Boxe, Hóquei no Gelo e Touradas
Acompanhei nos noticiários de ontem e de hoje (10 e 11 de
Março de 2004) o caso do jogador de hóquei no gelo, Tod Bertuzzi, do Clube
Canucks de Vancouver, Canadá, que, no decorrer do jogo, realizado no dia 8 de
Março, atacou feroz e maligamente Steve Moore, do Clube Avalanche de Denver,
Colorado, e lhe fracturou três vértebras do pescoço e lhe pôs o rosto numa
pasta de sangue. Retirado do ringue em maca, sem sentidos, Steve Moore ficou
para sempre impossibilitado de prosseguir a sua carreira de jogador de hóquei.
Literalmente
apaixonado pelo hóquei no gelo, durante alguns anos, no tempo em que os Whalers
tinham como sede a cidade de Hartford, capital do meu estado, Connecticut,
deixei de acompanhar o hóquei no gelo pela televisão, pela rádio e pela
imprensa, a partir do momento em que os Whalers, sob nome diferente –
Huracanes, se bem me lembro –, foram transferidos para Charlotte, no estado de
Carolina do Norte. E perante o que acaba de acontecer, no fatídico e sangrento
jogo de 8 de Março entre os Canucks de Vancouver e os Avalanche de Denver,
prometo-me a mim mesmo continuar a ignorar para sempre o hóquei no gelo, seja
por que meio for.
O que fiz para com o hóquei no gelo já o tinha feito para
com dois desportos inumanos e extremamente violentos: as touradas, tanto à
portuguesa como à espanhola, e o boxe.
Pelo que se refere às touradas, costumo contar aos meus
amigos, e contei-o muitas vezes aos meus alunos, que durante o ano em que fui
professor – que foi aquele em que me estreei nessa profissão de toda a minha
vida – na Escola Profissional de Santa Clara, em Vila do Conde, no ano lectivo
de 1954-55, participei em todas as touradas dessa temporada na Praça de Touros
da Póvoa de Varzim, como contra-mestre de banda dessa Escola Profissional. Costumo
contar também que na primeira tourada a que aí assisti, como regente da banda,
vi matar um toureiro. Tratava-se de um jovem de 18 anos que se estreava nesse
fatídico dia como toureiro profissional. Colhido pelo touro na primeira parte
da tourada, foi retirado em braços da arena. Quando se esperava que não
voltasse para a segunda parte, ei-lo de regresso à arena, a tourear o primeiro
touro. Para mostrar a sua valentia, ajoelhou-se diante do touro e proferiu,
alto e bom som, estas palavras textuais: “Sou jovem; tenho 18 anos; mata-me se
quiseres.”
E ignorando os gritos implorativos da assistência, que
lhe pedia por tudo, em uníssono, que se levantasse, que todos sabiam que ele
era destemido e corajoso, ele continua de joelhos, a desafiar o touro. E o
touro fez-lhe a vontade. Correu para ele, possesso de cega fúria taurina,
colheu-o pela cintura e lançou-o violentamente ao ar. Prostrado no solo, o
touro corneou-o e pisou-o sem dó nem piedade, de nada lhe tendo valido a ajuda
que os outros toureiros procuraram prestar-lhe. Resultado: o jovem matador foi
retirado da arena, em maca, já morto.
Era essa a primeira tourada a que eu assistia. Mas não
foi a última. Quando, após sete anos de residência nos Estados Unidos, passei a
ir a Portugal com regularidade, a partir do Verão de 1969, fazia questão de
assistir pelo menos a uma tourada, sempre na Praça de Touros do Campo Pequeno,
em Lisboa, quando essas estadias coincidiam com a temporada das touradas.
Chegou o dia em que me pareceu que o meu filho, o
Anthony, já tinha atingido maturidade suficiente para ser iniciado numa das
tradições culturais do país de origem de seus pais. E, sendo assim, na noite do
dia 11 de Agosto de 1983 levei-o comigo para assistir a uma tourada na Praça de
Touros do Campo Pequeno.
