Maria Odila Cordeiro Rodrigues, à porta da livraria
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Algés era, na década
de sessenta e até ao 25 de Abril, uma periferia tranquila, com um jardim e
esplanadas de onde se via o rio e o mar. Guardava ainda traços do local de
vilegiatura de famílias abastadas de Lisboa, do final do século XIX e, apesar da
Praça de Touros já estar encerrada, apesar da praia de banhos já não ser
recomendada e apesar dos restaurantes “fora de portas” já não atraírem os
lisboetas, Algés continuava sendo um lugar aberto e luminoso onde as famílias
iam passear e sentar-se nas esplanadas, ao domingo, e onde os jovens iam
estudar durante a semana. A Lisboa da
época era uma cidade zangada com o rio e ao longo das suas margens só havia
cais, armazéns portuários e guindastes.
Os cafés e esplanadas
de Algés atraíam os jovens de classe média que frequentavam o Liceu de Oeiras,
o Liceu D. João de Castro ou que já andavam na universidade. Muitos dos prédios
da baixa de Algés, na parte desenhada por Morais Soares, tinham tomado o lugar
das pequenas vivendas e abrigavam famílias jovens com filhos em idade escolar. Mesmo
ao lado, no Restelo, o bairro de casas económicas tinha sido concluído há
pouco. E no Dafundo, com uma densa população jovem de todos os estratos, havia também
os alunos do Instituto Nacional de Educação Física, do Jamor. Para mais, o
Sport Algés e Dafundo, na época, atraía e canalizava para o desporto muitos
jovens de toda a área ocidental de Lisboa.
Nos anos sessenta o
país, espantado, deu-se conta que estava engolfado numa guerra em África que,
com o passar dos anos, parecia que nunca iria ter fim o que fazia com que os
rapazes arrastassem os estudos para adiar a data de se tornarem soldados em
teatro de guerra e se reunissem nos cafés a desejar o fim do regime, depois a
conspirar para o fim do regime e sempre à espera.
Como em Algés a
concentração de esplanadas e cafés era grande, por causa dos tais passeios de
domingo das famílias classe média que repetiam hábitos da geração anterior, foi
quase natural que estes cafés fossem invadidos por jovens e que as ideias de
esquerda se fossem espalhando a mancha de óleo.
Nas mesas desses cafés,
como diz Vítor Viçoso no texto que transcrevo abaixo, os grupos eram compostos
por estudantes, mas também por empregados de escritório, intelectuais, atores,
comerciantes, funcionários. O grupo que pôs de pé a livraria, a galeria de
arte, o clube de teatro, a cooperativa de consumo, as secções culturais dos
clubes, pertencia a esta faixa etária. Ao contrário dos estudantes, estavam numa
fase da vida que lhes permitia de pedir empréstimos, autorizações ministeriais
ou negociar com a comissão de censura.
“Era frequente os jovens terem à mesma mesa gente na
casa dos 40 ou mesmo mais. Os meus cafés desse tempo eram sobretudo o Ribamar e
o Tamar, em Algés, por circunstâncias de proximidade habitacional. (…). Houvera
também um outro café, o velho Cristal (se a minha memória não atraiçoa o seu
verdadeiro nome), com a estrutura em ferro e uma singela escada em caracol que
conduzia ao 1º andar. Porém, este seria destruído, em inícios da década de 60,
para dar lugar a um monstro de betão (o Catavento) que ainda funcionou como
café e depois como supermercado. Hoje ainda não tive coragem para
verificar a sua atual vocação.
