35.
«an
almost perfect piece of art that has also been enjoyed by people of all lands»
− esta apreciação de A Grande Onda,
seguramente banal, foi proferida por um dos mais prolíficos e populares
escritores norte-americanos do século XX, James Albert Michener
(1907-1997), autor de dezenas de best-sellers
que, geralmente sob a forma de sagas familiares, contam, ao longo de várias
gerações, a história de lugares tão diversos como o Texas, o Alasca, o Afeganistão,
as Caraíbas, a África do Sul, o México, a Polónia ou o Havai.
Aquela
frase de Michener foi escrita num breve artigo intitulado «The Magic Hand of
Hokusai», que a revista Reader’s Digest publicou
na sua edição de Junho de 1959 (vol. 74, pp. 236-240; uma selecção de 25 textos
de Michener na Reader’s Digest
foi reunida Ben Hibbs (ed.), A Michener Miscellany, 1950-1970,
Random House, 1973); nesse artigo, o escritor norte-americano apelidava Hokusai
«one of the most famous and popular artists in Japan and one of the last and
most giftet practicioners of the art called ukiyo-e».
O
texto saído na Reader’s Digest correspondia
à súmula de um livro que o escritor publicara anos antes, em 1954, com o título
The Floating World (reed. com
comentário de Howard A. Link, The University of Hawai‘i Press, 1984), o qual,
como o nome indica, se ocupa das gravuras japonesas do «mundo flutuante» (ukiyo-e).
De acordo com Christine Guth,
professora no Royal College of Art e no Victoria and Albert Museum, e autora de
Hokusai’s Great Wave. Biography of a global icon
(Honolulu, University of Hawai‘i Press, 2015), o livro The Floating World, de James Michener, reimpresso mais de dez
vezes, foi «arguably the single most influential American publication on
Japanese prints» (ob. cit., p. 103; sobre o papel de Michener na difusão de uma certa ideia de Oriente, cf. a exposição desenvolvida de Christina Klein, Cold War Orientalism. Asia in the Middlebrow Imagination, 1945-1961, Berkeley, University of California Press, 2003, pp. 117ss, e bibliografia citada).
Se
a isso juntarmos o número de assinantes e leitores da Reader’s Digest em todo o mundo (no início dos anos 1960, a revista
vendia cerca de 23 milhões de exemplares, sendo editada em 40 países, aqui),
concluiremos, sem receio de exagero, que James A. Michener terá sido um dos
principias, se não o principal, divulgador da obra de Katsushika Hokusai no
pós-2ª Guerra Mundial, dando um contributo decisivo para a popularidade que
actualmente têm os trabalhos do mestre japonês, muito especialmente A Grande Onda.
James A. Michener (1907-1997)
|
Michener
retomará o tema em textos subsequentes: na introdução ao livro de Oliver Statler (1915-2002)
Modern Japanese Prints: An Art Reborn,
de 1956; em The Hokusai Sketchbooks: Selections from the Manga
(1958); em Japanese Prints: From the Early Masters to the Modern (1959) e, por fim, em The Modern Japanese Print: An Appreciation
(1968; a edição original de 1962 teve uma tiragem limitada de 475 exemplares).
O
interesse do escritor pela Ásia – e pelo Pacífico, em especial – remonta aos
alvores da sua carreira literária, após ter cumprido serviço militar na zona do
Pacífico Sul durante a 2ª Guerra, sendo-lhe atribuídas várias missões por
engano, porquanto os seus superiores hierárquicos julgavam que James A.
Michener, integrado na Marinha dos Estados Unidos, era filho do almirante Marc Andrew «Pete» Mitscher (1887-1947),
que pela mesma altura comandava uma força naval naquela região. Na realidade,
James Michener, segundo o próprio, nunca conheceu os seus verdadeiros pais (nem
sequer a data e o local de nascimento), tendo sido criado em Bucks County, na
Pensilvânia, por uma mãe adoptiva, Mabel Michener.
Antes
sequer do ataque a Pearl Harbour, ocorrido em Dezembro de 1941, Michener estava
convicto de que a guerra era inevitável e foi um decidido defensor da entrada
dos Estados Unidos no conflito, publicando um texto inflamado em que enumerava
as razões pelas quais os seus compatriotas deveriam apoiar o país em armas (cf.
