Durante o segundo exílio do
General Spínola no Brasil, encontrava-me eu aí a fazer pesquisas no campo da literatura
e a fazer conferências e a rever, descobrir e saborear as maravilhas desse
vastíssimo país lusófono.
Praticamente convencido de
que pouco mais lhe restava, na sua qualidade de oficial superior do exército
português, do que enfeitar o seu papel de primeiro presidente de Portugal,
depois da Revolução de 25 de Abril de 1974, e de resistente, após a tomada do
poder pelo Partido Comunista Português e pelos militares esquerdistas e
marxistas, o Genaral Spínola decidiu imprimir os discursos proferidos durante a
sua presidência e as conferências e entrevistas feitas e dadas após ter
abandonado a dita presidência, no dia 28 de Setembro de 1974.
Como durante os primeiros
meses desse segundo exílio, a sua sobrinha Maria Luísa Coelho, que o tinha
secretariado durante o seu curto mandato de Presidente da República Portuguesa,
após o golpe militar de 25 de Abril, não se encontrava disponível para o
secretariar, devido a outras ocupações, coube-me a mim desempenhar informal e
voluntariamente esse cargo. E a quem me perguntar por quê me prontifiquei a
fazer isso simplesmente responderei que, para além da amizade que me ligava a
ele e de acreditar na honestidade do General e no mérito da obra, também eu
estava sinceramente empenhado em dar o meu modesto contributo para o
restabelecimento da democracia em Portugal. Primeiro por saber, por experiência
própria, como cidadão e residente dos Estados Unidos da América, do valor e dos
encantos da democracia, em comparação com os horrores de um regime totalitário
e ditatorial; segundo, por ter presas, em cadeias portuguesas, com o nefando
estatuto de prisioneiros políticos, pessoas que me eram particularmente
queridas e a quem o regime então no poder em Portugal ameaçava executar, indo,
por mais de uma vez, alguns dos seus carcereiros, alta noite, abanar-lhes as
grades das celas e informá-las que no dia seguinte seriam levadas ao paredão e
fuziladas, juntamente com muitos outros dos prisioneiros políticos que com
essas pessoas sofreram as agruras despóticas e bárbaras do cárcere e foram
sujeitas injusta e arbitrariamente a esse tipo de tortura.
E foi essencialmente por
essas duas razões que eu decidi colaborar com o General Spínola, durante a
minha estadia no Brasil, na elaboração do livro que veio a sair a lume, em
Novembro de 1976, com o título de Ao Serviço de Portugal, título,
aliás, que eu sugeri, por nele se reflectir sobretudo a preocupação, por parte
do General, de envidar todos os seus esforços para fazer de Portugal um país
genuinamente democrático, onde todos os portugueses tivessem orgulho de viver.
Por essa altura, eu morava em
Copacabana, na rua Belfort Roxo, e o General Spínola morava no Leme,
separando-nos uma distância de uns dez minutos a pé, pouco mais ou menos.
Aí por volta das oito da
noite, depois da ceia, portanto, chegava eu ao apartamento do General Spínola e
tocava a campainha. Quem me abria a porta era a D. Maria Luisa, sobrinha do
General, como se referiu atrás. Ela a abrir-me a porta e o tio a dizer-lhe:
- Ó Luisinha, serve aí alguma
coisa ao Professor e diz-lhe que tenha a bondade de esperar um pouco, enquanto
eu acabo de ver a telenovela.
E enquanto a D. Maria Luisa e
eu tomávamos um café ou um chá e conversávamos, aquele homem austero, frugal
como um eremita e de uma formação espartana, a toda a prova, não permitia que
ninguém o perturbasse enquanto ele, deliciado e embevecido, assistia piamente à
telenovela brasileira.
