Christopher Hitchens (1949-2011)
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Em 1975, engrossando o caudal dos que
então visitaram o Portugal revolucionário, Christopher Hitchens (1949-2011)
esteve em Lisboa, experiência que recordaria anos mais tarde quando regressou
ao nosso país (aqui ou aqui), No seu livro de memórias, Hitch-22,
o controverso articulista, ensaísta e escritor registou em breves páginas as suas
reminiscências daquele tempo, num trecho a que deu o título «Lusitania», e que
aqui é traduzido sem especiais preocupações de rigor.
Lusitania
Por muito mediterrânico que possa
parecer, Portugal é o único país europeu onde o Atlântico banha o porto
interior da capital. Os espantosos marinheiros portugueses levaram o seu
idioma, de estranhas inflexões, até Timor Leste e até Macau, ainda que
provavelmente o príncipe Henrique, o Navegador, nunca haja posto os pés num
navio. Logo que pude, após a revolução de Abril de 1974 aterrei em Lisboa como
um cidadão vulgar. Contudo, disseram-me para aguardar na zona da alfândega.
Estaria porventura numa lista de pessoas indesejáveis, como me acontecera
noutros aeroportos? Um funcionário grisalho e mal apresentado mostrou um cartão
que o identificava – Vieira da Fonseca, como o delicioso vinho do Porto – e
estendeu a mão. Ia levar-me ao hotel. Aparentemente, eu era um convidado
ilustre. Pela primeira vez na vida, encontrava-me numa lista de pessoas
desejáveis. Quando abriram os arquivos da polícia secreta da ditadura de
Salazar e Caetano, descobriu-se que o meu nome surgia como o de um inimigo
especial do ancien régime. Tendo
julgado que iria dormir alegremente na companhia dos meus camaradas no chão de
algum apartamento esquerdista, conduziram-me antes a um piso dos mais elevados
do Hotel Tivoli, na Avenida da Liberdade, com vista para o encantador porto da
cidade. Parecia-me um excesso, como se acabasse de receber os benefícios e os
dividendos de um investimento que me tinha limitado a fazer sem pensar muito. Intimamente,
decidi não me acostumar demasiado a tudo aquilo.
A queda do fascismo, em Abril de 1974,
em Lisboa, gerou uma tempestade quase perfeita de ambições radicais. A queda da
ditadura de Caetano não fazia apenas parte da missão de limpar a Europa do
fascismo, assumida antes de 1939, sendo também uma espécie de vingança pelo
derrube, no Outono anterior (em 11 de Setembro, mais precisamente), do governo
de Allende no Chile. Existiram ainda outras convergências felizes. Com a velha
guarda expulsa do poder, acabara o domínio de Portugal sobre as suas colónias
africanas, e isso significava não apenas a emancipação de Angola, de Moçambique
e da Guiné-Bissau como uma aceleração política que, segundo se julgava, iria pôr
termo aos governos racistas da Rodésia e da África do Sul. Também se esperava
que a revolução portuguesa tivesse efeitos colaterais no Brasil, o maior e em
alguns aspectos o mais perverso dos regimes militares autoritários do Cone Sul.