Marilyn S. Severson, James A. Michener. A
Critical Companion, Westport, Conn.-Londres, Greenwood Press, 1986, p. 54;
cf. tb. John Phillip Hayes, James
Michener. A Biography, Indianápolis, Bobbs Merrill, 1985; Steven J. May e
Valerie Hemingway, Michener: A Writers Journey,
Norman, Oklahoma, University of Oklahoma Press, 2005).
Nas
suas memórias, Michener referiu que, como quaker,
estava isento do serviço militar mas recusou-se a usar a religião para se
furtar à guerra: «como professor de História sabia que Hitler e o Japão eram
uma ameaça terrível para a civilização mundial», escreveu em The World is My Home. A Memoir (Nova
Iorque, Random House, 1992, p. 6). A experiência de guerra levá-lo-ia a
escrever o seu primeiro livro, Tales of the South Pacific
(Nova Iorque, Macmillan, 1947), galardoado
com o Prémio Pulitzer de Ficção em 1948, sendo adaptado a um musical da
Broadway no ano seguinte e ao cinema em 1958 (em 2001, foi também realizado um
telefilme a partir de Tales of the South
Pacific e antes disso, em 1992, com base naquele musical da Broadway,
Michener publicaria o breve livro South Pacific).
A
partir daí, e apesar de tardia, iniciou-se uma carreira de enorme sucesso,
calculando-se que os seus romances tenham vendido cerca de 75 milhões de
exemplares em todo o mundo, facto que, apesar disso, não demoveria muitos
críticos da sua obra, que sempre a consideraram demasiado «fácil» e «comercial»,
destinada a um público massificado, pouco culto e exigente.
Alguns
dos seus livros têm o Oriente como cenário, de que são exemplos The Bridges of Toko-Ri, de 1953,
passado na Guerra da Coreia (e adaptado ao cinema por Mark Robson em 1954, com
Grace Kelly e William Holden nos principais papéis); Return to Paradise (Random House, 1951) ou Sayonara (Random
House, 1954; também com adaptação cinematográfica de 1957, realizada por Joshua
Logan e com Marlon Brando como protagonista)
Sayonara,
com o expressivo subtítulo «A Japanese-American Love Story», é uma novela com
um forte cunho autobiográfico, pois narra a história de um oficial estacionado
no País do Sol Nascente que se apaixona por uma japonesa, debruçando-se, em
termos considerado pioneiros, sobre os conflitos étnicos ou raciais que daí
resultam (cf. Marilyn S. Severson, ob.
cit., pp. 24ss). Por essa altura, Michener conhecera Mari Yoriko Sabusawa
(1920-1994), uma mulher de ascendência japonesa
que, apesar de ter a cidadania norte-americana e de nunca ter visitado o Japão,
fora detida com os seus pais num dos vários campos de internamento que o
governo dos Estados Unidos estabeleceu na 2ª Guerra para acolher
preventivamente famílias de etnia nipónica que vivessem na Costa Oeste do país.
James
Michener divorciou-se da sua segunda mulher e casou com Mari Sabusawa em
Outubro de 1955. A sua nova (e última) mulher – que após concluir o liceu
trabalhara para os serviços de informações dos Estados Unidos, traduzindo
propaganda de guerra japonesa, e mais tarde foi editora do boletim da American
Library Association – acompanhou Michener quando este se envolveu activamente
na Revolução Húngara de 1956, tendo o casal acolhido na sua casa de Viena
diversos refugiados do regime pró-soviético instituído em Budapeste,
experiência que o escritor utilizaria na novela The Bridge at Andau,
de 1957.