Terminada a novela, deixava a
sala de estar e vinha ter connosco a pedir desculpa pelo atraso. E, o que era
mais, assumia o ar de alguém que tivesse estado a fazer alguma coisa menos
apropriada para uma pessoa como ele, ex-comandante e combatente dos matagais e
pauis da Guiné e ex-presidente da República Portuguesa. Mas, uma vez posto à
vontade, começava a dizer, com o fervor de um noviço e com a maior das
convicções, que os brasileiros podiam ter todos os defeitos deste mundo e do
outro – e, no sentir dele, tinham mesmo, a começar pela imoralidade,
emblematizada pelo semi-nudismo que reinava soberano na Praia de Copacabana,
onde ele dava o seu passeio (“footing”) diário (foi por essa altura que as
“garotas de Ipanema” deram estatuto de cidadania ao “topless” e ao “fio dental”),
e a acabar pela hipocrisia endémica –, mas que, em questão de telenovelas,
ninguém no mundo se lhes comparava. E perguntava-me se eu não estava de acordo.
E eu, que nem sequer tinha televisão no meu apartamento, a fim de melhor poder
concentrar-me nas minhas leituras e nas minhas pesquisas, não podia fazer outra
coisa senão manifestar-lhe a minha ignorância no assunto. Que tinha de
experimentar – exortava-me ele. Que essas telenovelas não só eram um bom meio
de entretenimento, mas também, e sobretudo, um excelente veículo de cultura.
Que, de uma maneira geral, se aprendia muito sobre a história, a cultura e a
vida brasileira, vendo as suas excelentes telenovelas.
E o austero homem do
monóculo, com o arroubo de um neo-convertido, fazia o mais rasgado elogio das
telenovelas brasileiras, a única coisa que valia a pena ver no Brasil –
acrescentava.
Dito o que, voltava ao seu
natural e convidava-me para o seu gabinete de trabalho, a fim de prosseguirmos
na escrita do “Intróito” para a sua colectânea de discursos, conferências,
entrevistas e improvisos sobre política, que um dia viria a sair a lume sob o
título de Ao Serviço de Portugal, como se referiu atrás.
Ditadas umas linhas para eu
escrever à máquina, linhas que ele tinha escrito anteriormente à mão, durante o
dia, parava e pedia-me que lhas lesse em voz alta. E eu lia e ele ouvia com a
maior atenção. Feito o quê, ele achava quase sempre que era preciso suprimir
esta palavra, mudar aquela ou acrescentar outra.
Uma vez satisfeito com as
alterações feitas, passávamos adiante, voltávamos a parar, fazia-se novamente a
leitura em voz alta, lutava-se por vezes minutos inteiros com um vocábulo, até
que se completava um parágrafo. E tal como se tinha feito com as frases que
constituíam o período, fazia-se então com todo o parágrafo.
E foi assim, lentamente,
meticulosamente, que ao fim de um número considerável de sessões se chegou ao
fim do “Intróito”. E o que se fez com o “Intróito” foi feito depois com os
discursos, as conferências, as entrevistas e os improvisos, aperfeiçoando e penteando,
com o maior cuidado, o que, na sua maior parte, já tinha sido impresso em jornais
ou em revistas.
Tendo acompanhado o General
durante todo o processo da escrita desse livro, pude confirmar aquilo que já
tinha observado por ocasião da sua estadia nos Estados Unidos, em missão meio
pública, meio secreta, com um passaporte especial: o cuidado e a meticulosidade
que ele punha em todas as palavras que escrevia e que pronunciava. Nunca vi
ninguém que pusesse mais empenho no mínimo pormenor, desde a escolha da matéria
até à organização do discurso; desde a preocupação com a gramática e a sintaxe
até ao esmero com a pontuação.
Como a pontuação, nalgum dos
seus aspectos, é um fenómeno puramente subjectivo, mais de uma vez vi o General
a recusar as minhas sugestões, nesse capítulo. E uma vez em que eu argumentei
com mais vigor a favor da colocação de determinado sinal de pontuação, tive que
ouvir o General Spínola dizer-me que ele, como Oficial de Cavalaria, tinha sido
director da revista dessa especialidade.
Foi por ter observado esse
fenómeno, como testemunha ocular, que por mais de uma vez tive que desmentir
veementemente os que diziam que quem tinha escrito o livro Portugal e o Futuro
havia sido o ex-Governador do ex-Estado de Guanabara, Carlos Lacerda.
Que fique porém bem claro que
esse labor lento e meticuloso na feitura desse livro nunca impediu que o
General Spínola assistisse diariamente, devocionalmente, à telenovela
brasileira da noite, como se se tratasse de um autêntico ritual.
António Cirurgião
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