome com que assinava as suas
criações) foi uma figura única na Banda
Desenhada portuguesa. Estreou-se no ABCzinho
nos anos 20[1]
mas foi em O Mosquito que com Raul
Correia, a partir de 1936 , formou uma
dupla de sucesso. "Homem de grande engenho e iniciativa, bom desenhador
humorístico e bom técnico de impressão em litografia e offset"[2]
a ele se deve grande parte do êxito comercial
e de conteúdo dessa publicação
que ainda hoje é sinónimo de Banda Desenhada (ou histórias em
quadradinhos) em Portugal. A restante parte do sucesso é devida a Raul
Correia " um poeta extraordinário (...) homem fino, culto e que sabia
escrever bem em português"[3] que não terá sido menos importante em todos os 17 anos de
vida da revista.
Mas
talvez quem melhor nos possa dar o retrato de Cardoso Lopes seja o desenhador e
argumentista José Ruy que começou a trabalhar em O Mosquito com 17 anos, em 1947: "o Tiotónio transmitia um
fluído que nos fazia sentir bem, termos confiança, eram os seus modos delicados
e a determinação do seu olhar inteligente"[4].
Confiança
foi certamente o que começou a escassear quer em Cardoso Lopes quer em Raul Correia quando,
após atingir 60.000 exemplares no
somatório das suas duas edições semanais, O
Mosquito começou a perder leitores
no fim dos anos 40, a que não
terá sido alheia a emergência dos comics
norte-americanos nas publicações concorrentes, algumas delas de importação
brasileira. Fosse por essa razão, fosse por outras de natureza económico-financeira
que não resultavam directamente da quebra das vendas, o certo é que a situação
de O Mosquito tornou-se
financeiramente insustentável. A tal ponto que a solução encontrada pelos dois
"sócios" para sair do impasse financeiro em que na altura se
encontravam foi a separação da sociedade, ficando Raul Correia com O Mosquito e Cardoso Lopes com a oficina
e respectivas máquinas tipográficas, que se localizavam aliás num imóvel que era sua propriedade. Se
o futuro de O Mosquito não foi
auspicioso, já que acabaria os seus dias alguns anos depois, em 1953 , já o destino dos projectos de Cardoso Lopes e do seu "parque
gráfico", do mais avançado que à época existia, foi ainda mais penoso. E, contudo, da mente
imaginativa e empreendedora de Cardoso Lopes soluções não faltaram: fechou um
acordo com a Mocidade Portuguesa por forma a que as suas edições e
designadamente a revista Camarada
passassem a ser impressas nas agora "Edições O Mosquito" e avançou
para O Gafanhoto. Anunciava ser
" o jornal mais pequeno do mundo", com o formato de "O Mosquito dobrado ao meio, oito
páginas a três cores e custava 50 centavos. Publicou "boas histórias de Cuto e algumas
pranchas de Anita Pequenita (ambas de Jesus Blasco) uma história de Afonsky,
algumas historietas inglesas e francesas e a excelente Cora (Connie) de Frank
Godwin" [5].
Durante mais de nove meses a revistinha circulou pelo país imprimindo 10.000
exemplares por cada número. O nº 1 tem a data de 11 de Dezembro de 1948 .
O Gafanhoto, nº 73, pp. 6-7
|
Mas
a dada altura tudo mudou.
E
ainda que os fautores desta mudança tenham sido a Direcção dos Serviços de
Censura e a PIDE, a verdade é que não há a menor coloração política nos
episódios que se sucederam e que passamos a relatar.
Para
que se perceba o contexto em que tudo ocorreu importa dizer que boa parte do
regime jurídico da imprensa, à época, designadamente o que tinha que ver com os
requisitos para o lançamento de novas publicações era essencialmente regulado
pelo Decreto Lei nº 26 589 de 14 de Maio de 1936. O referido diploma assentava na ideia do controlo preventivo
quanto à " fundação de jornais" através de uma autorização político-administrativa para as
novas iniciativas editoriais. O regime aplicava-se a todo o tipo de publicações
periódicas, independentemente da natureza e da periodicidade concreta. Ou seja,
quer os jornais diários de informação geral quer os
semanários ilustrados para crianças
e jovens, estavam sujeitos às mesmas regras. A primeira das orientações legais era avaliar da "idoneidade intelectual e
moral dos responsáveis das publicações". Todo o processo decorria junto da
Direcção dos Serviços de Censura. A tramitação obrigava à junção por parte dos candidatos
a directores e editores de vária
documentação: certidão nascimento, certidão de registo criminal, atestado de
residência, habilitações académicas, etc.