Ligado ao Partido Democrata, pelo qual, com a oposição da mulher, teve uma efémera e mal sucedida carreira política (em 1962 candidatou-se, sem sucesso, à Câmara dos Representantes pela Pensilvânia, nas listas daquele partido), Michener sempre teve um vivo repúdio, típico da Guerra Fria, pelos regimes comunistas da Europa de Leste, sobre os quais escreveria livros de viagens (Pilgrimage: a Memoir of Poland and Rome, 1990) mas também romances de grande êxito, com destaque para Poland, de 1983, na altura proibido pelas autoridades polacas. A aversão era recíproca: em 1968, Michener não pôde dar uma conferência na Universidade de Caracas devido a ameaças de morte de grupos de estudantes comunistas, o que não impediria o FBI de Edgar Hoover de acumular um extenso dossier sobre as supostas actividades comunistas do escritor, como este refere nas suas memórias (ob. cit. p. 183). Sem ser, de modo algum comunista, Michener não hesitaria em criticar o sistema político norte-americano, designadamente o método de eleição do Presidente dos Estados Unidos, Presidential Lottery: The Reckless Game in Our Electoral System, de 1969, alvo de reedições em 2014 e em 2016 (Michener contaria a sua experiência como «grande eleitor» de Kennedy em Report of the County Chairman). E em Kent State: What Happened and Why, de 1971, debruçou-se sobre o tristemente célebre massacre ocorrido em Maio do ano anterior na Kent University, em Ohio. Nunca enveredou, porém, pelo antiamericanismo e, ao invés, foi até ao fim da vida um defensor das virtudes e valores de uma certa «americanidade» liberal-conservadora, presente nas suas obras de ficção como Chesapeake Bay ou Space ou em livros como This Noble Land. My Vision of America, publicado um ano antes de morrer, e onde analisa questões como o racismo, o consumismo e o machismo, os sistemas educativos e de saúde, a crise da família, a distribuição de riqueza ou o papel da arte nas sociedade.
A
proximidade de Michener ao Extremo-Oriente ficou patente em obras como The Voice of Asia
(1951), resenha de crónicas de viagens
pelo Japão, Coreia, Hong Kong, Singapura, Paquistão, Índia, Tailândia, etc. Ao
Pacífico Sul dedicaria o livro Rascals in Paradise: True Tales of High Adventure in the South Pacific
(1957), redigido em co-autoria com o
professor da Universidade do Havai Arthur Grove Day (1904-1994).
Em
1959, ano em que publica o texto sobre Hokusai nas páginas da Reader’s Digest, James A. Michener dá à
estampa Hawaii,
livro vindo a lume exactamente na mesma altura em que aquele território se
tornava o 50º Estado da Federação norte-americana. Na investigação para essa
obra (Michener era um pesquisador laborioso para os seus livros) e durante a
sua escrita, o autor e a sua mulher, Mari, viveram no Havai uma larga temporada
e daí surgiu a ligação à Academia de Honolulu. O interesse pelas gravuras do
período Edo era, contudo, muito anterior e, segundo diz Michener nas suas
memórias, surgiu por uma casualidade, em data que não especifica, quando viu a
reprodução de uma bela paisagem nas páginas de uma revista, que julgou ser de
um autor chinês, tendo anotado o nome do artista, Hiroshige. «That introduction
started me on the way to meet some of the most congenial artist in world
history, a collection of men who in the eigheenth and the nineteenth centuries
would produce a wealth of rather small woodblock prints that have never been
excelled or even equaled: Masanobu, Harunobu, Kiyonaga, Utamaro, Sharaku, Hokusai
in more or les chronological order.» Acrescenta, com orgulho e exagero de
coleccionador: «I become such a devotee that I would in time own one of the
major private collections of their art, some six thousand prime examples.» (ob. cit. p. 111).
O gosto pela arte japonesa terá sido
influenciado pela sua mulher ou, pelo menos, partilhado com ela, devendo
recordar-se que Mari Yoriko Sabusawa sempre manteve uma forte consciência das
suas raízes nipónicas, tendo sido uma influente activista a favor dos
casamentos mistos entre americanos e japoneses, na década de 1950.
O
casal sempre se notabilizou pelas suas actividades filantrópicas, graças às
quais alguns museus podem hoje existir ou exibir colecções de grande interessem
(sobre a filantropia de Michener, cf. Marilyn S. Severson, ob. cit., pp. 14-15). Ao falecer de cancro em Austin, no Texas, em
Setembro de 1994, Mari Sabusawa legou cinco milhões de dólares para a
construção do Blanton Museum of Art (https://blantonmuseum.org/), enriquecido com
várias obras de arte que os Michener coleccionaram ao longo da vida. James, por
sua vez, doou cerca de 37 milhões de dólares à Universidade do Texas, sendo o
maior benfeitor individual daquela instituição, a par de outras que receberam o
seu apoio, incluindo o James A. Michener Art Museum (https://www.michenerartmuseum.org/),
em Doylestown, na Pensilvânia, onde existe o Nakashima Reading Room, criado em
memória da sua mulher.
