24.
Naquele que é um dos relatos mais
completos – porventura, o mais completo – sobre a projecção cultural de A Grande Onda, intitulado Hokusai’s Great Wave. Biography of a Global Icon (Honolulu, University of Hawai‘i Press, 2015), Christine M. E. Guth cita uma
observação interessante, feita por Michael Baxandall em Patterns of Intention. On the Historical Explanation of Pictures (Yale
University Press, 1985), a propósito de alguma obsessão dos críticos e dos
historiadores de arte em descortinar os jogos de influências estéticas entre os
diversos criadores:
«if
one says that X influenced Y it does
seem that X did something to Y rather than Y did something to X. But in
consideration of good pictures and painters, the second is always the more
lively reality.»
Será
difícil, no entanto, ultrapassar um paradigma e um modelo de pensamento e
abordagem há muito enraizados na crítica artística, como o demonstra, aliás, o
livro de Christine M. E. Guth, que percorre diversos exemplos da influência
exercida pela Grande Onda enquanto
«ícone global».
Se
existem casos em que a «influência» de A
Grande Onda é mais difusa e fugidia, noutras situações a homenagem a
Hokusai é assumida de forma totalmente explícita. Mais do que uma fonte de
inspiração, há uma procura deliberada de mimetização ou emulação do seu
trabalho, como fica patente num exemplo fornecido por Christine Guth, a litografia
de Paul Gaugin Les drames de la mer,
de 1889 (em inglês, Dramas of the Sea:
Descent into Maelstrom), pertencente à Rosenwald Collection da National
Gallery of Art, de Washington, e que se destinava a ilustrar um
conhecido conto de Edgar Allan Poe, A Descent into the Maelström,
publicado em Abril de 1841 na Graham’s
Magazine. A litografia de Gaugin baseia-se abertamente numa «variação» das
ondas de Hokusi realizada por Utagawa Sadahide
(1807–1878-79), datada de circa 1850
e que integra a colecção do Victoria and Albert Museum de Londres.
Curiosamente, eventualmente por lapso, na descrição desta peça constante do catálogo
online do Victoria and Albert Museum
(aqui) não é mencionado o nome do autor, a data ou sequer o nome por que é designado
por Christine Guth, The Seaweed Gatherer.
Victoria and Albert Museum, Londres
E.4940-1919
|
Paul Gaugin, Les drames de la mer, litografia, 1889
National Gallery of Art, Washington, 1950.16.64
|
Na
mesma linha de influência explícita e directa – que, estranhamente, Christine
M. E. Guth não refere – pode mencionar-se o livro de Roger Joseph Zelazny
(1937-1995) 24 Views of Mt. Fuji, by Hokusai, de
1985, do qual existe uma recente tradução francesa, 24 Vues du Mont Fuji, par Hokusai (Saint Mammés, Le Bélial, 2017),
tendo sido essa a edição consultada.
Saída
originalmente nas páginas da Isaac Asimov’s
Science Fiction Magazine, no seu número de Julho de 1985 (e integrado na
colectânea Frost & Fire, de 1989),
a novela de Roger Zelazny teve uma tradução francesa muito recente, de Novembro
de 2017, como se disse; antes disso, já
tinha sido traduzida na Alemanha, em 1987, o Japão, em 1992, em Itália, em
1993, e na Lituânia, em 1999, de acordo com a informação disponível em The
Internet Speculative Fiction Database (ISFDB Science Fiction) (aqui).
A novela de Zelazny foi galardoada
em 1986 com o Prémio Hugo. Instituído
desde 1953, sendo uma das mais prestigiadas (e, provavelmente, a mais
conhecida) distinções no campo da literatura de ficção científica, o Prémio Hugo tem
três categorias – «best novel», «best novella» e «best novelette» – tendo o
livro do autor de The Cronicles of Amber
recebido o prémio na categoria de «best novella».
No
mesmo ano em que foi galardoado com o Prémio Hugo, 24 Views of Mt. Fuji, by Hokusai foi nomeado para o Prémio Nebula,
da Science Fiction and Fantasy Writers of America (SFWA), e ficou em quinto
lugar na candidatura ao Prémio Locus.
Dada a sua recente tradução para francês, a obra de Zelazny encontra-se nomeada
para o Prémio Imaginaire (mais precisamente, o Grand Prix de l’Imaginaire)
na sua edição de 2018, na categoria de «novela estrangeira» (ver aqui)
O
enredo pode resumir-se em poucas palavras: tomando como guia o livro Hokusai’s Views of Mt. Fuji,
editado por Easley S. Jones e publicado por Charles Tuttle Publishers em 1965
(que serviu também de fonte a Zelazny), Mari, uma viúva, percorre os caminhos
de 24 vistas do Monte Fuji desenhadas por Katsushika Hokusai, entre as quais a
de A Grande Onda. Procura o seu
marido, já morto mais ainda presente sob forma digital.
Na
breve nota introdutória, Zelazny recorda a influência que sobre ele tiveram o livro de
estampas de Hokusai e, por outro lado, a vista das montanhas que contemplava no
seu escritório: «sem as montanhas», diz Zwelazny, «não haveria meditações, não
haveria texto, não haveria prémio Hugo.»
E o capítulo dedicado à Grande Onda começa assim:
«A
grande vaga, que se enrola e levanta, prestes a engolir os frágeis barcos. A
gravura de Hokusai que todos conhecem.
Não
sou surfista e não procura a onda perfeita. Contento-me em ficar ali, na costa,
a contemplar a água. É suficiente. A minha peregrinação aproxima-se do seu
termo, ainda que não esteja concluída.
Bem…
vejo o Fuji. Representa o fim. Como no barril da primeira estampa, o círculo
fecha-se em seu redor.»
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