Truman Capote, 1959
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Cabelos
nas paredes. O horror em A Sangue Frio
Hair on the walls is the invisible
subtitle of Truman Capote’s book, In Cold Blood.
Tom Wolfe
Uma
pornografia da violência?
O terror é sobre nós, não
apenas porque são nossos os medos, mas também porque nós somos o medo, isto é,
a violência primitiva e primordial da qual evoluímos, o lugar negro em que os
desejos e os impulsos colidem com a consciência e o autocontrolo. Vampiros,
lobisomens, zombies, psicopatas sobrenaturais, são metáforas confortáveis para falar
sobre aquilo que os espelhos nos devolvem. Numa frase: os monstros somos nós.
Contudo, mesmo
encontrando-se profundamente enraizada na tradição oral e sendo o horror um
elemento quase omnipresente desde tempos ancestrais nas formas de expressão
artística, a verdade é que a história de terror enquanto género literário só se
tornou popular e ganhou verdadeira autonomia face ao folclore em finais do
século XVIII. Um dos primeiros passos foi dado por Horace Walpole e o seu Castelo de Otranto, mas, a partir da
daqui, o conto de terror foi-se tornando um dos géneros literários mais
célebres e, mais do que isso, um dos predilectos do gosto popular. Graças a
isto, e principalmente à passagem do horror dos serões góticos para as páginas das
revistas populares, primeiro com os penny
dreadfuls no Reino Unido e depois com as revistas pulp americanas, o cinema desde cedo abraçou o terror como um dos
seus géneros de eleição.
Curiosamente, durante
as primeiras décadas do cinema de horror, graças à estilização e à herança
teatral de grande parte dos actores, realizadores e, até, das próprias
histórias, o terror surge mais enquanto sugestão do que enquanto prática; e a
violência, nos poucos vislumbres que dela temos, é coreografada, simulada e o
seu verdeiro impacto está totalmente dependente da empatia com o horror dos
protagonistas. Dito de uma forma mais simples, a herança de Poe é ainda tal que
o terror é principal e fundamentalmente um terror da mente e não um terror do
corpo.
A partir dos anos
cinquenta a história mudou. Ao mesmo tempo que o conto de terror apodrecia com
a decadência da revista Weird Tales –
em redor da qual se tinham reunidos os melhores escritores de terror da
primeira metade do século XX –, o advento do grande horror britânico com a
Hammer e, mais ainda, a chegada da cor ao cinema trouxe em pleno a carne para a
película de terror. Foi um processo natural de evolução resultante da
sexualização explícita do desejo do monstro pelas suas vítimas, que já se
intuía no vampiro de Bela Lugosi, por exemplo, mas que a cor e alguma cedência
nos costumes tornaram explícita. Contudo, esta opção, evidente na estreia como
vampiro de Christopher Lee em O Horror de
Drácula, distanciava-se pouco da aura em que se movia no terror antecedente.
É na segunda metade dos anos sessenta, com os filmes de Herschell Gordon Lewis,
e no início dos setentas, com A Última
Casa à Esquerda, de Wes Craven, que nasce o splatter e o corpo representado enquanto objecto de desejo passa
agora a conviver com a sua representação enquanto objecto de violência. Importa
aqui dizer que, se em alguns filmes de terror desta época – e posteriores – a
tortura é repartida pelo corpo dos protagonistas, na grande maioria é a tortura
das protagonistas a que é hiperbolizada. Pense-se, por exemplo, no que o póster
de Two Thousand Maniacs! indicia
acerca do filme.
Tendo atingido o
estatuto de pura paródia e inconsequência durante os anos oitenta com Holocausto Canibal e com o terror de
baixíssimo orçamento, o splatter
regressou em força no pós-11 de setembro, agora sob a alçada de um termo tão
explícito quanto a sua execução, o torture
porn das sagas Hostel, Saw e The Human Centipede ou de filmes como Martyrs (2008), de Pascal Laugier, ou Anticristo (2009), de Lars Von Trier. Foi também o elemento
transversal a praticamente todos os renascimentos das grandes sagas de terror
dos anos setenta e oitenta, como Texas
Chainsaw Massacre (2003), Casa de
Cera (2005) e Pesadelo em Elm Street (2010).