Mas
a segunda exigência tinha que ver com a "prova suficiente dos meios financeiros
da respectiva empresa" (art. 2º). Ou seja, entendia-se na letra da lei,
que tal prova não estaria feita se a "empresa por meio de depósito, fiança
ou aval bancário não preste a garantia suficiente dos salários e ordenados ou correspondentes despesas de colaboração, composição, revisão e impressão
durante o prazo de seis meses" .
A
natureza da norma era clara e cumpria um
propósito de regulação do mercado das empresas
gráficas e jornalísticas, acautelando ao mesmo tempo um mínimo de confiança nas relações laborais dessas mesmas empresas. No preâmbulo
do diploma dizia-se: "a defesa dos interesses dos trabalhadores ocupados
em determinadas publicações leva a exigir garantias suficientes da estabilidade da respectiva empresa" . A
isso não era alheia a filosofia económica e política corporativista, de forte
pendor estatal, que presidia à realidade salazarista dos anos 40. Ou seja, se
alguém tomasse a iniciativa de publicar um jornal, contratando jornalistas e
colaboradores e ajustando, em primeiro lugar com uma gráfica a impressão e depois
com um distribuidor a venda, garantindo
antes um bom contrato de publicidade e, mal recebidos os primeiros resultados das
vendas, desaparecesse sem pagar nada a ninguém – e essa era a concreta realidade que deu origem à norma em causa – a caução sempre atenuaria o prejuízo dos que
contratassem ou colaborassem de boa fé com o jornal. Talvez por essa razão se
não escutassem vozes críticas entre os profissionais e empresários do
jornalismo da época à solução legal. Já o mesmo não se pode dizer da utilização
da aludida "caução" para fins diferentes dos previstos na lei...
É
claro que neste processo de autorização prévia, o Estado Novo verificava ainda da idoneidade política – interpretando de forma
lata a expressão "idoneidade moral"
− dos propulsores do projecto, designadamente
do Director indicado, tomando a Direcção Geral dos Serviços de Censura a
iniciativa de requerer informações junto da PIDE e da União Nacional (em regra,
junto das suas delegações concelhias). E consoante essa informação, que tanto
podia concluir que "nada consta em desabono" como "não
oferece garantias de cooperar nos superiores fins do Estado " , assim a
decisão final oscilava ...
Ora,
Cardoso Lopes, após 20 anos de experiências de jornais e revistas e de
relacionamento com a Censura, não encontrou a menor dificuldade em ver o seu
projecto aprovado. Mais mesmo, recebeu a permissão para publicar O Gafanhoto em tempo recorde: pouco mais
de 48 horas ! Requereu a publicação a 6
de Dezembro de 1948 e a 9 de Dezembro o Sub-Director da Censura Capitão José da
Silva Dias deferiu a solicitação "
desejando-lhe as maiores prosperidades". E dois dias depois O Gafanhoto estava nas bancas... Contudo,
cerca de 9 meses depois, no fim de Setembro de 1949, caminhava o jornalinho em
velocidade de cruzeiro, e o Director da
Censura solicita à PIDE "se digne proceder à apreensão do semanário
infantil O Gafanhoto" "por se estar publicando à margem da
Censura".