Na vizinha Espanha, a queda dos aliados militares e religiosos de Franco teria
também um efeito desmoralizador. O terramoto de Lisboa abrira fendas em muitos
lugares, e todas elas ameaçavam as estruturas da ordem tradicional. Tudo isto,
note-se, para falar apenas no plano político. Do ponto de vista cultural, parecia
que o que de melhor houvera em 1968 continuava a ser relevante. Nos tempos
pré-revolucionários, um dos gestos mais provocadores foi a publicação de um
manifesto feminista de três mulheres, as três chamadas Maria, e «as três
Marias» tornaram-se um exemplo emocionante do que as mulheres podiam fazer
quando enfrentavam uma oligarquia teocrata que as tratava como máquinas de
procriar, valendo pouco mais do que escravas. Reprimido durante muito tempo, o
sexo perfumava os ventos com muita força: recordo em particular o Movimento da
Esquerda Libidinosa, só parcialmente satírico, e o seu slogan «Somos um partido
sexocrático», cujo objectivo óbvio consistia em recuperar freneticamente o tempo
perdido. O melhor cartaz revolucionário que vi – talvez o melhor que vi em toda
a minha vida – expressava a mesma ideia, ainda que de forma um pouco menos
erótica: mostrava uma família portuguesa de vestes tradicionais a receber um
grupo de amigos, entre os quais se encontravam Sócrates, Einsten, Beethoven,
Espinosa, Shakespeare, Charlie Chaplin, Louis Armstrong, Karl Marx e Sigmund
Freud (em países muito mais desenvolvidos, há muita gente que continua a adiar
o encontro com estes nome).
Além de ser uma potência colonial, durante
o fascismo Portugal converteu-se numa semicolónia, tendo por principal produto
de exportação mão-de-obra barata para o resto da Europa, cuja taxa de
analfabetismo rondava os trinta por cento. Em consequência, era muito patente a
divisão do país entre a classe dirigente e a classe dos oficiais, por um lado,
e a classe da rua, por outro. Nas manifestações de massas que encheram a
Avenida da Liberdade e a Praça do Rossio a coisa mais assombrosa foi ver os
esquadrões de jovens marinheiros e de soldados em uniforme unidos com os
trabalhadores e os estudantes: para mim, tratava-se de uma repetição quase
literal das cenas do Couraçado Potemkine
ou da tomada do Palácio de Inverno. E, quando aclarei a vista e sequei os
olhos, apercebi-me de que o paralelo com São Petersburgo não terminava aqui.
Em 1968, o fermento da revolução
desconcertou o anquilosado Partido Comunista Francês, obrigando-o a alinhar com
De Gaulle. Fê-lo, por um lado, para proteger o seu estatuto de «partido da
ordem» e, por outro, em obediência às instruções soviéticas, que mandavam que
se importunasse o menos possível o regime gaullista, adverso à NATO e aos
Estados Unidos. Em Portugal não houve inibições deste género porque a velha
ordem se esfumou de forma irremediável, como a respiração ceifada por uma
lâmina de barbear, e emergiu um vazio de poder ou, como costumávamos dizer nas
nossas reuniões, «uma situação de poder dual». As comissões de trabalhadores
transformaram-se em embriões de sovietes, os colectivos de soldados e
marinheiros dominavam navios e regimentos inteiros, os trabalhadores do campo
sem terra ocupavam quintas e propriedades abandonadas. Houve dois factos
notáveis. Desde logo, apenas foi disparado um tiro: os portugueses, que haviam levado
grandes doses de violência para África, revelaram-se extraordinariamente brandos
no seu próprio país, sobretudo quando comparados com os seus vizinhos de
Espanha, por exemplo (uma metáfora possível: nas corridas de touros portuguesas
não se torturam nem matam os touros, e o toureiro limita-se a demonstrar a sua
destreza e valentia perante o nobre animal). O outro ponto a reter é que, após
toda a espontaneidade, todo o erotismo e a alegria generalizada do «festival
dos oprimidos», um férreo apparat
comunista preparava-se para pôr termo ao frenesi hedonista e tomar o Estado.
«A União Soviética é o sol do nosso
universo», proclamou Álvaro Cunhal, o líder dos estalinistas portugueses, que
regressou do seu exílio em Moscovo para dirigir as operações. A estratégia assemelhava-se
mais à de 1948 em Praga do que à de 1917 em São Petersburgo, e consistia numa
lenta tomada de posições no seio do exército e da polícia, e na aplicação
daquilo a que se podia chamar a «táctica do salame» contra os demais partidos.
