terça-feira, 5 de maio de 2020

O estado de apocalipse.






          Os convidados comentam os cortinados e bibelots dos anfitriões depois de saírem; os telespectadores comentam mal espreitam um directo no ecrã. As críticas foram instantâneas quando se viu o belo tapete Lx Tiles numa sala de receber na residência do primeiro-ministro em S. Bento. E António Costa recebia a RTP, nas pessoas de António José Teixeira, hoje director de Informação, ontem assessor de outra actual figura televisiva, Luís Marques Mendes, e Carlos Daniel, o entra-e-sai-e-entra na RTP, sempre com a porta giratória à disposição pelas altas instâncias do poder. Costa estava duplamente em casa: na residência oficial; na informação do operador de que é representante máximo do único accionista.

          Os telespectadores tiveram razão em apenas comentar o que se via, porque, quanto ao que se ouvia, nada houve de novo na entrevista. Era 30 de Abril. Costa repetiu durante uma hora o que dissera à tarde durante mais de uma hora. Foi uma conversa de amigos; pena não terem servido um cálice de Porto.


          As três ou quatro câmaras mostraram brilhantemente o cenário. Os espectadores puderam manter a atenção visual na magnífica sala, melhor que os cenários das séries da Netflix ou da Fox Life. Não lhes escapou o tapete, mas um outro acessório, essencial, pôde transmitir incólume, de forma subliminar, a mensagem da entrevista. Era um livro que estava na cómoda por trás dos jornalistas. Um livro aberto. Um livro de arte, bem ilustrado. Muitas pessoas gostam de ter livros de arte na sala, para os convidados verem as capas. Transmitem o seu grau de sofisticação e aquecem visualmente a ambiência. O Arquitecto do Universo de S. Bento preferiu abri-lo, revelar o interior, transmitir a sua mensagem. Vêem-se, e viu-se ao longe, durante a entrevista, o verso da folha 209 e a frente da folha 210. Ei-lo!, ilustrando o primeiro-ministro e os dois conversadores da RTP, o Apocalipse do Lorvão![1] A mensagem foi clara: depois do estado de emergência, depois do estado de calamidade, fatalmente virá o estado de apocalipse!





          Do lado esquerdo, o monge desenhou e pintou a Nova Jerusalém, a Jerusalém Celeste, profetizada por Ezequiel e retomada por S.Paulo no Apocalipse. Está nas imagens, está no texto sagrado:

E levou-nos, em espírito, a um grande e alto monte e mostrou-nos a grande cidade, a santa Jerusalém, que de Costa descia do céu.
E tinha a glória de Costa; e a sua luz era semelhante a uma pedra preciosíssima, como um punho cerrado, como rosa resplandecente.
E tinha um grande e alto muro, com 12 portas, nas portas doze ministros, e nomes escritos sobre elas, que são os nomes das 12 lojas de Portugal.
Da banda do levante tinha três portas de lojas, da banda do norte três portas de lojas, da banda do sul três portas de lojas, da banda do poente três portas de lojas.[2]

          O verso da folha 209 do Apocalipse do Lorvão é muito rigorosa nesta representação da visão do Grande Arquitecto de S. Bento.[3] O artista dos reinados de Afonso Henriques e Sancho I mostra as 12 portas de lojas, os 12 ministros, mostra o Arquitecto do Universo entregando a Cidade a si mesmo, na sua ubiquidade, e em baixo, o Cordeiro, metáfora visual do povo, sob o poder da espada, ou a espada do poder.

          Na cidade celeste, continua Paulo, Costa defende-nos do novo coronavírus: «não entrará nela coisa alguma que contamine», nela só entrarão «os que estão inscritos no livro» de Costa, agora com máscaras ou viseiras.



          Na frente da folha 210, escolhida para mais inculcar nos espectadores a mensagem da entrevista, o autor do mosteiro de Lorvão escolheu a Água da Vida e a Árvore da Vida. Foi de novo literal e simbólico na representação icónica: duma torneira sai em jacto a Água da Vida, que «é a palavra do senhor primeiro-ministro», para a boca dum crente, que um ministro segura, qual algoz; «e, no meio da praça da Cidade, e de uma e da outra banda do Tejo, estava a Árvore da Vida, que produz doze frutos, dando seu fruto mês em mês a cada ministro».

          Agradeçamos à RTP ter-nos trazido, com tanta doçura, tão brilhante representação dos nossos anos por vir: o estado de apocalipse. «E, se alguém tirar quaisquer palavras do livro desta profecia, Costa tirará a sua parte da árvore da vida, e da cidade dele».

Eduardo Cintra Torres




[1] Datado de 1189; da livraria do Mosteiro do Lorvão; depositado por Alexandre Herculano na Torre do Tombo em 1853; edição fac-símile, Valencia, ed. Patrimonio, 2003.
[2] Os palimpsestos introduzidos malevolamente nas citações em todo este texto foram criados a partir do Apocalipse do Apóstolo S. João, 21:10-13, 22-1-2, 22-17, 22-19, da Bíblia Sagrada, trad. por João Ferreira de Almeida.
[3] A folha 209v e a folha 201f foram retiradas da versão digitalizada do original, disponibilizada no site da Torre do Tombo.











1 comentário:

  1. Com todo o respeito, chamo a atenção para um pequeno lapso. O "Apocalipse" é atribuído na Vulgata (Bíblia} não a São Paulo, mas a São João Evangelista: "Apocalypsis Beati Joannis Apostoli".

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