A
Honolulu Academy of Arts (https://honolulumuseum.org/), no Havai, fundada em 1922
por Anna Rice Cooke, tem um
exemplar de A Grande Onda (descrição aqui)graças à
doação feita por James Michener e pela sua mulher, que legaram àquela
instituição a maioria das 5.400 gravuras do «mundo flutuante» (muitas delas da
autoria de Hokusai e de Hiroshige) que Michener adquiriu em conjunto em 1957, no
leilão da colecção de Charles H. Chandler, reunida no início do século XX. De
acordo com o site da Honolulu Academy
of Arts, a colecção de 10.000 xilogravuras, metade das quais foram doadas por
James Michener e Mari Sabusawa, é a «jóia da coroa» (sic) do acervo de arte japonesa daquele museu. A colecção de
Michener começou quando, na sequência da publicação de The Floating World, em 1954, Georgia Forman, uma coleccionadora de
Buffalo, Nobva Iorque, que o escritor não via há 25 anos, lhe ofereceu um
«selecção» de gravuras do «mundo flutuante»; em 1957, como se disse, Michener
comprou as 4.533 gravuras da colecção de Charles H. Chandler, umas das mais
importantes dos Estados Unidos, de o escritor que fez um empréstimo de longa
duração à Honolulu Academy of Arts ainda nos finais da década de 1950. Em 1970,
o director daquele museu, James W. Foster, criou o Ukiyo-e Center e em 1988
James Michener doou a esse centro uma apreciável quantidade de gravuras,
complementando a doação em 1991, num total de 5.400 peças do «mundo flutuante»
Charles
H. Chandler é considerado, juntamente com Clarence Buckingham, Frederick W.
Gookin, J. Clarence Webster, Charles J. Morse e Frank Lloyd Wright, um dos
pioneiros no coleccionismo de ukiyo-e
nos Estados Unidos, ponto salientado desde há muito (cf. este texto de Julia
Meec-Pekarik, sobre o coleccionismo de Wright,
com referência a Chandler). Foi, aliás, o próprio James Michener que o notou,
ao escrever o prefácio para o catálogo da exposição de gravuras japonesas
levada a cabo em Março-Abril de 1955 no The Art Institute of Chicago (cf. James
A. Michener, «Foreword», Japanese Prints,
The Art Institute of Chicago, 1955, s./p., disponível aqui).
Nesse
breve texto, Michener evidencia um conhecimento preciso do modo como as
gravuras do ukiyo-e foram sendo
conhecidas no Ocidente, destacando a Exposição Universal de Paris de 1867, as
exposições que tiveram lugar em 1888 no Burlington Fine Arts Club de Londres e,
no ano seguinte, no Grolier Club de Nova Iorque. O autor de Sayonara realça, acima de tudo, as
mostras patentes em Paris de 1909 a 1940 e a exposição da obra de Sharaku que se
realizou em Nova Iorque, no Museum of Modern Art, de 3 de Abril a 1 de Maio de 1940
(aqui).
A
exposição leva a cabo no The Art Institute of Chicago de 10 de Março a 17 de
Abril de 1955, onde foram exibidas 350 peças dos mestres da xilogravura
japonesa, constituía, segundo Michener, o corolário daquele movimento, que a
guerra interrompera; mas, ao ter lugar naquela cidade, era também uma homenagem
ao que Michener apelida «The Chicago Graze», a febre de um grupo de
coleccionadores cujos nomes atrás de citaram e onde se inclua Charles H.
Chandler, cuja colecção James Michener irá adquirir en masse. Entre as obras exibidas, e com o nº 302, «Mount Fuji Seen
from the Hollow of the Deep Sea Wave off Kanagawa».
