quarta-feira, 10 de agosto de 2016

Lisboa, 1975.


 
Christopher Hitchens (1949-2011)
 
 
         Em 1975, engrossando o caudal dos que então visitaram o Portugal revolucionário, Christopher Hitchens (1949-2011) esteve em Lisboa, experiência que recordaria anos mais tarde quando regressou ao nosso país (aqui ou aqui),  No seu livro de memórias, Hitch-22, o controverso articulista, ensaísta e escritor registou em breves páginas as suas reminiscências daquele tempo, num trecho a que deu o título «Lusitania», e que aqui é traduzido sem especiais preocupações de rigor.
 

João Abel Manta, 1975

 


Lusitania
 
         Por muito mediterrânico que possa parecer, Portugal é o único país europeu onde o Atlântico banha o porto interior da capital. Os espantosos marinheiros portugueses levaram o seu idioma, de estranhas inflexões, até Timor Leste e até Macau, ainda que provavelmente o príncipe Henrique, o Navegador, nunca haja posto os pés num navio. Logo que pude, após a revolução de Abril de 1974 aterrei em Lisboa como um cidadão vulgar. Contudo, disseram-me para aguardar na zona da alfândega. Estaria porventura numa lista de pessoas indesejáveis, como me acontecera noutros aeroportos? Um funcionário grisalho e mal apresentado mostrou um cartão que o identificava – Vieira da Fonseca, como o delicioso vinho do Porto – e estendeu a mão. Ia levar-me ao hotel. Aparentemente, eu era um convidado ilustre. Pela primeira vez na vida, encontrava-me numa lista de pessoas desejáveis. Quando abriram os arquivos da polícia secreta da ditadura de Salazar e Caetano, descobriu-se que o meu nome surgia como o de um inimigo especial do ancien régime. Tendo julgado que iria dormir alegremente na companhia dos meus camaradas no chão de algum apartamento esquerdista, conduziram-me antes a um piso dos mais elevados do Hotel Tivoli, na Avenida da Liberdade, com vista para o encantador porto da cidade. Parecia-me um excesso, como se acabasse de receber os benefícios e os dividendos de um investimento que me tinha limitado a fazer sem pensar muito. Intimamente, decidi não me acostumar demasiado a tudo aquilo.
         A queda do fascismo, em Abril de 1974, em Lisboa, gerou uma tempestade quase perfeita de ambições radicais. A queda da ditadura de Caetano não fazia apenas parte da missão de limpar a Europa do fascismo, assumida antes de 1939, sendo também uma espécie de vingança pelo derrube, no Outono anterior (em 11 de Setembro, mais precisamente), do governo de Allende no Chile. Existiram ainda outras convergências felizes. Com a velha guarda expulsa do poder, acabara o domínio de Portugal sobre as suas colónias africanas, e isso significava não apenas a emancipação de Angola, de Moçambique e da Guiné-Bissau como uma aceleração política que, segundo se julgava, iria pôr termo aos governos racistas da Rodésia e da África do Sul. Também se esperava que a revolução portuguesa tivesse efeitos colaterais no Brasil, o maior e em alguns aspectos o mais perverso dos regimes militares autoritários do Cone Sul. Na vizinha Espanha, a queda dos aliados militares e religiosos de Franco teria também um efeito desmoralizador. O terramoto de Lisboa abrira fendas em muitos lugares, e todas elas ameaçavam as estruturas da ordem tradicional. Tudo isto, note-se, para falar apenas no plano político. Do ponto de vista cultural, parecia que o que de melhor houvera em 1968 continuava a ser relevante. Nos tempos pré-revolucionários, um dos gestos mais provocadores foi a publicação de um manifesto feminista de três mulheres, as três chamadas Maria, e «as três Marias» tornaram-se um exemplo emocionante do que as mulheres podiam fazer quando enfrentavam uma oligarquia teocrata que as tratava como máquinas de procriar, valendo pouco mais do que escravas. Reprimido durante muito tempo, o sexo perfumava os ventos com muita força: recordo em particular o Movimento da Esquerda Libidinosa, só parcialmente satírico, e o seu slogan «Somos um partido sexocrático», cujo objectivo óbvio consistia em recuperar freneticamente o tempo perdido. O melhor cartaz revolucionário que vi – talvez o melhor que vi em toda a minha vida – expressava a mesma ideia, ainda que de forma um pouco menos erótica: mostrava uma família portuguesa de vestes tradicionais a receber um grupo de amigos, entre os quais se encontravam Sócrates, Einsten, Beethoven, Espinosa, Shakespeare, Charlie Chaplin, Louis Armstrong, Karl Marx e Sigmund Freud (em países muito mais desenvolvidos, há muita gente que continua a adiar o encontro com estes nome).
         Além de ser uma potência colonial, durante o fascismo Portugal converteu-se numa semicolónia, tendo por principal produto de exportação mão-de-obra barata para o resto da Europa, cuja taxa de analfabetismo rondava os trinta por cento. Em consequência, era muito patente a divisão do país entre a classe dirigente e a classe dos oficiais, por um lado, e a classe da rua, por outro. Nas manifestações de massas que encheram a Avenida da Liberdade e a Praça do Rossio a coisa mais assombrosa foi ver os esquadrões de jovens marinheiros e de soldados em uniforme unidos com os trabalhadores e os estudantes: para mim, tratava-se de uma repetição quase literal das cenas do Couraçado Potemkine ou da tomada do Palácio de Inverno. E, quando aclarei a vista e sequei os olhos, apercebi-me de que o paralelo com São Petersburgo não terminava aqui.
