Antoine de Saint-Exupéry (1900-1944)
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A
passagem por Lisboa de Antoine de Saint-Exupéry (1900-1944) é sobejamente
conhecida. A expressão «paraíso triste», com que o autor de Le Petit Prince caracterizou a capital
portuguesa, tornou-se um lugar-comum das descrições de Lisboa durante a Segunda
Guerra. Essa expressão consta de Lettre à
un ottage, obra publicada pouco antes da sua morte em combate.
Transcreveu-se a tradução constante da preciosa
antologia De Fora para Dentro,
realizada por Aníbal Fernandes para as Edições Afrodite e publicada por
Fernando Ribeiro de Mello em 1973. Existem outras traduções, como esta.
Fotografia de Mário Novais
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Carta
a um refém
Quando
em Dezembro de 1940 atravessei Portugal para ir aos Estados Unidos, Lisboa
surgiu-me como se fosse uma espécie de paraíso claro e triste. Naquela época,
falava-se muito de invasão iminente e Portugal agarrava-se à ilusão do seu
bem-estar. Lisboa, que organizara a mais bela exposição possível, sorria num
sorriso um tanto pálido, como o das mães que não têm quaisquer notícias do
filho ausente em combate e se esforçam por salvá-lo a poder de confiança: «O
meu filho continua vivo porque eu sorrio…» «Vejam como estou feliz, dizia por
seu lado Lisboa, como estou feliz, calma, e bem iluminada…» O continente
inteiro pesava contra Portugal como se fosse uma montanha selvagem carregada de
tribos hostis; Lisboa em festa desafiava a Europa: «Haverá alguém capaz de me
tomar por alvo se nem tento esconder-me? Se até sou tão vulnerável!...»
À noite as cidades da minha terra eram
cor de cinza. Vivendo nelas perdera o hábito de toda a claridade e esta capital
radiosa causava-me um certo incómodo. Se é escura a vizinhança, os diamantes da
montra muito iluminada atraem os que ali vagueiam. Vemo-los circular. Contra
Lisboa sentia eu que pesava a noite da Europa habitada por grupos errantes de
bombardeiros, como se ao longe tivessem farejado aquele tesouro.
Mas Portugal ignorava o apetite do
monstro. Recusava-se a acreditar nos maus sinais. Portugal falava de arte com
uma desesperada confiança. Haveria quem ousasse esmagá-lo ao culto da arte?
Pusera à mostra todas as suas maravilhas. Haveria quem ousasse esmagá-lo nas
maravilhas? Mostrava os seus grandes homens. À falta de exército e canhões,
contra o ferro do invasor erguera todas as sentinelas de pedra, poetas,
exploradores, conquistadores. À falta de exército e canhões, todo o passado de
Portugal barrava a entrada. Haveria quem ousasse esmagá-lo na herança de um
passado glorioso?
Noite após noite eu errava, assim
melancólico, através dos êxitos dessa exposição de extremo bom gosto onde tudo
roçava a perfeição, até a música tão discreta e escolhida com imenso tacto a
correr nos jardins com suavidade, sem estridências, como um simples murmurejar
de fonte. Haveria quem destruísse no mundo esse maravilhoso gosto pela justa
medida?
Mas por baixo do sorriso encontrava
Lisboa mais triste que as minhas cidades extintas.
Conheci (vós também, por certo) dessas
famílias um pouco excêntricas que mantêm à mesa o lugar do morto. Negam o irreparável.
Não cuido, porém, que tal desafio consolasse. Dos mortos devemos fazer mortos. E
no papel de mortos recuperam outra forma de presença. Mas aquelas famílias
suspendiam o seu regresso. Faziam deles ausentes eternos, convivas em atraso
para toda a eternidade. Trocavam o luto por uma espera sem conteúdo. E essas
casas pareciam-me mergulhadas num mal-estar sem perdão e tão abafante como o
desgosto. Por Guillaumet consenti pôr luto, Deus meu!, o último amigo que
perdi, piloto morto em serviço postal aéreo. Guillaumet não há-de alguma vez
ser diferente. Se não voltar a estar presente, também não há-de estar ausente.
Sacrifiquei-lhe o lugar à mesa, essa armadilha inútil, e fiz dele um verdadeiro
amigo morto.
Mas Portugal tentava acreditar no
bem-estar mantendo-lhe o lugar, conservando os candeeiros e a música. Em Lisboa
jogava-se ao bem-estar para que Deus acreditasse nele.
Em parte, o clima de tristeza devia-o
Lisboa à presença de certos refugiados. Não me refiro a proscritos em busca de
asilo. Não falo de imigrantes à procura de uma terra a fecundar com o eu
esforço. Falo dos que se expatriam para longe da miséria dos seus a fim de
manter o dinheiro a bom recato.
Não consegui alojamento na cidade e fui
para o Estoril, a dois passos do casino. Tinha saído de uma guerra densa: o meu
grupo aéreo, que durante nove meses não interrompera os voos pela Alemanha,
perdera três quartos da equipagem no decurso da única ofensiva alemã. De volta
a casa sentira a atmosfera soturna da escravidão e a ameaça da fome. Vivi a
noite cerrada das cidades. E veja lá bem como a dois passos o casino do Estoril
se povoava de espectros. Cadillacs silenciosos que pareciam dirigir-se a
qualquer destino largavam-nos ali, na areia fina do pórtico da entrada.
Tinham-se vestido para o jantar como noutros tempos. Exibiam a gravata ou as
pérolas. Convidavam-se uns aos outros para refeições de figurantes onde nada
havia a dizer.
Depois jogavam à roleta ou ao bacará,
conforme as fortunas. Às vezes ia vê-los. Não sentia indignação nem qualquer
sentimento irónico, porém uma angústia vaga. A que nos assalta no jardim
zoológico perante os sobreviventes de uma espécie extinta. Instalavam-se em
redor das mesas. Apertavam-se de encontro a um croupier austero e esforçavam-se
por ter esperança, desespero, medo, inveja e satisfação. Tal como os seres
vivos. Jogavam fortunas que talvez naquele minuto já se encontrassem vazias de
significado. Usavam dinheiro que talvez já não tivesse valor. Talvez o valor
dos seus cofres fosse garantido por fábricas já confiscadas ou, de ameaçadas
que estavam pelos torpedos aéreos, em vias de ruína. Atiravam dardos a Sírius.
Apegando-se ao passado, esforçavam-se em crer na legitimidade da sua febre como
se de há uns tantos meses àquela parte nada houvesse começado a rebentar na
terra., na cobertura dos seus cheques, na eternidade das suas convenções. Era irreal.
Um verdadeiro baile de bonecas. Porém triste.
Com certeza não sentiam nada. Eu abandonava-os.
Ia respirar à beira-mar. E esse mar do Estoril, mar de cidade ribeirinha, mar
domesticado, também a mim me parecia entrar no jogo. Empurrava para o golfo uma
onda única e mole, toda luzidia de lua, como se fora um vestido de rabona fora
de estação.
Antoine
de Saint-Exupéry
Excelente! Esta nostalgia, ou tristeza, trazida por um mundo em decadência só a sinto em Mahler.
ResponderEliminarE Zweig
EliminarE Zweig
Eliminargrata.
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