Amílcar Cabral, homem
de Estado e jurista em acção
(em memória do seu assassinato, a 20
de Janeiro de 1973)
1.Amílcar Cabral (Bafatá,
1924 - Conacri, 1973), guineense de origem cabo-verdiana ou vice-versa, engenheiro
agrónomo de formação académica e primeira vida profissional (em Lisboa, Bissau
e Angola), teve de intervir em domínios jurídicos enquanto africano, anticolonialista
e revolucionário. Donde, a empatia científica seria escassa e o direito
adverso.
Embora só tenha
definitivamente mudado de vida em Maio de 1960 – quando se instalou em Conacri
–, decidira em meados da década de cinquenta regressar a África e dedicar-se à
luta contra o colonialismo português, participando desde então em estudos e
formulando teses em três áreas da ordem jurídica: a)- administração colonial
(matéria em que se baseou nas lições que Marcelo Caetano ministrava na
Faculdade de Direito em Lisboa); b)- formulação do direito da descolonização
(de que, desde 1960, foi simultaneamente teórico e criador); e c)- construção do
Estado (sendo oficialmente reconhecido como “Fundador da Nacionalidade” quanto
à República da Guiné-Bissau e cuja teoria deixou incompleta, pois foi fazendo
tal construção “passo a passo”).
2. Foi, no espaço lusófono,
contemporâneo e opositor dos dois outros vultos que também formularam uma
teoria própria e inteira sobre o Império Colonial Português e o seu futuro:
Oliveira Salazar (1889-1970) – cuja doutrina e acção Cabral viveu no pós-guerra
–, e Álvaro Cunhal (1913-2005) – com o qual só se confrontou no início da
década de sessenta. Colocando-se num outro lado da barricada, Cabral subverteu o
antagonismo radical, simétrico e imóvel dos “dois cães de faiança” (imagem de Eduardo
Lourenço), o Estado Novo e o PCP, tolhidos «num enfrentamento sem desfecho»
(João Medina). Embora Cabral fosse o único que não tinha formação jurídica, os
demais concordariam com a sua tese de que a abordagem jurídica da luta de
libertação nacional não passava de «uma maneira vaga e subjectiva de exprimir
uma realidade complexa», pois a norma era outra: “unidade e luta”.
De mundividências
distintas, foram, em tal espaço trilateral (nacional, colonial e
internacional), os três “homens de Estado” do século XX português. Obreiros de
diferentes revoluções, todos procuraram criar um Homem, um Estado e um Partido
novos. De comum, nenhum foi luso-tropicalista. Salazar foi um (distante)
nacional-colonialista, Cunhal o último marxista-leninista, Cabral dizia de si
ser “simplesmente, um africano”, mas Viriato da Cruz – que o conheceu bem – denominava-o,
com alguma mordacidade, “Príncipe Perfeito”. Salazar e Cunhal também mereceram
este cognome dos admiradores respeitosos.
3. Antes de mais, Cabral contrapõe-se
radicalmente a Salazar – a quem, no início da década de sessenta propôs
negociações, directas ou via ONU, que ele ignorou – e morreram firmes nos seus
ideais (um de “morte matada”, outro de “morte morrida”, ambas pela causa
africana). Salazar fora, em 1930, o fautor do Acto Colonial, a “Magna Carta” do
Império Colonial Português. Cabral será o principal fautor do seu termo. Ambos
sabiam que o fim do colonialismo português arrastaria a «destruição do fascismo
em Portugal».
4. No entanto, o pensamento e a obra
de Cabral também devem ser, noutro plano, confrontados com as posições do secretário-geral
do Partido Comunista Português (PCP), Álvaro Cunhal. Cruzaram-se apenas algumas
vezes e o último encontro terá sido em 1971, durante um almoço em que também
participaram Agostinho Neto e Samora Machel, aquando do XXIV Congresso do
Partido Comunista da União Soviética. Cabral nunca aderiu à estratégia ou
sequer a organizações promovidas pelo PCP. Em 1957, quando este aceitou o
direito à imediata e completa independência dos povos das colónias,
acrescentando que essa independência se poderia realizar independentemente das
modificações na situação política em Portugal, Cunhal estava a cumprir uma
longa pena de prisão e silêncio. Então, o PCP considerava a questão colonial
matéria de política interna, promovia a criação de partidos comunistas nas colónias
e considerava prioritária a queda do regime em Portugal. A partir de 1964, o PCP passará a entender que a questão da prioridade
da libertação do povo português (quanto ao fascismo) ou dos povos coloniais
(quanto ao colonialismo) dependia de factores internos e internacionais.
