Alegrem-se
as almas. Foi publicado em Portugal, finalmente, Marca de Água. Sobre Veneza, o extraordinário livrinho de Joseph
Brodsky sobre a Sereníssima, que viu a luz primeira em 1992 mas só agora,
tantos anos volvidos, em Janeiro do corrente 2018, desembarcou até nós na barca
da Relógio D’Água – e com grande tradução de Ana Luísa Faria, parabéns. Na
mesma editora e na mesma colecção, já Veneza merecera lugar merecido com o
livro de Javier Marías Veneza, Um Interior. E se tivermos presente que, noutra excepcional colecção de livros
de viagens, a Tinta-da-china publicara Veneza,
de Jan Morris, um dos melhores livros alguma vez escritos sobre a
cidade-fábula, concluiremos que, para a pobreza reinante, não estamos mal
servidos de literatura sobre aquela terra aquosa.
Nas páginas do Expresso, Pedro Mexia
já escreveu o bem que havia a escrever sobre o livro de Brodsky e, quando o
Pedro fala, pouco ou nada há a acrescentar. Na verdade, basta a assombrosa
descrição de Brodsky sobre uma visita nocturna às salas cobertas de pó de um
velho palácio veneziano, feita na companhia do seu proprietário, para valer a
pena ler este livro.
Quase no
final, Brodsky diz que as igrejas deveriam ficar abertas toda a noite, «pelo
menos a da Madonna dell’Orto – não tanto em atenção à hora provável dos
tormentos da alma como por causa da magnífica Virgem com o Menino que nela se abriga. Apeteceu-me desembarcar ali
e dar uma espreitadela ao quadro, ao espaço de uma polegada que separa a mão
esquerda da Madonna da planta do pé do menino. Essa polegada – ah, bem menos de
uma polegada! – é o que separa o amor do erotismo. Ou talvez seja o grau
supremo do erotismo.»
A coisa
prometia. O problema é que Brodsky não identifica de que Virgem com o Menino está a falar. E o problema é que aquela de que
provavelmente está a falar, a Madonna con
Bambino, pintada por Giovanni Bellini em 1480, foi furtada da igreja da
Madonna dell’Orto em 1993, ou seja, um ano depois de o Prémio Nobel ter
publicado o seu livro. Na noite de 1 de Março de 1993, alguns ladrões entraram
na igreja veneziana e apoderaram-se da tela de Bellini, nunca mais vista, que eu saiba. Era este o quadro, em nome do qual Brodsky apelava a que se
mantivesse aberta à noite a igreja de Veneza. Mesmo com a igreja fechada, o
quadro desapareceu… É pena, é tanta
pena.
Sirva-nos
de lenitivo e magro consolo o facto de, na mesma igreja de Madonna dell’Orto, existir uma estátua da
Virgem com o Menino, da autoria de Antonio Rizzo (1430-1499), que não fica atrás do quadro de Bellini em matéria de
erotismo (ou, pelo menos, do erotismo que julgo adivinhar no espírito de
Brodsky).
De igual modo, Bellini pintou várias Virgens com o Menino,
ainda que nenhuma delas, como é óbvio, susbstitua a obra-prima perdida; a mesma
que, como também é óbvio, a obra-prima perdida nunca substituiria as três madonnas
que aqui mostramos, todas razoavelmente «eróticas», crê-se.
A ideia de erotismno de Brodsky em relação a essa pintura faz-me lembrar a hipocritamente pudibunda personagem Dona Bela do programa "Escolinha do Professor Raimundo", do inesquecível e impagável Chico Anísio, na TV brasileira. Parece que Brodsky, revirando os olhos com lubricidade, "só pensa naquilo".
ResponderEliminarCaro António,
ResponderEliminaro livro foi publicado em Portugal pela primeira vez em 1993, pela Dom Quixote. Creio que a tradução até será a mesma. Em 1999 a mesma tradução saiu numa colecção de Clássicos Contemporâneos da Planeta. Um abraço.