José
Ruy, que trabalhava na altura nas oficinas de O Mosquito, como se disse,
não esquece o que então se passou :
" A PIDE mandou
apreender o Gafanhoto em todos os pontos de venda. Essas apreensões eram
normalmente feitas em livros considerados de carácter subversivo ou de ofensas à moral e as carrinhas negras
eram conhecidas pois também faziam por vezes a recolha de pessoas da oposição política
ao regime . Chamavam-lhe a " ramona". E foi mesmo a "ramona" que de quiosque em quiosque de livraria a banca
de jornais andou a recolher tudo o que
fosse Gafanhoto de Tiotónio. Na redacção
e nas oficinas das Edições de O Mosquito
tivemos dias um polícia à porta a
revistar-nos quando saíamos para ver se
levávamos algum exemplar escondido. Nas livrarias e quiosques o espanto era
enorme interrogando-se os vendedores
onde estava o tal o assunto do "contra" naquela revistinha de
aspecto tão inocente que motivara a
apreensão"[6].
O Gafanhoto, nº 74
|
O
que se terá passado para tão extraordinário desenlace? O que levou a que uma revista
autorizada pela Censura, com inédita celeridade, passasse a estar sob a sua
mira persecutória?
Tudo
girou em torno da famigerada caução. A verdade é que a mesma não foi exigida
pela Direcção dos Serviços de Censura aquando da solicitação inicial de Cardoso
Lopes. Este, no seu requerimento inicial
datado de 6 de Dezembro de 1948, solicita que se substitua o depósito de
garantia ou o aval bancário por um termo de responsabilidade da firma "cujo
passado de catorze anos de constante actividade, responde por qualquer prejuízos ou reclamações que possam vir a ser apresentadas". E
acrescenta que O Gafanhoto se trata
de uma publicação que "será composta e impressa em oficinas próprias
utilizando material e gravuras de "O Mosquito" já pago e não tendo
esta organização editorial em catorze anos de existência dado origem a qualquer
reclamação junto de V. Exa pelo que pode ser avaliada a sua idoneidade moral e
financeira"[7].
Em anexo Cardoso Lopes junta a citada "declaração de responsabilidade"
na qual se lê que as "Edições O Mosquito Lda " vêm tomar perante V. Exa.
inteira responsabilidade por qualquer reclamação ou encargo resultante da
edição do jornal infantil "O Gafanhoto" de que são proprietários e
cuja periodicidade é semanal". A declaração tem as assinaturas de Cardoso
Lopes e Raul Correia reconhecidas na qualidade de gerentes das "Edições O
Mosquito"[8].
A
Censura não teria razões para pôr em causa as justificações de Cardoso Lopes. Na verdade é que durante
quase década e meia O Mosquito não
deu trabalho aos censores e os seus responsáveis eram tidos na conta de empresários
cumpridores. A rapidez da decisão favorável à saída de O Gafanhoto permite esta ilação. E se bem que a lei não admitisse a
solução adoptada – substituição do depósito, fiança ou aval por uma simples
declaração – a verdade é que a Censura não terá pretendido inviabilizar o novo
jornal de Cardoso Lopes. É mesmo legítimo supor que não viu com desagrado,
nesta fase, a nova aposta editorial, fosse por consideração para com Cardoso
Lopes fosse porque não questionou a sua
"idoneidade financeira".
Um
aspecto porém revelou-se decisivo para o volte face: o negócio com a Mocidade
Portuguesa. Ao contrário do que Cardoso Lopes havia escrito no seu requerimento,
O
Gafanhoto não era composto e impresso em
oficina própria. Como vimos antes, a solução que Cardoso Lopes encontrou
para resolver algumas das suas dificuldades económicas foi alugar as oficinas
gráficas das "Edições O Mosquito" à Mocidade Portuguesa. E mais:
nesse contrato de arrendamento a Mocidade Portuguesa comprometeu-se a compor e
imprimir O Gafanhoto pelo custo de
800$00 por 10.000 exemplares de cada número. Em rigor pois O Gafanhoto era composto e
impresso em oficinas arrendadas à Mocidade Portuguesa .
Mas,
independentemente do contrato com a Mocidade Portuguesa, Cardoso Lopes estava com evidentes problemas
económico-financeiros. E a Censura não podia deixar de o saber. Cardoso Lopes
era também dono da revista de espectáculos Olá.
E em princípios de Agosto de 1949 o
Banco Espírito Santo solicitou o cancelamento do aval bancário de 16.000$00 a
favor das Edições O Mosquito para garantia de despesas com o jornal Olá. A Censura terá tentado junto de
Cardoso Lopes resolver esta situação. E
na ausência de uma solução o jornal
acabou por ser "abatido por falta de garantia financeira" .