A
exposição de Chicago tem lugar dez anos após o fim da 2ª Guerra Mundial, em que
a campanha no Pacífico teve um papel muito importante na familiarização de
milhares de soldados com a cultura oriental e, em particular, com a cultura
japonesa, sendo uma das causas da difusão, em larga escala, das imagens do
«mundo flutuante» na América do pós-guerra. James Michener é, aliás, um bom
exemplo disso, o mesmo sucedendo com Oliver Statler, de que adiante se falará.
Christine
Guth assinala que a ocupação americana do Japão, de 1945 a 1951, com a passagem
por esse país de mais de 500 mil militares e civis norte-americanos, fez
crescer exponencialmente a compra de xilogravuras do «mundo flutuante» por
cidadãos comuns, que assim adquiriam, até como recordação de viagem ou souvenir exótico, uma forma de arte
«fácil», quer em termos estéticos, quer em termos «logísticos», do ponto de
vista de transporte das peças para os Estados Unidos. Um comerciante de arte
japonês, Watanabe Shōzaburō, intuiu essa ímpar oportunidade de negócio e
colocou centenas ou mesmo milhares de gravuras nos postos de correio, onde eram
comprados por indivíduos que jamais pensariam ir a uma galeria de arte.
Era notória a evolução verificada
relativamente aos tempos de guerra, em que, como observa Christine Guth (ob. cit., p. 109), as xilogravuras
japonesas eram usadas para ilustrar artigos sobre o belicismo nipónico, como
aconteceu com um artigo saído nas páginas da Life em Novembro de 1943 e intitulado «The 47 Rōnin», no qual «onze
gravuras de Hokusai do Museu de Boston» acompanhavam um texto sobre uma famosa
peça de teatro kabuki e os códigos de honra dos samurais que, a propósito do
comportamento dos japoneses na guerra, referia: «Their militar behavior in this
war has revealed a cold-blooded ruthlessness not only towards their enemy but
also towards themselves, that has schocked us.»
Não
muito depois de ter escrito o texto introdutório do catálogo da exposição de
Chicago, James Michener regressará ao tema das xilogravuras japonesas ao
redigir, como atrás se disse, um prefácio para Modern Japanese Prints: An Art Reborn, livro de 1956, da autoria de
Oliver Hadley Statler (1915-2002), cujo percurso biográfico corresponde precisamente aos
daqueles que ficaram marcados pelo Japão devido à experiência de guerra. Nascido
no Illinois em 1915, licenciado pela Universidade de Chicago, Statler serviu na
frente do Pacífico, sendo colocado na Nova Guiné e nas Filipinas. Quando a
guerra acabou, já se encontrava na América e tentou regressar à sua unidade e
ser transferido para o Japão, pedido que seria negado, o que o levou a
abandonar o exército e ingressar na função pública, sendo nessa qualidade que
chegou a Yokohama em Abril de 1947. Permaneceu no Japão até Dezembro de 1954,
onde viveu em Yokohama e Tóquio, exercendo funções como «budget and fiscal
administrator». Com o fim da presença dos Estados Unidos no Japão, e com o
término das suas funções, Statler permaneceu no país durante mais quatro anos,
fazendo investigação e escrevendo. Sobre o seu interesse pelas xilogravuras japonesas
e a amizade com Michener, dirá: «Early in my stay I saw a small exhibition of
contemporary Japanese prints, mostly woodblocks. I fell in love with them, came
to know many of the artists, and began a collection which now numbers well over
a thousand prints and is at the Art Institute of Chicago. My interest in these
then quite unknown prints brought an invitation to read a paper on them before
the Asiatic Society of Japan in Tokyo in February 1955. Our mutual love of
Japanese prints had led to a lasting friendship with James A. Michener.
Michener recommended to Charles Tuttle that my paper be expanded into a book
and the result was my first book, Modern Japanese Prints: An Art Reborn.»
Dois
anos depois da publicação do livro de Statler, Michener dará à estampa The Hokusai Sketchbooks: Selections from the
Manga (1958) e, logo a seguir, Japanese
Prints: From the Early Masters to the Modern (1959). Em 1962, sairá, em
tiragem limitada, The Modern Japanese
Print: An Appreciation, reeditado em 1968.