De facto, logo na década
de cinquenta, estabelecera-se nos meios oposicionistas uma discussão decisiva à
volta da prioridade estratégica entre democratização e descolonização e, em
1960, o Manifesto do MAC (Movimento
Anti-Colonialista) concluía que pretender «uma prévia revolução político-social
progressista em Portugal» como condição necessária da descolonização
correspondia à imposição da «teoria da assimilação colonial revestida de um
vocabulário que se pretendia revolucionário». A conexão entre fim do
colonialismo e destruição do fascismo anunciada por Cabral culminava
politicamente o projecto cultural de “regresso a África” (ou, como preferia
dizer, de «reafricanização dos espíritos») e consagrava a autonomia dos
movimentos de libertação e, consequentemente, a ruptura sobre a prevalência da
“unidade anti-fascista”.
5. O surto do nacionalismo nas
colónias portuguesas data de meados da década de cinquenta e os “estudantes do
Império” desempenharam um papel fulcral. As primeiras referências sobre a
aplicação do princípio da autodeterminação são vagas e mínimas. Constam do Manifesto do Movimento Anti-Colonialista
(MAC) e da II Conferência dos Povos Africanos, ou seja, da fase da definição e
organização do nacionalismo. Nesta fase, os textos não eram radicais nem
ameaçavam com a luta armada.
Aquele
Manifesto do MAC foi um texto de
formulação demorada (cerca de três anos) e resultou da “Reunião de consulta e
de estudo para o desenvolvimento da luta contra o colonialismo português”,
realizada em Paris, em Novembro de 1957. Divulgado aquando da Conferência de
Tunes, em Janeiro de 1960, chegou tarde. Obra de autoria colectiva, teve como
principais redactores Viriato da Cruz e Amílcar Cabral.
Embora muito extenso,
aborda a temática da autodeterminação de forma dispersa (em cinco passagens).
Sobretudo, contraria quer a argumentação jurídica e a posição política do
Governo português perante o nacionalismo africano quer a tese da imaturidade
para a autodeterminação, defendida pelos democratas-progressistas portugueses.
Em conclusão, o Manifesto do MAC proclamava,
em primeiro lugar, o direito dos povos de Cabo Verde, Guiné, Angola, S. Tomé e
Príncipe e Moçambique à autodeterminação e independência imediata.
6. Além de terem aprovado a primeira
resolução internacional sobre as colónias portuguesas e proporcionado o
aparecimento público do Partido Africano da Independência (PAI) e do Movimento
Popular de Libertação de Angola (MPLA), as reuniões, documentos e deliberações
da II Conferência dos Povoa Africanos, de Tunes, em Janeiro de 1960, consumaram
a transformação das várias associações anticolonialistas em organizações de
carácter nacional e revolucionário, agrupadas numa Frente Revolucionária
Africana para a Independência Nacional (FRAIN). A Declaração constitutiva desta última, depois de anunciar a luta
pela «inalienável soberania dos nossos povos», invocava em termos idênticos aos
do Manifesto do MAC a
autodeterminação como fundamento das suas reivindicações.
A propósito do papel da
violência na revolta dos colonizados – ou seja, da “autêntica força
revolucionária” (camponeses ou assimilados), da organização, da mobilização e da
metodologia da luta armada – agudizaram-se, nas conversações paralelas, as
divergências dos dirigentes nacionalistas com Frantz Fanon. Este irá ser, como
confessou Holden Roberto, «o arquitecto do 15 de Março de 1961», desencadeado
no norte de Angola.
7. Em finais de 1960, o PAIGC enviou
um Memorandum ao Governo português,
assinado com pseudónimos de luta, com vista à «liquidação pacífica da dominação
colonial» na Guiné e Cabo Verde. Referia que o PAIGC continuava à espera «com
paciência» que o Governo português reconhecesse o direito à autodeterminação,
consagrado pela Carta das Nações Unidas, e lamentava, «com profundo desgosto»,
que, em vez de acatar as «leis internacionais e a moral do nosso tempo», o
Governo português mantivesse e reforçasse o seu domínio. Em concreto, propunha
doze medidas que culminariam na eleição («por sufrágio universal, directo e
secreto, em eleições gerais e livres, controladas por uma Comissão Especial da
ONU») de órgãos representativos (ditos «Câmaras de Representantes») dos povos
da Guiné e de Cabo Verde.