Por esses cafés paravam algumas figuras ilustres da
nossa cultura. Lembro, por exemplo, Manuel Ferreira e Augusto Abelaira que ora
liam ora escreviam fragmentos das suas obras. Também Vasco Graça Moura, então
estudante de Direito, se embrenhava nos calhamaços do seu curso - não sei se
terá escrito aí alguns poemas dessa época. Havia ainda os
conspiradores sempre desconfiados dos ouvidos atentos da mesa ao lado,
possíveis pides ou meros informadores. No fundo éramos quase todos
conspiradores, uns menos outros mais, naquele tempo ditatorial que ia corroendo
os nossos desejos e sonhos juvenis. (…) Nos cafés também se passavam de
mão em mão panfletos ou livros clandestinos. Fumava-se muito nos cafés. (…) Discutia-se
filosofia, arte e política. (…)
Em Algés, durante o dia, escolhíamos
sobretudo o Ribamar, pois as suas paredes envidraçadas deixavam passar a luz
com abundância, mesmo em dias soturnos, e permitiam-nos prolongar o olhar sobre
o rio, numa cumplicidade entre o mundo interior e a paisagem. Mas à noite era o
Tamar o nosso preferido. Ou melhor, o seu longo corredor, uma extensão que
separava os consumidores da "bica" nocturna e o salão de chá
destinado aos "burgueses" mais acomodados. Nesse corredor, mesas de
um lado e do outro, misturavam-se estudantes, aprendizes de poetas e
funcionários de serviços, todos identificados com a oposição ao regime. Era um
mundo simultaneamente aberto e fechado. Um espaço rectangular mais ou menos
controlado e reservado a dialogantes contestatários. Depois as longas
noites, sobretudo no Verão, dispersavam-nos por tascas, cervejarias (o Relento
fechava às 4 da manhã), ou em deambulações sem nexo pela marginal de Algés.”
Foi nesta Algés que
nasceu a Livraria e Galeria Espaço no dia 5 de junho de 1964.
A reconstituição da
história da Espaço é aqui feita com base numa longa entrevista ao seu fundador
Armando Rodrigues.
A livraria era, e é
ainda hoje, composta por uma loja e uma cave, na Avenida dos Combatentes da
Grande Guerra. Criada inicialmente em sociedade com o actor
Armando Caldas, a sociedade depressa se desfez por não haver receitas que
compensassem dois sócios. Armando Rodrigues prosseguiu com a livraria com a sua
mulher, Maria Odila Cordeiro Rodrigues, enquanto
que a parte da Galeria de arte, três paredes forradas a sarapilheira no fundo
da livraria, onde se exibiam quadros, era da responsabilidade de Francisco
Madeira Luís.
Muito em breve passou
também a ter uma discoteca, numa parceria com a Valentim de Carvalho. Quando se
rompeu esse contrato (em 1969/1970), a discoteca passou a ser explorada por um
casal de nome Bizarro, durante cerca de dez anos, até à morte dos discos de
vinil.
Para a inauguração da
Espaço convidaram Alves Redol que veio falar e autografar o seu romance de 1961,
“Barranco de Cegos”, e Mário Castrim que terá falado sobre “Classes populares”
e autografado um livro de ensaios seu. Depois, mês a mês, essas sessões
foram-se repetindo tendo passado pela Espaço Rogério Paulo, José Cardoso Pires
(duas vezes), Mário Dionísio (duas vezes), Urbano Tavares Rodrigues, Baptista
Bastos, Eugénio de Andrade, Manuel da Fonseca, Fernando Relógio, Júlio Pomar,
Nuno Bragança, José Saramago e os espanhóis Jorge Semprun e Felix Cucurull.
Na Galeria da Espaço,
o seu “director de exposições”, Madeira Luís montou a primeira exposição pública
de fotografias de Eduardo Gajeiro, uma exposição individual de Júlio Pomar, uma
coletiva de Pomar, Lima de Freitas e Francisco Relógio, uma coletiva de
serigrafias de parceria com a Cooperativa de Serigrafia. Segundo Armando Rodrigues, Madeira Luís era muito
minucioso na montagem das suas exposições chegando a gastar duas horas para
pendurar um quadro.
Pouco depois surgiu a
Secção Cultural do Sport Algés e Dafundo, com José Sanches, Costa Ferreira,
Viriato Portugal, Eduardo Pedrozo e um médico, Dr. Homero, onde se passou a
realizar eventos que, por terem mais público, necessitavam de mais área do que
a livraria tinha para oferecer. (Armando Rodrigues fala também de uma secção
cultural semelhante na Liga dos Melhoramentos de Algés, todavia não se recorda
de eventos que aí tenham tido lugar). Foi aí, no Algés e Dafundo, que, para uma
vasta audiência, se realizou uma homenagem a Aquilino Ribeiro que contou com
uma palestra de Alexandre Pinheiro Torres sobre a obra do autor.