Quando
o Director dos Serviços de Censura, através da carta datada de 24 de Agosto de
1949, comunica a Cardoso Lopes que tem de fazer prova da idoneidade financeira
, já que a famigerada declaração "de responsabilidade" dos dois
gerentes é ilegal e que para isso deverá "apresentar previamente o
contrato com a tipografia onde o jornal se imprime e a relação do pessoal
remunerado por serviços prestados a esse jornal, para efeitos de se fixar a
importância da caução a prestar"[9]
é de admitir que sabia já da existência
do contrato com a Mocidade Portuguesa .
Aliás,
a Mocidade Portuguesa encarrega-se algum tempo depois de juntar ao processo uma
declaração a confirmar isso mesmo[10].
E acrescia ainda outro pormenor a que a Censura se agarrou: se Raul Correia
estava afastado da sociedade como poderia aparecer ele como comproprietário do
jornalinho e para mais assinar na qualidade de sócio gerente das "Edições
de O Mosquito"? Um mistério.
É
provável que Cardoso Lopes, nas várias visitas que fez aos serviços centrais da
Censura, tentasse encontrar uma solução para obviar ao desenlace que veio efectivamente
a ocorrer. E isso explicará a demora em
cerca de um mês entre o convite à apresentação de caução e a ordem concreta de
apreensão dos jornais[11].
Por
essa altura uma outra irregularidade havia já sido detectada pela Censura.
Cardoso Lopes havia pedido autorização
para publicar O Gafanhoto semanalmente. Mas a realidade é que o jornalinho, com
excepção dos primeiras 10 edições em que foi semanário, passou a vender-se todas as quartas e sábados. A 7 de Outubro de
1949 ainda Cardoso Lopes tenta corrigir o lapso requerendo que a publicação
"passe a bi-semanário". Mas já era tarde.
Entre
4 de Outubro de 1949 e 4 de Novembro do mesmo ano, os agentes da PIDE e os agentes da Polícia de Segurança Pública, a
quem aquela delegava a tarefa sobretudo nas capitais de província, varreram livrarias, quiosques e bancas dos
jornais do país numa metódica tarefa de apreensão de "Gafanhotos".
Eram tantos que não sabiam onde os arrumar. Às tantas, a PIDE pergunta à
Direcção dos Serviços de Censura onde deve depositar os 1028 exemplares apreendidos
na cidade do Porto, por exemplo[12].
Na
verdade as apreensões nas cidades de província não foram muito expressivas. No
total uns poucos milhares de exemplares
foram apreendidos entre a Havaneza de
Aveiro e a Livraria Central de Viseu, a
título de exemplo, e que corresponderiam às sobras de cada uma das edições.[13]
Em certo sentido, esses números permitem validar a ideia de que O Gafanhoto se vendia bem. A parte
significativa da apreensão, levada a cabo directamente pela PIDE, foi na sede das "Edições de O
Mosquito" na Travessa de São Pedro em Lisboa : dois mil exemplares de cada
um dos números 1 a 72 no total de 144.000 exemplares[14].
O Gafanhoto, nº 74, pp. 6-7
|
E
é aqui que surge uma outra originalidade associada a O Gafanhoto e que faz as
delícias de alguns coleccionadores de BD.
A
palavra mais uma vez a José Ruy :
"O
Gafanhoto era impresso em folha inteira
da máquina que incluía dois números e quando da apreensão estavam já impresso os
números 73 e 74. Como os assinantes
recebiam pelo correio e com antecedência,
um privilégio que o Tiotónio gostava de oferecer aos seus leitores, estes receberam em casa exemplares que
entretanto estavam a ser recolhidos pela censura. Eu ainda consegui passar com
esses dois números escondidos não me
arriscando a trazer mais não fosse ficar a pão e água por tal crime".
São
pois os famosos nºs 73 e 74 de O
Gafanhoto que hoje constituem uma verdadeira relíquia bibliófila !
António
Cardoso Lopes não desistiu do seu Gafanhoto.