         Em 1968, o fermento da revolução desconcertou o anquilosado Partido Comunista Francês, obrigando-o a alinhar com De Gaulle. Fê-lo, por um lado, para proteger o seu estatuto de «partido da ordem» e, por outro, em obediência às instruções soviéticas, que mandavam que se importunasse o menos possível o regime gaullista, adverso à NATO e aos Estados Unidos. Em Portugal não houve inibições deste género porque a velha ordem se esfumou de forma irremediável, como a respiração ceifada por uma lâmina de barbear, e emergiu um vazio de poder ou, como costumávamos dizer nas nossas reuniões, «uma situação de poder dual». As comissões de trabalhadores transformaram-se em embriões de sovietes, os colectivos de soldados e marinheiros dominavam navios e regimentos inteiros, os trabalhadores do campo sem terra ocupavam quintas e propriedades abandonadas. Houve dois factos notáveis. Desde logo, apenas foi disparado um tiro: os portugueses, que haviam levado grandes doses de violência para África, revelaram-se extraordinariamente brandos no seu próprio país, sobretudo quando comparados com os seus vizinhos de Espanha, por exemplo (uma metáfora possível: nas corridas de touros portuguesas não se torturam nem matam os touros, e o toureiro limita-se a demonstrar a sua destreza e valentia perante o nobre animal). O outro ponto a reter é que, após toda a espontaneidade, todo o erotismo e a alegria generalizada do «festival dos oprimidos», um férreo apparat comunista preparava-se para pôr termo ao frenesi hedonista e tomar o Estado.
         «A União Soviética é o sol do nosso universo», proclamou Álvaro Cunhal, o líder dos estalinistas portugueses, que regressou do seu exílio em Moscovo para dirigir as operações. A estratégia assemelhava-se mais à de 1948 em Praga do que à de 1917 em São Petersburgo, e consistia numa lenta tomada de posições no seio do exército e da polícia, e na aplicação daquilo a que se podia chamar a «táctica do salame» contra os demais partidos. O Partido Socialista gozava do apoio da maioria do povo, pelo que não se tratou de uma coincidência que um dos seus principais jornais, o República, tenha sido alvo de um assalto «espontâneo» por parte dos trabalhadores das rotativas, que os dirigentes comunistas trataram como mosquinhas mortas. Tão-pouco foi uma coincidência que no sindicato dos operários químicos, em que uma maioria socialista começava a despontar entre os seus membros, se haja descoberto que os líderes comunistas resistiam à realização de eleições. Num Estado outrora corporativista e monopolista, a nacionalização repentina do sistema bancário constituía uma oportunidade ímpar para que a burocracia da «classe dirigente» se assenhoreasse de grandes extensões em África e dos lugares de chefia nos jornais e nas emissoras de rádio e televisão. O líder do Partido Socialista, Mário Soares, um homem que eu sempre vira como um social-democrata baço e propenso a compromissos, resumiu bem a situação. Ainda guardo a pergunta que me fez, com um duplo sublinhado no meu caderno de Lisboa. «Se os oficiais do exército estão ao lado do povo, porque não se vestem de civis?». A pergunta não valia apenas para aquele momento.
         Comecei a sentir-me muito abatido pelo fracasso – ou seria repúdio? –  dos meus camaradas dos Socialistas Internacionais quando chegou o momento de ver o que se passava diante dos seus olhos. Inebriados pelas tentativas, sem dúvida comoventes, de alcançar a libertação pessoal e a «autogestão» social, não conseguiam – ou não queriam – perceber até que ponto o seu movimento era manipulado por uma seita lúgubre e conformista cuja lealdade residia, em última instância, na Rússia. Numa tarde de finais de Março de 1975, encontrei-me, assim, na Praça de Touros do Campo Pequeno, em Lisboa, numa gigantesca concentração organizada pelo Partido Socialista, o qual, apesar de prudente e moderado, tinha um slogan estimulante: «Socialismo Sim! Ditadura Não!». A Praça era um mar de bandeiras vermelhas e outros cânticos repetiam aquele refrão. Houve apelos ao direito de voto para os trabalhadores do sector químico, uma cartaz dizia «Abaixo o social-fascismo» e outro expressava quase na perfeição a minha opinião a propósito das intervenções externas em Portugal: «Nem Kissinger, nem Brejnev!». Levei o meu velho amigo Colin MacCabe a este comício. Devido aos seus inúmeros pecados, à época era membro do Partido Comunista e ao princípio usou o velho slogan maoísta – «ondear a bandeira vermelha opondo-se à bandeira vermelha» – para desdenhar o que via. Aos poucos, porém, começou a ficar impressionado e, quando a tarde caía, disse: «Por vezes, as pessoas equivocadas podem estar na linha justa». Pensei, então, que ele dizia mais do que queria, e tomei o seu comentário como uma espécie de emancipação face à preocupação que ainda me assaltava às vezes, segundo a qual ao adoptar alguma posição situada fora da linha oficial poderia encontrar-me «na cama», como costumava dizer-se, com elementos indesejáveis. Devemos descartar este tipo de chantagem moral e essa grilheta moral o mais rapidamente possível.
         O que se seguiu conta-se em poucas palavras: em desespero, os comunistas e os seus aliados da extrema-esquerda forçaram o jogo numa tentativa de golpe militar, e os elementos mais tradicionalistas, rurais e religiosos da sociedade portuguesa ergueram-se indignados numa contra-revolução, restaurou-se uma espécie de equilíbrio e é finita la commedia. Os jovens radicais vindos de toda a Europa para um festim de sexo, sol e antipolítica desmontaram as tendas e, abandonado a confusão, regressaram a casa. Caiu o pano sobre o último acto ao estilo de 1968, com os seus cartazes que diziam «Toma os teus desejos por realidade» e a sua ideia de trabalho como divertimento. Para mim, foi também o final da jornada com o meu groupuscle. Existiriam outros pontos de atrito à medida que os antigos (e outrora abertos) Socialistas Internacionais começaram a transformar-se numa seita que se limitava a seguir a linha do partido. Portugal pusera termo ao principal motivo que me animara, fazendo-me compreender que a democracia e o pluralismo eram coisas boas por si próprias, fins em si mesmos e não meios para alcançar outros fins.
         Na sua excepcional antologia de ensaios Writers and Politics, que me marcou profundamente quando a encontrei pela primeira vez numa biblioteca pública de Devonshire, em 1967, Conor Cruise O’Brien exprimiu o essencial de uma forma que, naquela altura, eu seria incapaz:
 