Mas enquanto nas suas origens o splatter
é, maioritariamente, um cinema de terror alternativo e com intenções
subversivas, e enquanto a violência das sagas de terror dos anos oitenta tem um
elemento cómico inegável trazido pela terrível execução de alguns efeitos e por
opções de morte absurdas e desaconselháveis a qualquer psicopata que pretende
ser minimamente eficaz, o torture porn
não só se tornou a tendência mais reconhecível no terror da primeira década do
século XXI, como passou a recorrer à tortura pelo puro prazer da violência, sem
qualquer outro propósito ou metáfora capaz de suportar o mais básico teste de
inteligência. Esta atitude, em parte por estar mais ligada aos impulsos
primitivos do terror, aproxima-se vertiginosamente de uma sexualização total do
terror, na qual a tortura deixa de promover o medo para se aproximar do
voyeurismo ou, pior, do prazer. Em vez de nos assustar com aquilo que somos,
torna-nos exactamente naquilo de que é suposto escaparmos. E a razão que
justifica que o cinema de terror actual se esteja a progressivamente a
divorciar desta tendência tem muito menos a ver com a consciencialização de
estarmos a carregar de erotismo a tortura, e bem mais a ver com o esvaziamento
do tabu graças ao confronto constante com a violência crua e real nos meios de
comunicação e nas redes sociais.
Tom Wolfe, uma das
figuras do New Journalism, publicou
em 1967 um artigo para a Esquire no
qual observava um fenómeno relativamente semelhante a propósito da forma com as
parangonas típicas do jornalismo sensacionalista, marcadas por aquilo que o
autor classificou como pornografia da violência, estavam a tomar conta de algum
jornalismo mais reputado. Citando Marshall McLuhan, Wolfe faz um diagnóstico
que pode ser integralmente transposto quer para o cinema de terror do início do
século XXI, quer para as recentes polémicas acerca das imagens de vítimas dos
ataques terroristas nas capas dos jornais: as imagens e as letras têm cada vez
mais dificuldade em estimular em nós uma reacção e, por isso, o seu grafismo
tem-se extremado, como se a ligação entre a violência relatada e o sofrimento
real das vítimas dessa violência fosse uma mera abstracção.
Wolfe dá também A Sangue Frio como exemplo dessa
tendência para explorar o apelo sádico-sensacionalista das histórias. O
argumento é simples, mas realça a intencionalidade da sequência em que Capote
apresenta os eventos: uma história em que todo o mistério se esfumou, em que desde
o início se sabe quem são os assassinos, já capturados, e em que se mantém
sempre viva a promessa de algo inexplicavelmente violento e terrivelmente
visual, mas guardado quase até ao último momento.
Não questionando as conclusões de Tom Wolfe, até
porque o título A Sangue Frio torna
evidente uma intenção semelhante, importa talvez acrescentar algumas ideias. O
que Capote fez, e que se tornou rapidamente uma imagem de marca de grande parte
da literatura sobre crimes reais, foi importar uma forma de contar as histórias
típica da literatura de terror, principalmente da norte-americana. A criação
detalhada de ambientes de terror e paranoia, uma estratégia particularmente
feliz nas mãos de Poe, procurava permitir aos leitores não só acompanhar
microscopicamente o processo de enlouquecimento dos protagonistas, como, por
assim dizer, senti-lo. Seja através da sequência não cronológica em que os
eventos nos são apresentados – primeiro o dia do crime, depois o rescaldo,
depois a formação da vontade criminosa e, por último, o corredor da morte –,
seja através da forma como cada parte é construída com o objectivo de maximizar
o terror que caiu sobre a cidade de Holcomb, o objectivo é manter no leitor
sempre perante a mesma curiosidade: que violência?
Por outro lado, e apesar
do seu lugar secundário na obra, Capote não é estranho ao terror, tendo escrito
alguns contos de terror, como Miriam
ou Master Misery, para além de ter
sido um dos responsáveis pelo argumento de The
Innocents, um dos melhores filmes de terror da década de sessenta, que
adapta The Turn of the Screw de Henry
James.
O
crime que aconteceu em Holcomb
Face ao que atrás se
disse, não deixa de ser curioso que devamos
A Sangue Frio, a obra-prima de Truman Capote e um livro cuja influência na
literatura do século XX é ainda hoje sobejamente menosprezada, a uma notícia
que, sem grande debate, caberia na crítica ensaiada por Tom Wolfe.