A 20 de Dezembro de 1949 vem amarguradamente queixar-se do aparato da apreensão:
"(...) atitude que eu supunha apenas ser tomada para publicações de
carácter clandestino ou aquelas cujo conteúdo merecesse a reprovação por parte
desses serviços o que não é absolutamente o caso" .
E
justifica-se: " Seria muito difícil que qualquer indústria montada pudesse
de um momento para o outro e para provar a sua idoneidade financeira distrair do seu capital de "roulement" o correspondente a
seis meses de laboração". E constatando que necessita de O Gafanhoto para manter a oficina sob pena de "
despedir grande parte do pessoal"
propõe: "suponho que sem prejuízo do cumprimento da lei V. Exa
poderá consentir na prestação da garantia que nos é exigida em pagamentos
mensais durante o ano e a partir de 31 de Janeiro próximo "[15].
Contudo
parece que Cardoso Lopes havia caído definitivamente em desgraça junto dos
Serviços de Censura. Desta feita a proposta é lhe indeferida com base num
argumento que não tem que ver com a questão da "idoneidade financeira"
mas com algo inteiramente novo. Diz o despacho: "indeferido tanto mais que
não é de interesse publicações infantis com a orientação que de um modo geral
lhes têm sido dada"[16].
Imaginar-se-á
o espanto de Cardoso Lopes ao ler este despacho. Ele que durante 20 anos de
publicações infantis jamais ouvira um reparo da Censura ou de qualquer adepto do regime sobre os conteúdos das suas publicações ...
Eis
porque numa última tentativa para ressuscitar O Gafanhoto vem juntar a 27 de Fevereiro de 1950, um termo de fiança prestado por ele próprio
no valor de 29.000$00 "cobrindo
eventuais reclamações ou encargos a que possa dar origem o bi-semanário O
Gafanhoto". Essa fiança faz-se acompanhar de uma extensa carta onde vem
defender-se da insinuação, ainda que indirecta, de que as suas orientações em sede de
literatura infantil não seriam, aos olhos do regime, adequadas. Reflecte ainda sobre o panorama da
imprensa infantil em Portugal e no mundo introduzindo o tema dos comics norte-americanos . E conclui solicitando
o fim da suspensão do jornal e a venda dos números apreendidos.
Por
essa razão e porque é um dos raros textos que se lhe conhece onde essa temática
é aflorada, vale a pena reproduzir alguns extractos:
"Há mais de 20
anos que o signatário tem dedicado especial cuidado aos assuntos que se relacionam
com a literatura infantil (jornais e livros). A criação das Edições O Mosquito
e o jornal infantil que lhe deu nome são
obra sua. Embora sem directrizes
definidas superiormente, sempre encarou esse género de actividade como extremamente
delicado, sobretudo pelos inconvenientes
que uma má orientação podem trazer ao público a que se destina. Também
não lhe passou despercebida como não podia deixar de ser a evolução constante das preferências desse público. Não se pode
sob pena de fracasso cotejar a
mentalidade das crianças de hoje até mesmo com as da geração passada. A
dificuldade da selecção de assuntos – para o caso dos jornais – reside sobretudo na publicação entre nós sem mais análise de material condenável feito para um púbico cuja mentalidade é
absolutamente diferente da nossa ou onde os editores sem escrúpulos em plena liberdade procuram apenas um êxito
fácil com a publicação de histórias onde
se busca por todos os meios prender o público, sem curar da forma como esse
objectivo é conseguido. Onde este caso se verifica é com o material de origem
norte-americana que os brasileiros copiam servilmente. E são às centenas os jornais
brasileiros que invadem o nosso mercado escritos num português absurdo
inteiramente constituídos por esse material. Melhor do que nós poderão
V.Exas a perniciosa influencia desse
género de literatura que de infantil apenas tem o título. De uma maneira geral
tem o signatário dado preferência nas suas edições aos assuntos de origem
latina (espanhóis, italianos e franceses)
por serem os que melhor correspondem á índole do nosso público . Já em
vários países tem sido levantada uma intensa campanha contra determinados géneros
de histórias. Recentemente em França foi proibida a publicação de certos
jornais de características vincadamente políticas. Por outro lado também se
procurou evitar a invasão de material
americano original ou traduzido. Para
contrapor a essa influência são dadas todas as facilidades oficiais ás
publicações nacionais criando por concorrência um autentico dique a essa
influência. Isto se verifica não só no
campo jornalístico como no cinematográfico e em todos aqueles que têm contacto
com o público"[17]
.
