Os
convidados comentam os cortinados e bibelots dos anfitriões depois de saírem;
os telespectadores comentam mal espreitam um directo no ecrã. As críticas foram
instantâneas quando se viu o belo tapete Lx Tiles numa sala de
receber na residência do primeiro-ministro em S. Bento. E António Costa recebia
a RTP, nas pessoas de António José Teixeira, hoje director de Informação, ontem
assessor de outra actual figura televisiva, Luís Marques Mendes, e Carlos
Daniel, o entra-e-sai-e-entra na RTP, sempre com a porta giratória à disposição
pelas altas instâncias do poder. Costa estava duplamente em casa: na residência
oficial; na informação do operador de que é representante máximo do único
accionista.
Os
telespectadores tiveram razão em apenas comentar o que se via, porque, quanto
ao que se ouvia, nada houve de novo na entrevista. Era 30 de Abril. Costa
repetiu durante uma hora o que dissera à tarde durante mais de uma hora. Foi
uma conversa de amigos; pena não terem servido um cálice de Porto.
As
três ou quatro câmaras mostraram brilhantemente o cenário. Os espectadores
puderam manter a atenção visual na magnífica sala, melhor que os cenários das
séries da Netflix ou da Fox Life. Não lhes escapou o tapete, mas um outro
acessório, essencial, pôde transmitir incólume, de forma subliminar, a mensagem
da entrevista. Era um livro que estava na cómoda por trás dos jornalistas. Um
livro aberto. Um livro de arte, bem ilustrado. Muitas pessoas gostam de ter
livros de arte na sala, para os convidados verem as capas. Transmitem o seu
grau de sofisticação e aquecem visualmente a ambiência. O Arquitecto do
Universo de S. Bento preferiu abri-lo, revelar o interior, transmitir a sua
mensagem. Vêem-se, e viu-se ao longe, durante a entrevista, o verso da folha
209 e a frente da folha 210. Ei-lo!, ilustrando o primeiro-ministro e os dois
conversadores da RTP, o Apocalipse do Lorvão![1] A
mensagem foi clara: depois do estado de emergência, depois do estado de
calamidade, fatalmente virá o estado de apocalipse!
Do
lado esquerdo, o monge desenhou e pintou a Nova Jerusalém, a Jerusalém Celeste,
profetizada por Ezequiel e retomada por S.Paulo no Apocalipse. Está nas
imagens, está no texto sagrado:
E levou-nos,
em espírito, a um grande e alto monte e mostrou-nos a grande cidade, a santa
Jerusalém, que de Costa descia do céu.
E tinha a
glória de Costa; e a sua luz era semelhante a uma pedra preciosíssima, como um
punho cerrado, como rosa resplandecente.
E tinha um
grande e alto muro, com 12 portas, nas portas doze ministros, e nomes escritos
sobre elas, que são os nomes das 12 lojas de Portugal.
Da banda do
levante tinha três portas de lojas, da banda do norte três portas de lojas, da
banda do sul três portas de lojas, da banda do poente três portas de lojas.[2]
O
verso da folha 209 do Apocalipse do Lorvão é muito rigorosa
nesta representação da visão do Grande Arquitecto de S. Bento.[3] O
artista dos reinados de Afonso Henriques e Sancho I mostra as 12 portas de
lojas, os 12 ministros, mostra o Arquitecto do Universo entregando a Cidade a
si mesmo, na sua ubiquidade, e em baixo, o Cordeiro, metáfora visual do povo,
sob o poder da espada, ou a espada do poder.
Na
cidade celeste, continua Paulo, Costa defende-nos do novo coronavírus: «não
entrará nela coisa alguma que contamine», nela só entrarão «os que estão
inscritos no livro» de Costa, agora com máscaras ou viseiras.
Na
frente da folha 210, escolhida para mais inculcar nos espectadores a mensagem
da entrevista, o autor do mosteiro de Lorvão escolheu a Água da Vida e a Árvore
da Vida. Foi de novo literal e simbólico na representação icónica: duma
torneira sai em jacto a Água da Vida, que «é a palavra do senhor
primeiro-ministro», para a boca dum crente, que um ministro segura, qual algoz;
«e, no meio da praça da Cidade, e de uma e da outra banda do Tejo, estava a
Árvore da Vida, que produz doze frutos, dando seu fruto mês em mês a cada
ministro».
Agradeçamos
à RTP ter-nos trazido, com tanta doçura, tão brilhante representação dos nossos
anos por vir: o estado de apocalipse. «E, se alguém tirar quaisquer palavras do
livro desta profecia, Costa tirará a sua parte da árvore da vida, e da cidade dele».
Eduardo
Cintra Torres
[1] Datado de 1189; da livraria do
Mosteiro do Lorvão; depositado por Alexandre Herculano na Torre do Tombo em
1853; edição fac-símile, Valencia, ed. Patrimonio, 2003.
[2] Os palimpsestos introduzidos
malevolamente nas citações em todo este texto foram criados a partir do Apocalipse
do Apóstolo S. João, 21:10-13, 22-1-2, 22-17, 22-19, da Bíblia
Sagrada, trad. por João Ferreira de Almeida.
[3] A folha 209v e a folha 201f
foram retiradas da versão digitalizada do original, disponibilizada no site da
Torre do Tombo.
Com todo o respeito, chamo a atenção para um pequeno lapso. O "Apocalipse" é atribuído na Vulgata (Bíblia} não a São Paulo, mas a São João Evangelista: "Apocalypsis Beati Joannis Apostoli".
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