Se
é legítimo, do ponto de vista literário, menosprezar a qualidade da obra
ficcional de James Michener, a sua importância como difusor da arte japonesa
das xilogravuras dificilmente será sobrevalorizada. Mesmo que tenha actuado
sobretudo como um divulgador, Michener, que nas suas memórias se classificou
neste domínio como um «fourth-rate expert», revelava um conhecimento atento do ukiyo-e e a minúcia típica dos
coleccionadores (ainda que, como se viu, a sua colecção tenha sido construída
num ápice, de uma só vez, ao comprar a totalidade ou quase totalidade do acervo
que Chandler constituíra décadas antes). Importa ter presente que, na época em
que Michener escreveu – e até anos depois –, grandes divulgadores de arte
continuavam a centrar as suas atenções no legado artístico do Ocidente. No extremamente
popular Civilisation. A Personal View,
de 1968, e na série televisiva da BBC com o mesmo nome, emitida no ano
seguinte, Kenneth Clark (1903-1983)
não aborda a arte oriental nem dedica uma linha a Katsushika Hokusai, o mesmo
acontecendo – e essa lacuna será, porventura, mais grave – num outro livro da
sua autoria, Landscape in Art,
publicado pela primeira vez em 1949 e traduzido entre nós como A Paisagem na Arte (Editora Ulisseia,
s.d.).
Mesmo
sendo dos primeiros grandes coleccionadores do pós-guerra («we begin to collect
some six thousand of the finest prints in the low-priced days before the rest
of the world beagn to prize them», escreve nas suas memórias), James Michener
não foi, obviamente, o único a interessar-se e a escrever sobre xilogravuras japonesas
naquela época. Ainda assim, estava ciente do contributo que deu para a difusão
desta arte e para os elevados preços que as obras do ukiyo-e iriam alcançar: «The essays I had written about Japanese
prints had helped spur such a tremendous interest in them that single prints
for which we had paid perhaps five hundred dollars were now selling to Japanese
businessmen, who were coming late into the market in an effort to recover
national treasures, for two hundred thousand, while a complete set of some
famous series by either Hokusai or Hiroshige might go for a million», lê-se em The World is My Home.
No
entanto, e a par da vertente de vulgarização que já se mencionou, o autor de The Floating World teve um papel
importante ao questionar, pelo menos implicitamente, uma visão «ocidentalista»
muito marcada nas abordagens clássicas da obra de Hokusai, com realce para a
empreendida por Edmond de Goncourt na pioneira monografia que dedicou ao mestre
japonês. Numa penetrante análise do japonisme
de Goncourt, «Compare and Contrast: Rethorical Strategies in Edmond de Goncourt’s Japonisme»,
Pamela Warner sustenta, com copiosos exemplos, que uma das principais, talvez
mesmo a principal, estratégia discursiva de Goncourt na aproximação à arte
japonesa – e ao trabalho de Hokusai, em particular – passava pela busca de
semelhanças com obras ou artistas ocidentais, procurando-se paralelismos à outrance, e considerando-se, contra um
suposto academismo reinante, que a «grande arte», seja no Ocidente, seja a
Oriente, se encontrava injustamente esquecida ou era lamentavelmente
injustiçada. É, aliás, com esse lamento que Goncourt começa a sua monografia de
Hokusai, dizendo, nas primeiras linhas, que era cometida, nos «dois
hemisférios» (sic), a mesma injustiça
para com os «talento independente do passado», numa alusão ao século XVIII que
era, para Edmond e Jules, a «idade de ouro» devastada pela Revolução. Daí que
fossem frequentes as comparações ou metáforas, dizendo-se que os nus de Hokusai
«tinham algo de Mantegna», que as mães de Utamaro evocavam as madonnas renascentistas, que a «força» e
o «poder» dos falos na arte erótica japonesa «igualavam» o desenho de uma mão
feito por Miguel Ângelo e existente no Museu do Louvre.
Não
pretendendo desenvolver uma aproximação académica, em Japanese Prints: From the Early Masters to the Modern James
Michener atribui a Richard Lane o encargo de redigir as notas descritivas de
cada gravura. Ainda assim, Michener tem a intuição de esclarecer que, tal como
as via, as obras do ukiyo-e têm uma
identidade própria e singular, incomparável à arte produzida no Ocidente, num
esforço de ruptura com a visão eurocêntrica que dominava a leitura de Goncourt
e de outros na sua esteira. Para esse confronto com o «ocidentalismo», Michener
poderá ter sido influenciado pela mulher ou, melhor dizendo, pela experiência
de uma relação sentimental e matrimonial com uma mulher de ascendência
japonesa, para a qual essa identidade ancestral era, para mais, muito vincada.