Em 1966, o mesmo grupo
fundou na Rua Anjos uma cooperativa de consumo dirigida por José Rodrigues
Caldeira Patrão, irmão de Armando Caldas. Para além de bens de consumo
alimentar, dispunha de uma biblioteca de empréstimo. Esta cooperativa durou
cerca de seis anos.
E foi na cave da
Espaço, numa noite de reunião de amigos, que Armando Caldas propôs a criação de
um clube de teatro. Alugaram um espaço num prédio em construção e fizeram um
teatro que se veio a chamar Primeiro Acto – Clube de Teatro. A equipa de
arquitetos era chefiada por Nuno Teotónio Pereira, outro frequentador assíduo
dos cafés de Algés. O Primeiro Acto chegou a ter 3000 sócios, sendo o sócio nº
213, José Saramago.
Podemos ler a história
do 1º Acto no artigo
de Eduardo Pedrozo em Sinais de Cena, nº7, junho de 2007
e uma entrevista a
Armando Caldas em
A partir da
inauguração do 1º Acto, as actividades que até então se desenvolviam na
livraria passaram a ter lugar no teatro.
Toda esta
efervescência cultural se diluiu após o 25 de Abril. O 1º Acto foi tendo cada
vez menos atividade até que fechou por completo. Anos depois a Câmara de Oeiras
comprou-o e restaurou-o transformando-o no Teatro Municipal Amélia Rey Colaço.
A Espaço Livraria e Galeria,
prosseguiu, agora com a valência de papelaria e com o nome de Livraria e
Papelaria Espaço, gerida pelas filhas de Armando Rodrigues, Marisa, Elsa e
Liliana Cordeiro Rodrigues. Hoje em dia, numa tenaz luta pela sobrevivência, a
Espaço é uma pequena livraria com livros de qualidade e é simultaneamente um
polo cultural numa Algés de população envelhecida e que passou por grandes
transformações. Armando Rodrigues faz questão em “homenagear as suas filhas
Marisa, Elsa e Liliana que, com coragem e tenacidade, mantêm o nível e o
prestígio cultural da livraria”.
As três irmãs livreiras
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Na Espaço, neste
momento, existem diversas atividades: um clube de leitura, contos para crianças
aos sábados, uma oficina de escrita criativa, workshops de tricot e de desenho.
Lá se fazem também pequenas peças teatrais e lançamentos de livros.
A partir do início da
primavera é lá o ponto de encontro semanal de um grupo de caminhadas, ao fim do
dia.
Falando de Clarice Lispector no Clube de Leitura, convidada Clara Rowland, Março de 2017 |
Também se deve às
irmãs livreiras a criação da página de Facebook “Algés acontece” que se tornou
o verdadeiro jornal da comunidade.
É à Espaço que se vai
comprar o último romance de Hélia Correia ou se vai pedir um conselho sobre o
livro a oferecer aos netos. É lá que se encomendam livros que não estão em
stock e pacientemente se espera o SMS a dizer que já chegou.
Resta-nos desejar que
os mecanismos dessa “gentrificação” cujos efeitos já se começam a notar em
Algés não destruam o nosso comércio tradicional e sobretudo a nossa livraria de
bairro, de notável passado e polo atual de tanta actividade.
Helena Abreu
Adorei conhecer a história por detrás desta livraria, que frequento desde miúda e de que tanto gosto. O atendimento é exemplarmente feito, por quem sabe e gosta de livros e de leitores. Trago sempre mais do que vou buscar.
ResponderEliminarFantástico! Soberbo! Excepcional!! Este texto falando da Livraria Espaço e não só, da Algés antiga, onde nasci, e de que eu fui fervoroso adepto onde contribuí com o meu ímpeto da juventude não apenas no 1ºActo Clube de Teatro mas também em várias das actividades que então aconteciam nesta terra, trouxe-me à memória muitas vivências desse tempo. Tanto há para falar sobre a Algés do antes anos noventa do século passado.....mas basta a renovada lembrança desta história do que foi a Espaço e mais alguns apontamentos do Algés antigo, para me encher de alegria e daqui desejar que as descendentes que hoje mantém a Livraria Espaço não se deixem envolver nas catacumbas do esquecimento. Às três irmãs livreiras, em particular à Marisa que conheço há mais tempo como ligada à Espaço, um grande beijinho de agradecimento por manterem vivo este ´icon` da Algés de sempre!!
ResponderEliminarLuis Patta