O Partido Socialista gozava do apoio da maioria do povo, pelo que não se tratou
de uma coincidência que um dos seus principais jornais, o República, tenha sido alvo de um assalto «espontâneo» por parte dos
trabalhadores das rotativas, que os dirigentes comunistas trataram como
mosquinhas mortas. Tão-pouco foi uma coincidência que no sindicato dos
operários químicos, em que uma maioria socialista começava a despontar entre os
seus membros, se haja descoberto que os líderes comunistas resistiam à
realização de eleições. Num Estado outrora corporativista e monopolista, a
nacionalização repentina do sistema bancário constituía uma oportunidade ímpar para
que a burocracia da «classe dirigente» se assenhoreasse de grandes extensões em
África e dos lugares de chefia nos jornais e nas emissoras de rádio e
televisão. O líder do Partido Socialista, Mário Soares, um homem que eu sempre
vira como um social-democrata baço e propenso a compromissos, resumiu bem a situação.
Ainda guardo a pergunta que me fez, com um duplo sublinhado no meu caderno de
Lisboa. «Se os oficiais do exército estão ao lado do povo, porque não se vestem
de civis?». A pergunta não valia apenas para aquele momento.
Comecei a sentir-me muito abatido pelo
fracasso – ou seria repúdio? – dos meus
camaradas dos Socialistas Internacionais quando chegou o momento de ver o que
se passava diante dos seus olhos. Inebriados pelas tentativas, sem dúvida
comoventes, de alcançar a libertação pessoal e a «autogestão» social, não
conseguiam – ou não queriam – perceber até que ponto o seu movimento era
manipulado por uma seita lúgubre e conformista cuja lealdade residia, em última
instância, na Rússia. Numa tarde de finais de Março de 1975, encontrei-me,
assim, na Praça de Touros do Campo Pequeno, em Lisboa, numa gigantesca
concentração organizada pelo Partido Socialista, o qual, apesar de prudente e
moderado, tinha um slogan estimulante: «Socialismo Sim! Ditadura Não!». A Praça
era um mar de bandeiras vermelhas e outros cânticos repetiam aquele refrão.
Houve apelos ao direito de voto para os trabalhadores do sector químico, uma
cartaz dizia «Abaixo o social-fascismo» e outro expressava quase na perfeição a
minha opinião a propósito das intervenções externas em Portugal: «Nem
Kissinger, nem Brejnev!». Levei o meu velho amigo Colin MacCabe a este comício.
Devido aos seus inúmeros pecados, à época era membro do Partido Comunista e ao
princípio usou o velho slogan maoísta – «ondear a bandeira vermelha opondo-se à
bandeira vermelha» – para desdenhar o que via. Aos poucos, porém, começou a ficar
impressionado e, quando a tarde caía, disse: «Por vezes, as pessoas equivocadas
podem estar na linha justa». Pensei, então, que ele dizia mais do que queria, e
tomei o seu comentário como uma espécie de emancipação face à preocupação que
ainda me assaltava às vezes, segundo a qual ao adoptar alguma posição situada fora
da linha oficial poderia encontrar-me «na cama», como costumava dizer-se, com
elementos indesejáveis. Devemos descartar este tipo de chantagem moral e essa
grilheta moral o mais rapidamente possível.
O que se seguiu conta-se em poucas
palavras: em desespero, os comunistas e os seus aliados da extrema-esquerda forçaram
o jogo numa tentativa de golpe militar, e os elementos mais tradicionalistas,
rurais e religiosos da sociedade portuguesa ergueram-se indignados numa
contra-revolução, restaurou-se uma espécie de equilíbrio e é finita la commedia. Os jovens radicais vindos de toda a Europa
para um festim de sexo, sol e antipolítica desmontaram as tendas e, abandonado
a confusão, regressaram a casa. Caiu o pano sobre o último acto ao estilo de
1968, com os seus cartazes que diziam «Toma os teus desejos por realidade» e a
sua ideia de trabalho como divertimento. Para mim, foi também o final da
jornada com o meu groupuscle. Existiriam
outros pontos de atrito à medida que os antigos (e outrora abertos) Socialistas
Internacionais começaram a transformar-se numa seita que se limitava a seguir a
linha do partido. Portugal pusera termo ao principal motivo que me animara,
fazendo-me compreender que a democracia e o pluralismo eram coisas boas por si
próprias, fins em si mesmos e não meios para alcançar outros fins.