Ora sucedeu que, precisamente nessa tourada, um dos cavaleiros,
José Varela Crujo, foi colhido pelo touro pelas espáduas e lançado violentamente
ao solo. Sem sentidos, foi retirado em maca da arena. Levado imediatamente para
o hospital em estado de coma, aí permaneceu nesse estado, durante longos quatro
anos e quatro meses, vindo a falecer no dia de Natal de 1987. Às perguntas
insistentes do Anthony, nos dias seguintes – se o toureiro tinha ficado bom –
eu dizia-lhe que estava a melhorar. Só anos mais tarde lhe vim a dizer a
verdade. Entretanto, a partir dessa fatídica tourada, eu jurei nunca mais
voltar a entrar numa praça de touros, e orgulhosamente confesso que nunca
quebrei essa promessa, e solenemente declaro que nunca virei a quebrá-la.
Pelo que se refere ao boxe, várias foram as vezes que a
ele assisti pela televisão, mas uma só vez pessoalmente. Foi em 1967. Estava eu
como professor de Latim, Espanhol e Francês na Universidade da Nevada, em Reno.
Tomo conhecimento, pela imprensa, pela rádio e pela televisão, que vai haver
uma luta de boxe entre um luso-americano da Califórnia, a quem chamavam
“Portugal´s Golden Boy”, e um jovem americano muito prometedor, cujo nome não
recordo (o que sim recordo é que, segundo os meios de comunicação social, o
“Rapaz de Ouro de Portugal” contava por vitórias – umas 27 – as lutas de boxe
em que tinha participado).
Como nesse tempo eu escrevia, de longe em longe, umas
vagas crónicas e as mandava para o Director da ANI (Agência Nacional de
Informação), chamado Dutra Faria, que ele depois publicava na imprensa
portuguesa, melhor dito, na imprensa do mundo português, desde Braga a Macau,
passando pelas províncias ultramarinas portuguesas da África, do Atlântico e do
Oriente, vi nesse desafio de boxe uma oportunidade única de poder vir a
deliciar os leitores portugueses, meus velhos patrícios, com as proezas épicas
de um luso-americano em terras da América. Para melhor preparação, durante a
manhã do dia da luta de boxe, dirigi-me ao hotel em que estava hospedado o dito
“Portugal´s Golden Boy”, cujo nome não recordo, e falei com ele e com a esposa durante
uns trinta minutos.
Chega a hora do desafio, e eis-me de caneta e bloco em
punho, sentado junto da jovem esposa do boxeador, no coliseu principal de Reno,
à espera de assistir, como jornalista amador, a mais uma vitória retumbante do
“Rapaz de Ouro de Portugal.” Coliseu cheio. Grande expectativa. O árbitro dá
sinal para o primeiro “round”. E que acontece? Em menos de um minuto, o “Rapaz
de Ouro de Portugal” leva um valente soco nos rins e cai redondo no soalho,
contorcendo-se com dores. O árbitro fez a contagem e os gestos da praxe e o
“Rapaz de Ouro de Portugal”, estatelado no chão, em postura fetal, nem sequer
se mexeu. Precisou de ajuda para se levantar. Fora derrotado no primeiro
“round”. A esposa pôs a cabeça entre as mãos e começou a soluçar baixinho. O
Cirurgião, confuso, triste e envergonhado, sem história triunfal para contar
aos seus patrícios distantes D’Aquém e D’Além Mar, abandonou cabisbaixo o
coliseu e jurou nunca mais na vida voltar a assistir pessoalmente a uma luta de
boxe, nem acompanhá-la pela rádio nem pela televisão. E a verdade é que sempre
tem sido fiel a essa promessa e sempre continuará a sê-lo. E outrossim declara
que esta é a primeira vez que relata, por escrito, estes três episódios de
nefasta memória.
António Cirurgião
PS.
Entrada do meu Diário: Manchester, 11
de Março de 2004, 21h e 20m
Belíssima crónica. Obrigado.
ResponderEliminarBelíssima crónica. Obrigado.
ResponderEliminarAn interesting view of risky sports. Unfortunately the public apetite for these is strong. Jim Platts
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