         «És socialista?», perguntou o líder africano.
         Respondi que sim.
         Olhou-me nos olhos. «Têm-me dito, com ligeireza, que és um liberal»
         Naquele contexto, tal declaração convidava a uma resposta negativa. Nada disse.
         No entanto, quando voltei a casa depois de me avistar com o líder, tive que reconhecer que era um incorrigível liberal. Por muito que o negasse, estava mais ligado aos conceitos liberais de liberdade – liberdade de expressão e de imprensa, liberdade de ensino, liberdade de opinião e de pensamento – do que à ideia de um partido disciplinado, capaz de mobilizar todas as forças da sociedade para fundar uma ordem social que garantisse uma liberdade mais real para todos do que apenas para alguns. Essa ideia revolucionária parecia-me imediatamente mais relevante para a maior parte da humanidade do que as ideias liberais. Mas eram as ideias liberais e a sua importância – ainda que não o rótulo de «liberal» – que mereciam a minha lealdade.
 
         Pode ler-se estas linhas e entendê-las, até valorizá-las, como pode passar-se por experiências que confirmam a sua veracidade. Cito O’Brien não como argumento de autoridade, pois tive grandes discussões com ele ao longo dos anos, mas por ser um homem dotado de uma mente excepcional que resumiu de forma brilhante as contradições em que eu tinha vivido, e com que estava condenado a conviver ainda algum tempo.
 
Christopher Hitchens
 
Tradução de António Araújo



7 comentários:

  1. Imagino que na altura os então camarados do Hitchens andassem colados ao PRP-BR?

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  2. O estilo é francamente mau. As vistas para o porto da cidade e a não tortura dos toiros fazem-me duvidar que o senhor alguma vez cá tenha estado. Aos 26 anos, um obscuro jornalista anglo-americano com ficha na PIDE?! Qual era o tamanho do ficheiro da PIDE?

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  3. Obrigada por mais um texto inolvidável.
    Maria Teresa Mónica

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    1. Eu é que agradeço as suas palavras, Teresa! Se tiver sugestões, agradecia.

      Com amizade,

      António

      PS - os textos de estrangeiros aqui publicados não são divulgados pela sua fidedignidade ou qualidade histórica, literária, etc. São apenas «ilustrações» do modo como nos foram vendo ao longo dos anos, nada mais...

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  4. "príncipe Henrique, o Navegador, nunca haja posto os pés num navio" - como esteve em Ceuta, provavelmente pôs.
    Seria interessante comparar os índices de iliteracia e analfabetismo entre Portugal e Espanha em 1974 e os mesmos índices em 2016.
    A distância da taxa de analfabetismo entre os dois países é a mesma.
    Durante o chamado Estado Novo o analfabetismo diminuiu mais, ou, no máximo, ao mesmo rítmo que entre 1974 e 2016.

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  5. Em Cuba diminuiu ainda mais e depois?!Podemos tolerar uma ditadura desde que nos ensine a escrever e a ler?! É isso?

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  6. Em Cuba diminuiu muito mais.E depois? Devemos tolerar uma ditadura desde que nos ensine a ler e a escrever?É isso?

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