sexta-feira, 8 de maio de 2020

Burros e burros.





"Olhos abertos, amigos, a nossa vida é demasiado preciosa para ouvirmos vozes de burros..." 

Sábias palavras estas, de um grande da nossa praça. Assino por baixo.

Só que ele há burros e burros. É como os chapéus: há muitos. A variedade de jegue a que Quaresma se referia combina o bipedismo com o polegar oponível, como qualquer outro Sapiens-Sapiens Vulgaris, mas carece de miolos até quando passa por esperto. Mesmo com um lenço na cabeça, há quem vá atrás de qualquer jerico, é sabido. Mas não é menos verdade que o mais das vezes se acham a zurrar sozinhos a eito e sem jeito, num desamparo meio cómico que tem tanto de imponente como este asno musicado por Camille Saint-Saens.

Aqueles de que vale mesmo a pena falar, porém, são os burros de 4 patas, criaturas esplêndidas cujo dia internacional se assinala hoje, 8 de maio. O carácter e a personalidade afirmados, apesar de lhes terem granjeado uma reputação dúbia, indisfarçavelmente especista e invejosa, inspirou um sem número de maravilhas que merecem ser medalhadas neste dia. Seguem, pois, algumas sugestões:

A primeira, na interpretação mais vibrante, escoiceante e propriamente inteligente que conheço, é Petit Âne Blanc, de Jacques Ibert, já a seguir pelo Ensemble Salut Salon. Em 2 minutos, honra em absoluto a alma asinina. Para quem prefira a versão em piano solo, fica bem servido com Leif Ove Andsnes, que sabe respeitar esta linda indicação do compositor: “Com um tranquilo bom humor”.




Em ex aequo na parte vibrante – agora na categoria dançante –, e de humor a puxar já não ao tranquilo mas ao gargalhante, a Cantiga da Burra, de Sebastião Antunes, pelos Galandum Galandaina. Desconheço se a protagonista da canção é um exemplar dessa soberba raça que é o burro mirandês. O que sei é que por onde passam os Galandum deixam um rasto de gente feliz sem lágrimas, pela simples razão de que é levada a verter todas as reservas líquidas em suor, a pular ensandecida.




Por fim, um misterioso piscar-de-olhos asinino entre gerações no cinema, cujo sentido desisti de tentar desvendar. Aceitei afocinhar na graça das coisas sem levantar ondas. Trata-se do tema de Two Mules For Sister Sara, um peculiaríssimo Western dos anos 1970 realizado por Don Siegel, com uma ainda mais peculiar Shirley MacLaine em hábito de freira que… [spoiler alert] e um Clint Eastwood em grande forma.

O tema The Braying Mule, composto por Enio Morricone, zurra com tal arte e engenho que acaba a ecoar 20 anos depois em dois filmes (quer dizer, os dois que topei; quem sabe há mais?): Django, de Quentin Tarantino, e Sherlock Holmes: A Game of Shadows, de Guy Ritchie, em ambos os casos sem grande alarde – como uma piscadela de olhos, precisamente.

Mas se o primeiro se fica pelo efeito citação, o segundo espreme a música para realçar a comicidade da cena em que irrompe: enquanto os seus companheiros cavalgam desenvoltos nuns garbosos equídeos, Sherlock avança encavalitado numa pileca atarracada de trote curtinho e perseverante, a inteligência elevada e etérea transportada pela criatura mais rasa e esforçada.  E devagar lá foi ao longe. Ao contrário da lebre, como se sabe.




Manuela Ivone Cunha









4 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. Muito obrigado.

    Impossivel não completar esta bela homenagem com uma referência a "Au hasard Balthazar", um dos melhores filmes de Robert Bresson, que conta a historia de um burro. Vejam e oiçam. Garanto-lhes que nunca mais ouvirão o andantino da sonata n° 20 de Schubert como antes:

    https://www.youtube.com/watch?v=JToByR14Q0Y

    Boas

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    1. Muito obrigada. É belíssimo, sim. Essa sonata, em particular esse andamento, estava na lista para vir aqui, pelas mãos de Mitsuko Uchida. Fica assim muito bem acompanhada.

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  3. O dia 8 de Maio,é,há 75 anos, o dia da Vitória sobre o nazismo !
    Se até os burros se associam à data, só provam como são superiores a muitos humanos!
    Irmão burro (S.Francisco de Assis dixit) ! Junta-te à nossa festa!

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