Na sua excepcional antologia de ensaios
Writers and Politics, que me marcou
profundamente quando a encontrei pela primeira vez numa biblioteca pública de
Devonshire, em 1967, Conor Cruise O’Brien exprimiu o essencial de uma forma que,
naquela altura, eu seria incapaz:
«És socialista?», perguntou o líder
africano.
Respondi que sim.
Olhou-me nos olhos. «Têm-me dito, com
ligeireza, que és um liberal»
Naquele contexto, tal declaração convidava
a uma resposta negativa. Nada disse.
No entanto, quando voltei a casa depois
de me avistar com o líder, tive que reconhecer que era um incorrigível liberal.
Por muito que o negasse, estava mais ligado aos conceitos liberais de liberdade
– liberdade de expressão e de imprensa, liberdade de ensino, liberdade de
opinião e de pensamento – do que à ideia de um partido disciplinado, capaz de
mobilizar todas as forças da sociedade para fundar uma ordem social que
garantisse uma liberdade mais real para todos do que apenas para alguns. Essa
ideia revolucionária parecia-me imediatamente
mais relevante para a maior parte da humanidade do que as ideias liberais.
Mas eram as ideias liberais e a sua importância – ainda que não o rótulo de
«liberal» – que mereciam a minha lealdade.
Pode ler-se estas linhas e entendê-las,
até valorizá-las, como pode passar-se por experiências que confirmam a sua
veracidade. Cito O’Brien não como argumento de autoridade, pois tive grandes discussões
com ele ao longo dos anos, mas por ser um homem dotado de uma mente excepcional
que resumiu de forma brilhante as contradições em que eu tinha vivido, e com
que estava condenado a conviver ainda algum tempo.
Christopher
Hitchens
Tradução
de António Araújo
Imagino que na altura os então camarados do Hitchens andassem colados ao PRP-BR?
ResponderEliminarO estilo é francamente mau. As vistas para o porto da cidade e a não tortura dos toiros fazem-me duvidar que o senhor alguma vez cá tenha estado. Aos 26 anos, um obscuro jornalista anglo-americano com ficha na PIDE?! Qual era o tamanho do ficheiro da PIDE?
ResponderEliminarObrigada por mais um texto inolvidável.
ResponderEliminarMaria Teresa Mónica
Eu é que agradeço as suas palavras, Teresa! Se tiver sugestões, agradecia.
EliminarCom amizade,
António
PS - os textos de estrangeiros aqui publicados não são divulgados pela sua fidedignidade ou qualidade histórica, literária, etc. São apenas «ilustrações» do modo como nos foram vendo ao longo dos anos, nada mais...
"príncipe Henrique, o Navegador, nunca haja posto os pés num navio" - como esteve em Ceuta, provavelmente pôs.
ResponderEliminarSeria interessante comparar os índices de iliteracia e analfabetismo entre Portugal e Espanha em 1974 e os mesmos índices em 2016.
A distância da taxa de analfabetismo entre os dois países é a mesma.
Durante o chamado Estado Novo o analfabetismo diminuiu mais, ou, no máximo, ao mesmo rítmo que entre 1974 e 2016.
Em Cuba diminuiu ainda mais e depois?!Podemos tolerar uma ditadura desde que nos ensine a escrever e a ler?! É isso?
ResponderEliminarEm Cuba diminuiu muito mais.E depois? Devemos tolerar uma ditadura desde que nos ensine a ler e a escrever?É isso?
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