"Olhos abertos, amigos, a nossa
vida é demasiado preciosa para ouvirmos vozes de burros..."
Sábias palavras estas, de um grande da
nossa praça. Assino por baixo.
Só que ele há burros e burros. É como
os chapéus: há muitos. A variedade de jegue a que Quaresma se referia combina o
bipedismo com o polegar oponível, como qualquer outro Sapiens-Sapiens Vulgaris,
mas carece de miolos até quando passa por esperto. Mesmo com um lenço na
cabeça, há quem vá atrás de qualquer jerico, é sabido. Mas não é menos verdade
que o mais das vezes se acham a zurrar sozinhos a eito e sem jeito, num
desamparo meio cómico que tem tanto de imponente como este asno
musicado por Camille Saint-Saens.
Aqueles de que vale mesmo a pena falar,
porém, são os burros de 4 patas, criaturas esplêndidas cujo dia internacional
se assinala hoje, 8 de maio. O carácter e a personalidade afirmados, apesar de
lhes terem granjeado uma reputação dúbia, indisfarçavelmente especista e
invejosa, inspirou um sem número de maravilhas que merecem ser medalhadas neste
dia. Seguem, pois, algumas sugestões:
A primeira, na interpretação mais
vibrante, escoiceante e propriamente inteligente que conheço, é Petit Âne
Blanc, de Jacques Ibert, já a seguir pelo Ensemble Salut Salon. Em 2
minutos, honra em absoluto a alma asinina. Para quem prefira a versão em piano solo, fica
bem servido com Leif Ove Andsnes, que sabe respeitar esta linda indicação do
compositor: “Com um tranquilo bom humor”.
Em ex aequo na parte vibrante –
agora na categoria dançante –, e de humor a puxar já não ao tranquilo mas ao
gargalhante, a Cantiga da Burra, de Sebastião Antunes, pelos Galandum
Galandaina. Desconheço se a protagonista da canção é um exemplar dessa soberba
raça que é o burro mirandês. O que sei é que por onde passam os Galandum deixam
um rasto de gente feliz sem lágrimas, pela simples razão de que é levada a
verter todas as reservas líquidas em suor, a pular ensandecida.
Por fim, um misterioso piscar-de-olhos
asinino entre gerações no cinema, cujo sentido desisti de tentar desvendar.
Aceitei afocinhar na graça das coisas sem levantar ondas. Trata-se do tema de Two Mules For
Sister Sara, um peculiaríssimo Western dos anos 1970 realizado por
Don Siegel, com uma ainda mais peculiar Shirley MacLaine em hábito de freira
que… [spoiler alert] e um Clint Eastwood em grande forma.
O tema The Braying Mule,
composto por Enio Morricone, zurra com tal arte e engenho que acaba a ecoar 20
anos depois em dois filmes (quer dizer, os dois que topei; quem sabe há
mais?): Django,
de Quentin Tarantino, e Sherlock Holmes: A Game of Shadows, de Guy Ritchie,
em ambos os casos sem grande alarde – como uma piscadela de olhos,
precisamente.
Mas se o primeiro se fica pelo efeito
citação, o segundo espreme a música para realçar a comicidade da cena em que
irrompe: enquanto os seus companheiros cavalgam desenvoltos nuns garbosos
equídeos, Sherlock avança encavalitado numa pileca atarracada de trote curtinho
e perseverante, a inteligência elevada e etérea transportada pela criatura mais
rasa e esforçada. E devagar lá foi ao longe. Ao contrário da lebre, como
se sabe.
Manuela Ivone Cunha
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderEliminarMuito obrigado.
ResponderEliminarImpossivel não completar esta bela homenagem com uma referência a "Au hasard Balthazar", um dos melhores filmes de Robert Bresson, que conta a historia de um burro. Vejam e oiçam. Garanto-lhes que nunca mais ouvirão o andantino da sonata n° 20 de Schubert como antes:
https://www.youtube.com/watch?v=JToByR14Q0Y
Boas
Muito obrigada. É belíssimo, sim. Essa sonata, em particular esse andamento, estava na lista para vir aqui, pelas mãos de Mitsuko Uchida. Fica assim muito bem acompanhada.
EliminarO dia 8 de Maio,é,há 75 anos, o dia da Vitória sobre o nazismo !
ResponderEliminarSe até os burros se associam à data, só provam como são superiores a muitos humanos!
Irmão burro (S.Francisco de Assis dixit) ! Junta-te à nossa festa!