Este
texto não deixa de ser surpreendente. Revela uma particular sensibilidade de
Cardoso Lopes para as mudanças que no mundo estavam a ocorrer quer quanto à
literatura infanto-juvenil quer quanto à mentalidade dos jovens.
E
a verdade é que por esta ocasião o panorama da literatura infanto-juvenil em
Portugal estava a mudar de forma acelerada e nele, de forma ainda mais impressiva, a atitude do Estado Novo perante
essa realidade. Alguns meses depois destes eventos, em fins de 1950, haveriam de ser publicadas as "Instruções
sobre Literatura Infantil" e criada
a primeira Comissão que verdadeiramente introduziu no regime salazarista uma censura especializada: a Comissão Especial
para a Literatura Infantil e Juvenil.
Não admira pois o despacho de Armando Larcher
sobre esta última tentativa de Tiotónio: " Deverá aguardar a publicação do
diploma relativo aos jornais infantis e deve esclarecer-se os motivos
determinantes da apreensão do Gafanhoto".
Ponto
final na aventura de Cardoso Lopes com o seu Gafanhoto? Ainda não. A 8 de Julho de 1950 no Cartório Notarial da
Rua do Crucifixo nº 50 em Lisboa o Notário Manuel Facco Viana lavra uma
escritura celebrada entre António Cardoso Lopes Filho, como sócio gerente e
representante da Sociedade Edições O Mosquito Lda, e João Mendes, nos termos da qual, pelo valor de 100$00 ,aquela cede ao segundo a
propriedade do título do jornal infantil O
Gafanhoto.[18]
O
novo proprietário do jornalinho tentou obter autorização para a sua publicação.
Mas não teve melhor sorte. Se antes se deveria aguardar pela publicação do
diploma sobre literatura infantil agora haveria que esperar pela nomeação da
Comissão a que esse diploma aludia ...[19]
No
início de 1951 a recém formada Comissão Especial para Literatura Infantil e Juvenil , presidida por
João Serras e Silva, é chamada a
pronunciar -se a convite do Director dos
Serviços de Censura sobre o destino de " O Gafanhoto". Encarregar-se-á de responder o Vice-Presidente
da Comissão, Edmundo Curvelo, já então assistente da Faculdade de Letras,
doutorado em Filosofia e um académico muito conceituado entre os seus pares (e hoje considerado um dos
maiores filósofos portugueses de sempre): "em face da documentação junto a
Comissão nada tem a opor à autorização pedida para o prosseguimento da
publicação do jornal O Gafanhoto desde que se submeta às disposições em vigor
sobre publicações do género, o que não se verifica de modo algum com o exemplar
junto"[20]
E
assim terminava a história de O Gafanhoto.
Pouco
depois, ou porque tentou procurar um futuro profissional e económico mais
desafogado ou porque se desiludiu com o seu País (e em particular com os
constrangimentos à sua actividade por parte do regime político salazarista) António Cardoso
Lopes partiu para o Brasil para
não mais regressar[21]
.