Como
se sabe, a Assembleia Geral da ONU, a partir de Dezembro, preparou o assalto à
fortaleza colonial e o «contorno de um plano
de guerra» (Franco Nogueira) contra Portugal, mediante três resoluções:
(1)- a resolução 1514 (XV), de 14 de Dezembro (Declaração sobre a concessão de independência aos países e aos povos
coloniais, também conhecida por Declaração
Anticolonialista); (2)- a resolução 1541 (XV), de 15 de Dezembro [Princípios que devem orientar os Estados
membros ao determinarem se existe ou não a obrigação de transmitir as
informações previstas no artigo 73.º, e), da Carta das Nações Unidas]; (3)-
a resolução 1542 (XV), da mesma data, que enumerava
os territórios sob administração portuguesa.
Este desenvolvimento do
direito à autodeterminação dos povos coloniais veio alterar substancialmente a
perspectiva defendida no citado Memorandum.
O movimento nacionalista passou a tentar (e a defender) que a pressão
internacional obrigasse o Governo português a negociar a transferência de
poderes.
8. O PAIGC desencadeou a luta armada
de libertação nacional em 23 de Janeiro de 1963 com um ataque ao quartel de
Tite, na margem sul do rio Geba. A teorização de Cabral e a posição do PAIGC
sobre o recurso à luta armada haviam sido defendidas e desenvolvidas durante as
intervenções perante o Comité Especial e a IV da Assembleia Geral da ONU. Foi ainda
sistematizada por Cabral no Discurso à
Segunda Conferência de Juristas Afro-Asiáticos, realizada em Conacri, de 15 a 22 de Outubro de 1962,
concluindo que a luta de libertação era não só legítima como legal e que os
combatentes do PAIGC agiam como «combatentes anónimos da causa da ONU».
9. Em 1972, após a visita da Missão
Especial da ONU às regiões libertadas, das intervenções de Cabral nas reuniões
do Conselho de Segurança e da IV Comissão da Assembleia Geral da ONU e da
criação de uma Assembleia Nacional Popular, a situação mudara muito: a)- os
factores externos já não eram determinantes, a independência era irreversível e
o PAIGC prestava-se a uma mediação para abertura de negociações directas com o
Governo português; b)- o PAIGC alargava o seu reconhecimento à ONU, como
sujeito internacional que representava o povo da Guiné e Cabo Verde na sua
integralidade, detinha a exclusividade dessa representação e exercia funções do
Estado antes de o Estado estar juridicamente formado; c)- a independência da Guiné-Bissau continuava o seu «andamento» e
a declaração unilateral, contando com múltiplos apoios, só levantava um
verdadeiro problema: a integração do novo Estado na ONU.
10. Enquanto teórico dos movimentos
de libertação e dirigente revolucionário, Cabral aprofundou sistematicamente os
parâmetros da independência das colónias africanas portuguesas (sobretudo,
Guiné e Cabo Verde), a análise das leis de dominação colonial, o fundamento e
relevo dos direitos dos povos coloniais, a legitimidade da luta armada, a
defesa dos direitos humanos, a representação política e, na fase final, a
formação do Estado soberano.
Comprovou-o no “borrão”
da Proclamação do Estado da Guiné-Bissau,
um dos últimos textos que redigiu antes do assassinato. Nos seis parágrafos
iniciais expõem-se as etapas e os fundamentos da luta de libertação nacional e
da declaração de independência. O estatuto jurídico-internacional da Guiné é
expressamente abordado no parágrafo 4 (sobre a ilegalidade da presença
portuguesa) e no parágrafo 5 (sobre o direito à autodeterminação e
independência do povo guineense e o reconhecimento internacional do PAIGC). Ou
seja: nesta declaração fundadora da República da Guiné-Bissau, Cabral insistia em
que, além da vontade soberana do povo, a independência se legitimava também nos
princípios do direito internacional, prosseguindo – como disse e quis – «uma
evolução certa, política e jurídica».
(Adaptação
do artigo “Amílcar Cabral e o direito da descolonização” publicado in AAVV, Estudos em Homenagem a Miguel Galvão Teles,
Volume II, Coimbra, Almedina, 2012, pp. 879 a 902)
António
Duarte Silva
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