Lembrando
Dona Mécia de Sena, Maria Velho da Costa e Ruy Cinnatti
Foi
durante o Verão, na primeira parte da década de 80, que se deu o encontro. Dona
Mécia, a residir na Califórnia, estava a passar umas semanas em Portugal e eu
também. Um dia Dona Mécia desafiou-me para ir conhecer um dos grandes amigos de
Jorge de Sena e de toda a sua família - Ruy Cinnatti –, o qual, se bem me
lembro, era padrinho de um dos nove filhos do casal Sena.
O
encontro teria lugar num dos bancos da Praça Luís de Camões. Aí nos
reuniríamos, por volta das sete e meia da tarde, Ruy Cinnatti, Maria Velho da
Costa, António Manuel dos Santos, Christopher Auretta, D. Mécia e o
abaixo-assinado, para depois irmos todos cear à Adega Ribatejana, um
restaurante popular do Bairro Alto, famoso pelos seus jaquinzinhos fritos,
acompanhados com arroz, prato a que todos viriam a dar preferência, menos eu,
que geralmente optava pela pescada cozida com batatas e grelos.
Qual
era a finalidade desse encontro e dessa ceia, organizados e agendados por D.
Mécia? Apresentar Maria Velho da Costa a Ruy Cinnatti. D. Mécia, sempre igual a
si mesma, mais uma vez se prestava a fazer o papel de fada madrinha,
servindo-se da sua varinha mágica, em situações melindrosas, para bem das
letras e da cultura do mundo lusófono. É que Maria Velho da Costa andava
ansiosa por descobrir umas preciosas pepitas das minas de ouro de Timor
longínquo, e sabia que ninguém como Ruy Cinnatti lhas podia prodigalizar, na
sua pristina pureza.
Mas
acontecia que Ruy Cinnatti, um dos maiores especialistas portugueses em Timor,
a ilha dos seus encantos, dos seus amores e das suas amarguras, onde vivera e
trabalhara, apaixonadamente, entre 1946-47 e entre 1951-55, como agrónomo,
antropólogo, pesquisador e poeta, fora proibido por Salazar em 1966, último ano
em que visitou a ilha, de voltar a pôr os pés em Timor. Essa proibição deixou-o
de tal maneira magoado, e provocou-lhe uma crise psicológica tão intensa, que,
a partir de então, evitava a todo o custo falar sobre Timor, fosse com quem
fosse, para não sofrer mais. Entretanto, Maria Velho da Costa, buscando sempre
com tenacidade e afã matéria nova para a sua vasta obra literária, queria
explorar essa mina de ouro que era Ruy Cinnatti, pois constava que, além das
obras publicadas, científicas e ficcionais, sobre Timor, tinha muitos papéis na
gaveta e, tinha, sobretudo, muitas lembranças sobre Timor e o povo maubere no
armazém da memória.
Recordo-me
que o primeiro a chegar para esse encontro foi Ruy Cinnatti e os segundos,
quase ao mesmo tempo, fomos D. Mécia e eu. Parece que estou a ver Ruy Cinnatti
a implorar a D. Mécia que, por favor, não o obrigasse a falar de Timor com
ninguém. Que não queria abrir feridas ainda não cicatrizadas totalmente. Que
não queria voltar a ter mais crises por causa de Timor.
Mas,
neste meio tempo, chegaram Maria Velho da Costa, António Manuel dos Santos e
Christopher Auretta. Feitas as devidas apresentações, D. Mécia e eu demos o
nosso lugar, no banco em que estávamos sentados, a Maria Velho da Costa e,
passados momentos, ela e Ruy Cinnatti já estavam a dialogar animadamente, como
se fossem velhos amigos. E diálogo sobre Timor, disse-nos depois, com a maior
alegria, Maria Velho da Costa, ou Maria de Fátima, como D. Mécia lhe chamava.
Que parecia a Maria Velho da Costa que Ruy Cinnatti estava à espera de um
momento como aquele para exorcizar os demónios interiores que o atormentavam há
tanto tempo. Ver-se impedido, por éditos discricionários emanados do Palácio de
São Bento e do Terreiro do Paço, de poder continuar a lutar intrepidamente pela
preservação do ecossistema, do habitat natural, dos costumes e da cultura do
povo maubere era algo que Ruy Cinnatti não podia esquecer nem
perdoar.
Enquanto
Maria Velho da Costa e Ruy Cinnati conversavam com grande entusiasmo, os outros
quatro deambulávamos lentamente pela Praça Camões, para fazer tempo, e
apurávamos o apetite para os jaquinzinhos fritos e para a pescada cozida.
Quando
chegou a hora de nos dirigirmos a pé para o restaurante, Maria Velho da Costa e
Ruy Cinnatti foram caminhando e conversando juntos, com visível entusiasmo,
para grande satisfação de D. Mécia, por ter conseguido quebrar mais um enguiço,
contribuindo assim, como de costume, para dar o seu contributo em prol da
cultura e das letras portuguesas “d`aquém e d’além-mar”.
António Cirurgião
Correcções:
ResponderEliminar1. Ruy Cinnatti era de facto padrinho da Isabel Maria, a filha mais velha de Jorge e Mécia de Sena;
2. D. Mécia chamava Fátima a Maria Velho da Costa;
3. O nome do restaurante é Cocheira Alentejana.