Ou, então, a perspectiva de Michener, pretendia tão-só afirmar o óbvio, sendo
de notar que também ele não se exime de, por vezes, resvalar num registo
próximo do de Edmond de Goncourt, ao dizer, por exemplo, que um díptico de
Kiyonaga «has a Vermeer quality» (p. 175), devendo também assinalar-se que
algumas das suas apreciações padecem de um certo simplismo (v.g., ao caracterizar a visão da Natureza
de Hokusai como «épica», por oposição à de Hiroshige, «lírica» − p. 176).
Atente-se, em todo o caso, no seguinte trecho: «The more one studies ukiyo-e
landscapes, the more he becomes convinced that these Japanese works must not be
compared to those created in the West. Hokusai and Hiroshige did not see nature
in the way that Lorraine, Turner, Constable, and Cezanne saw it. The Japanese
artists entetainedv a special vision, and from it built a major contribution to
world art. It derives from Chinese and Japanese antecedentes and cannot be
confused with any other That was one of the reasons why ukiyo-e landscapes were
able to speak so strongly to men like Van Gogh, Degas, and Manet; their shock
value was undiminished, and remains so today.» (p. 176).
Portugal está presente, ainda que de
forma fugaz e discreta, na obra de James Albert Michener, mesmo que de um modo
que não é obviamente comparável ao de Espanha, país a que o escritor dedicou um
extenso relato de viagens, Iberia. Spanish Travels and Reflections (Random House, 1968), a par de livros como
Miracle in Seville,
de 1995, e The Drifters
(Random House, 1971). Traduzida entre nós com o título Filhos de Torremolinos (Publicações Europa-América, 1973), a acção desta
novela desenrola-se parcialmente no Algarve, com passagens em Alte e Albufeira
(ver aqui;
cf. tb. Marilyn S. Severson, ob. cit.,
pp. 26ss).
Em
Iberia, a sua viagem pela Espanha
franquista, de que existe tradução brasileira feita em 1968 pela Editora
Record, mas não portuguesa, Michener afirma, a dado trecho, que poderia, ou
deveria, ter escrito um capítulo sobre o nosso país. «Nos anos em que visitei
Espanha nunca perdi a oportunidade de ir até Portugal», diz, acrescentando que
uma das mais repousantes férias da sua vida foi passada em Sintra, onde ele e
um grupo de amigos decidiram alugar uma quinta durante um mais de um mês.
Fazendo longas caminhadas pela Serra de Sintra, Michener evocou Byron,
naturalmente, e o seu anfitrião inglês era um conhecedor profundo da obra do
poeta morto em Missolonghi.
Michener
mostra-se surpreendido pelo número inusitado de ingleses que escolhiam Portugal
como destino, e o seu interlocutor britânico pede-lhe para não revelar o
segredo deste país nos Estados Unidos, apavorado com a perspectiva de Sintra ou
de outros tesouros escondidos serem devassados por hordas de turistas
norte-americanos. «It was Europe’s most economical retirement spot; it had the
best servants, the best wine, some of the best food, and a host of small
localities from Porto in the north to Faro in the south to which an educated
Englishman could retire in dignity», lê-se em Iberia.
Ainda
que reconheça que a sua paixão por Espanha era superior, Michener considerou,
após ter visitado algumas vezes Portugal, em duas ocasiões em estadas
prolongadas (mas não referidas nas suas memórias), que tinham razão os que lhe
diziam ser o nosso país mais limpo e mais organizado, acrescentando, todavia,
que lhe faltava a cultura de Velázquez, de Victoria, de García Lorca, de Santa
Teresa ou de Séneca. «The genius of the Iberian peninsula seemed to have
resided principally in the more easterly regions, and it was for this reason
that I have preferred Spain.» Não era essa, contudo, a opinião da mulher:
«you’re being silly and unfair», afirmou Mari Subosawa, dizendo mais:
«Portugal
is much finer than you admit to be.»
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