Na edição de 16 de
Novembro do New York Times, Capote encontrou um pequeno artigo acerca de uma
abastada família de quatro pessoas – pai, mãe e um casal de filhos adolescentes
– que foi encontrada morta a tiro em sua casa, em Holcomb, Kansas. Nem a
identidade dos assassinos, nem os detalhes da brutal execução das vítimas, nem
tão-pouco o perverso e longo planear do crime eram na altura conhecidos. Ainda
assim, Truman Capote decidiu dedicar a esta história os sete anos seguintes,
preparando uma detalhadíssima análise do local, do crime, das vítimas, dos
criminosos e de praticamente toda a gente com alguma coisa a dizer sobre os
eventos. Fê-lo quase sempre acompanhado pela amiga Harper Lee, que um ano
depois dos crimes escreveria Mataram a
Cotovia, o livro que lhe garantiu, por direito próprio, um lugar na grande
literatura americana do século XX.
O sucesso crítico do
livro foi extraordinário e o sucesso monetário ainda mais. Muito por isso, o
importantíssimo debate teórico que aquele livro deveria ter motivado na sua
época foi adiado. Pelo contrário, o debate foi quase sempre poluído por
acusações estéreis, maioritariamente movidas por uns poucos autores de true crime, os quais, apercebendo-se do verdadeiro significado e impacto de A Sangue Frio – nomeadamente para a sua
carteira –, atacaram o livro com aquilo que, um pouco mais tarde, se tornaria a
crítica mais ressoante: conteúdo
ficcionado num livro de não-ficção.
Comecemos por aqui,
ficção ou não-ficção é uma questão de etiquetas, um peso que, em A Sangue Frio, não deve impor-se por
completo, mesmo que o seu autor, em parte, o tenha feito. A obviedade daquilo
que distingue a ficção do facto não se transporta para a fronteira entre ficção
e não-ficção porque esta é distinção, no fundo, é apenas uma forma de arrumar
estantes nas livrarias e, mais que isso, existem muitos géneros pelo meio a
povoar esse espaço entre duas categorias tão rígidas. Isto, parecendo que não,
altera tudo. Ao questionarmos a ética da opção tomada por Capote em incluir
eventos e situações ficcionadas no meio de uma história verídica, somos
imediatamente confrontados com uma hipocrisia e um problema. A hipocrisia é
simples e formula-se numa questão: se olharmos para o que hoje são os jornais,
a ficção de Capote é assim tão diferente do que deixamos, acriticamente, passar
por notícia? E, também, será mesmo mais grave do que isto o que Capote fez?
E, mesmo que assim não
fosse, até porque o ataque à hipocrisia tem um valor crítico limitado,
sobra-nos o problema: existe uma ética uniforme para a não-ficção? Faz sentido
exigirmos a um livro como este a honestidade ideal de uma notícia ou de um
texto académico? Não me parece que devamos responder afirmativamente a qualquer
uma destas questões. Grande parte do conteúdo ficcionado serve um propósito
muito específico, sendo simultaneamente um dos melhores efeitos do livro.
Capote intuiu que o quádruplo homicídio da família Clutter envolve duas formas
de luta entre bem e mal. Numa dessas lutas, o objectivo é a destruição desse
confronto, presente na forma como, a pouco e pouco, nos vai sendo sugerida uma
cidade virada contra si própria, em profundo contraste com a descrição do local
que, mais ou menos, inaugura o livro. A outra luta explora ao limite o binómio,
confrontando os assassinos um contra o outro, o bem contra o mal, Perry Smith
contra Dick Hickock (os dois assassinos), realçando a assimetria profunda entre
cada uma das partes do duo homicida. Por um lado, um pedófilo e assassino
sádico, representado por Dick; por outro, Perry, facilmente irritável, mas de
temperamento sensível e artístico. É na
caracterização de Perry, seja no contraste com Dick, seja na sua relação com o
casal Meier, que Capote realça com alguns dos eventos cuja veracidade é posta
em causa e, mesmo considerando a ficção, isso está entre os melhores momentos
de prosa e é a personalidade de Perry, a forma como Capote o viu, talvez o
efeito mais perene da obra. A Sangue Frio
é não-ficção que abusa dos privilégios da ficção e isso não significa que as
fronteiras entre facto e ficção, entre romance e história verídica, não estejam
acessíveis ao leitor que por isso se interesse.
David
Teles Pereira
Bela prosa e belo livro!
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