Ricardo Leite Pinto
[1] Vide Leonardo de Sá " Presença Portuguesa n´O
Mosquito" O Mosquito uma máquina de
fazer histórias, Catálogo da Exposição, Centro Nacional de Banda Desenhada
e de Imagem, Amadora, 2006, p. 21 e Leonardo de Sá e António Dias de Deus
" Cardoso Lopes, António" Dicionário
dos Autores de Banda Desenhada e Cartoon Em Portugal. Edições Época de
Ouro, Amadora , 1999, p. 33
[2] Vide Raul Correia, " Sobem do fundo da memória,
lentos...de como nasceu e viveu " O Mosquito", Manuel Caldas Apresenta O Mosquito de como nasceu e viveu, Porto
Edições Emecê, 1993. p. 31
[3] Vide José Ruy " Tiotónio, Meu Amigo" . História da BD publicada em Portugal (
Sousa Santos, org. ), 1ª parte, ,
Lisboa, Época de Oiro, 1995, p. 47
[5] Vide António Dias de Deus " A roda da fortuna
Tiotónio" . História da Bd publicada
em Portugal, 2ª parte, ( Sousa Santos, consultor editorial) , Edições Época
de Oiro, Costa da Caparica, 1996, p. 5
[7] Vide Requerimento dirigido ao Director dos Serviços de
Censura , 6/12/1948 ANTT. Arquivo do
Secretariado de Informação/ Censura. Cx. 700 . Proc. nº 665
[8] Vide Declaração, 9/12/1948. ANTT. Arquivo do Secretariado de Informação/ Censura. Cx. 700 .
Proc. nº 665
[9] Vide Ofício da Direcção dos Serviços de Censura a
Edições de " O Mosquito Lda" , Proprietário do Jornal " O
Gafanhoto" de 24/ 8/1949 . ANTT. Arquivo do Secretariado de Informação/
Censura. Cx. 700 . Proc. nº 665
[10] Vide Declaração da Organização Nacional da Mocidade
Portuguesa, assinada pelo Secretário Inspector Mário Brancamp Sobral datada de
7/19/1949
[11] Vide carta do Director dos Serviços de Censura ao
Director da Polícia Internacional de Defesa do Estado ( PIDE) , 27/9/1949. ANTT. Arquivo do Secretariado de Informação/
Censura. Cx. 700 . Proc. nº 665
[12] Vide Ofício da PIDE ao Director dos Serviços de
Censura de 26/10/1949 ANTT. Arquivo do
Secretariado de Informação/ Censura. Cx. 700 . Proc. nº 665
[13] Vide a troca de correspondência entre a Direcção dos
Serviços de Censura e a PIDE reportando os exemplares apreendidos em todo o
país . ANTT. Arquivo do Secretariado de
Informação/ Censura. Cx. 700 . Proc. nº 665.
[14]Vide ofício da
PIDE ao Director dos Serviços de Censura de 8/19/1949 ANTT. Arquivo do Secretariado de Informação/ Censura. Cx. 700 . Proc. nº 665
[15] Vide Carta de Cardoso Lopes ao Director dos Serviços
da Censura de 20/12/1949 . ANTT. Arquivo do
Secretariado de Informação/ Censura. Cx. 700 . Proc. nº 665
[16] Vide despacho manuscrito do Director dos Serviços de
Censura , sem data, aposto na carta de
António Cardoso Lopes referida na nota anterior. ANTT.
Arquivo do Secretariado de Informação/ Censura. Cx. 700 . Proc. nº 665
[17] Vide carta de António Cardoso Lopes ao Director dos
Serviços de Censura de 27/2/1950. ANTT.
Arquivo do Secretariado de Informação/ Censura. Cx. 700 . Proc. nº 665
[18] Vide Escritura Notarial celebrada no Cartório Notarial
da Rua do Crucifixo, 50, a 8/7/1950 . ANTT.
Arquivo do Secretariado da Informação/ Censura. Cx. 700. Proc. nº 664
[19] Vide Despacho do Director dos Serviços de Censura no
ofício que lhe é dirigido por João Mendes, 12/10/1950 ANTT. Arquivo do Secretariado da Informação/ Censura. Cx. 700. Proc.
nº 664
[20] Vide Ofício da Direccção dos Serviços de Censura
dirigida ao presidente da Comissão Especial para a Literatura Infantil e
Juvenil de 17/1/1951 e despacho manuscrito assinado por Edmundo Curvelo do
mesmo dia. ANTT. Arquivo do Secretariado
da Informação/ Censura. Cx. 700. Proc. nº 664
[21] Ver para uma biografia
actualizada e em particular sobre o destino “brasileiro” de Cardoso Lopes, Leonardo
de Sá, Tiotónio: Uma Vida aos
Quadradinhos, Lisboa, Bonecos Rebeldes, 2008.
Quanto valerá este ano da revista Gafanhoto?
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