31.
Em A
Grande Onda surgem três embarcações em primeiro plano, no espaço central da
imagem.
A disposição espacial das embarcações é
dos elementos que mais força conferem à xilogravura de Hokusai. A embarcação situada
no segundo plano, à direita da imagem, aparece desenhada em toda a sua
extensão, o que permite perceber de que tipo se trata, o que para os japoneses
da época (e nunca se esqueça a dimensão comercial do trabalho de Hokusai) constituía
um detalhe importante em termos de reconhecimento, percepção e familiarização
com a gravura.
O traço de Hokusai acompanha o formato
esguio das embarcações moldando as ondas do mar a esse perfil afilado e curvo,
a ponto de nos interrogarmos se são os barcos que parecem ondas ou vice-versa.
O dinamismo da imagem é adensado pelo
facto de, à excepção da embarcação que fica no lado direito da imagem, as outras
duas só são parcialmente visíveis, escondidas que estão pelas ondas revoltas.
Adivinha-se mesmo que a grande onda vá rebentar sobre a embarcação da direita,
prestes a ser tragada pelo mar em fúria. La
Menace suspendue, foi o feliz título encontrado para um documentário sobre A Grande Onda, realizado por Alain Jaubert em 1999.
O exercício de ocultação parcial das
embarcações é levado ao extremo, num golpe de génio, porquanto há três pontos
brancos no lado esquerdo da imagem que quase se confundem com três cabeças de
tripulantes de um barco ausente; na verdade, são salpicos das ondas do mar, de
forma esférica. Os salpicos das ondas têm uma dimensão desmesurada, quase
idêntica – ou até superior – à dos rostos dos marinheiros, pescadores de bonito.
O facto de os barcos – e das ondas – se
encontrarem sobrepostos em três patamares ou camadas confere profundidade à
imagem e, acima de tudo, reveste-a de um movimento que é invulgar nas
xilogravuras da época, marcadas pela placidez e pelo imobilismo característicos
do «mundo flutuante».
Como referem Tadashi Kobayashi e Mark
Harbison (Ukiyo-e: An Introduction to Japanese Woodblock Prints, Kodansha International, 1997, p. 47), os barcos
da imagem são oshiokuri-bune, navios
rápidos de carga que foram concebidos para o comércio de peixe mas que eram
usados para o transporte de vários produtos, de peixe fresco ou seco a arroz,
passando por vegetais e carvão.
No seu estudo sobre a Grande Vaga,
Julyan H.E. Cartwright e Hisami Nakamura citam um trecho da obra Unbeaten tracks in Japan, que a
escritora de viagens, exploradora e fotógrafa vitoriana Isabella Bird
(1831-1904) publicou em 1880. Ao relatar a sua chegada ao porto de Yokohama, em
1878, Isabella Bird – a primeira mulher a ser eleita fellow da Royal Geographic Society – deparou com oshiokuri-bune, que descreveu assim:
«The partially triangular shape of these
boats approaches that of a salmon-fisher's punt used on certain British rivers.
Being floored gives them the appearance of being absolutely flat-bottomed; but,
though they tilt readily, they are very safe, being heavily built and fitted
together with singular precision with wooden bolts and a few copper cleets.
They are SCULLED, not what we should call rowed, by two or four men with very
heavy oars made of two pieces of wood working on pins placed on outrigger bars.
The men scull standing and use the thigh as a rest for the oar.»
Cartwright e Nakamura apresentam uma imagem do Museu Marítimo de Yokohama onde
aparece o modelo de um barco oshiokuri,
com três remos de cada lado e o mastro, já que, se o vento fosse favorável, o
navio poderia navegar à vela. Dizem, a este propósito, que o oshiokuri pode ser integrado na
categoria esquife (do lombardo skif,
«barco», do italiano schifo ou do
catalão esquif), o tipo de embarcação
que surge em O Velho e o Mar, de
Ernst Hemingway. O modelo apresentado no Museu Marítimo de Yokohama tem seis
remos, ao passo que os barcos de A Grande
Onda têm oito remos e, na descrição de Isabella Bird, os oshiokuri-bune surgem com apenas dois
remos.
Uma
outra obra de Katsushika Hokusai apresenta duas embarcações de dois remos.
Trata-se de uma xilogravura igualmente inserta na série Trinta e Seus Vistas do Monte Fuji, intitulada Vista da Praia de Tago, Ejiri,
na Estrada Tokaido, descrita aqui
na colecção do Museu Britânico. Ou, mais decisivamente ainda, Vista ao Entardecer sobre a Ponte Ryogoku do Cais de Onmaya, da mesma série, descrita aqui.
Museu Britânico, 1937,0710,0.151
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Cartwright
e Nakamura afirmam que os barcos avistados por Isabella Bird foram,
provavelmente, tenma-sen e não oshiokuri. Também os que observamos
nesta outra gravura de Hokusai parecem ser desse tipo (tenma-sem ou tenmsaen), sendo
interessante a descrição do construtor naval Douglas Brooks e esta informação.
No
seu minucioso estudo, Julyan H.E. Cartwright e Hisami Nakamura, estranhamente,
não analisam outras gravuras de Hokusai), a qual, segundo tudo indica, figuram
igualmente oshiokuri, estando um deles,
aliás, mais visível do que em A Grande
Onda.
Pela
dimensão dos navios – de 12 a 15 metros de comprimento –, calcula-se que a
grande onda desenhada por Katsushika Hokusai tem uma 10 a 12 metros de altura.
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