Salazar aproveitou a crise de 1930 para
reestruturar profundamente o colonialismo português e, com o apoio de Carmona,
Presidente da República, apropriar-se da direcção política da Ditadura Militar.
Angola
foi decisiva. Em Janeiro de 1930, a polémica de Salazar com Cunha Leal, então
Governador do Banco de Angola, a propósito da política financeira, levara à
queda do Governo Ivens Ferraz e à emergência de Salazar como Ministro interino
das Colónias. Através da “Nota oficiosa” de 16 de Fevereiro apresentou o seu
programa que, em especial quanto a Angola, demandava «do poder central uma
intervenção eficaz». A crise era profunda[1].
Por um lado, a sociedade colonial, crescentemente urbana, mostrava o fracasso
dos esforços reformistas e desenvolvimentistas de Norton de Matos: descalabro
financeiro e económico; falhanço dos programas de imigração branca; continuação
do trabalho forçado; ausência de uma classe empreendedora e independente de
pequenos agricultores e trabalhadores urbanos; continuada influência de uma
importante classe não branca de ‘filhos do país’. Por outro, a reforma
financeira promovida por Salazar coincidiu com as medidas autoritárias,
repressivas e atrabiliárias da dupla governante formada pelo Alto Comissário
Filomeno da Câmara e seu fogoso secretário Morais Sarmento – medidas essas que
pareciam configurar um “golpe integralista”. Em resposta, alguns membros das
forças militares, funcionários do governo, comerciantes e uma poderosa
organização maçónica associaram-se numa segunda conspiração ou contra-golpe,
cuja primeira acção culminou na morte de Morais Sarmento.
Por
isso, após três atribulados meses de permanência no Ministério das Colónias,
Salazar reconheceu publicamente, na “Nota Oficiosa” de 29 de Abril, haver
causas profundas na raiz das deficiências de ordem económica, financeira e
política, as quais, por sua vez, se prendiam aos princípios mais fundamentais
da administração colonial. Daqui resultava, antes de mais, ter de prolongar o
tempo de interinidade na pasta das Colónias pois, além de definir atitudes e
contrariar tendências prejudiciais, impunha-se urgentemente marcar posições e
dar directivas de acção futura.
Constatava
que, mesmo depois da revisão de 1920, era «pouco» o disposto na Constituição de
1911 sobre as colónias. Era preciso substituí-lo – avançava a referida “Nota
Oficiosa” de 29 de Abril – por «um Acto Colonial, em que estivessem reunidas as
garantias fundamentais da nação portuguesa como potência colonial, as dos
indígenas, as da governação ultramarina e as das relações económicas e
financeiras entre a Metrópole e as Colónias». Ou seja, era preciso firmar um
direito constitucional colonial que, aproveitando o que já estava nas Bases
Orgânicas em vigor, representasse uma proclamação do mais alto nacionalismo e
uma barreira contra os factores de desorganização.
Salazar
avançava, portanto, para uma revisão constitucional mediante um Acto Adicional
à (suspensa) Constituição de 1911 – o qual, pelo objecto, se designaria Acto
Colonial. Saliente-se que a fórmula “Acto Adicional” provinha do
constitucionalismo francês e fora aplicada às três revisões da Carta
Constitucional de 1826; mas, na colonização francesa nunca houve qualquer Acto
Colonial, sim, na colonização inglesa, com alcance diverso. A “Nota Oficiosa”
esclarecia ainda que, embora fosse indispensável promulgá-lo imediatamente, a
seu tempo deveria este Acto Colonial ser incorporado na reforma geral da Constituição
(de 1911) e sujeito à apreciação do Congresso com poderes constituintes.
O texto do Acto Colonial resultou dum trabalho
de equipa e beneficiou da intervenção de dois qualificados colaboradores de
Salazar, também juristas: Quirino de Jesus (na época, o «mentor» de Salazar[2])
e Armindo Monteiro (então, subsecretário de Estado das Finanças). Além disso, o
projecto e o preâmbulo do Acto Colonial foram, durante dois meses, submetidos a
discussão pública nos jornais e no III Congresso Colonial Nacional e mereceram
um muito favorável e elogioso parecer prévio do Conselho Superior das Colónias.
Quanto
à sua preparação, existem, no Arquivo Oliveira Salazar, sete pastas arquivadas com a seguinte
sequência[3]:
a)- a primeira pasta contém
seis diferentes “edições” impressas, com alterações de redacção (em alguns
casos, significativas) ou meras correcções de provas, estando identificadas
três “edições”: a antepenúltima, a penúltima e a última; duas “edições” são
idênticas, uma pertencente ao Ministro, outra a Quirino de Jesus, havendo ainda
um exemplar (com o Acto Colonial) para o Ministério;
b)- uma segunda pasta com
documentos dactilografados e manuscritos (aparentemente por Quirino de Jesus)
relativos a alterações ao artigo 9.º [“concessões”] do Acto Colonial;
c)- uma terceira pasta com
provas de imprensa, sem qualquer correcção e duas indicações manuscritas: i)-
“Exemplar igual aos autógrafos”; ii)- “emendado no art. 9.º n.º 2º, o ‘médio’
para ‘normal’”;
d)- uma quarta pasta,
contendo a “Última edição, 23-6-1930”, pertencente ao Ministro das Colónias e
“Revista”, acrescendo a seguinte indicação a lápis: “Aprovada na especialidade
em Conselho de Ministros, com as emendas”;
e)- uma quinta Pasta,
indicando “Dr. Quirino de Jesus”: contém provas de imprensa e múltiplas
correcções e alterações ao texto do “Relatório”; ainda, duas versões do “Acto”
em letra de imprensa, com pequenas correcções; e, finalmente, o texto integral
do “Decreto” (ou seja, o Decreto Preambular mais o Acto Colonial), já aprovado
pelo Governo e preparado para ser oficialmente publicado (embora ainda sem
número, que lhe deveria ser atribuído pela Imprensa Nacional, como último
procedimento anterior à publicação em Diário
do Governo);
f)- na sexta Pasta
(intitulada “Acto Colonial [e] Decreto Preambular”) constam duas versões
dactilografadas, para serem enviadas à “imprensa” e a indicação “Muito urgente”
(uma com variadas emendas, presumivelmente do punho de Quirino de Jesus; a
outra versão é a da passagem a limpo), a que acresce uma versão impressa,
também com correcções, embora escassas;
g)- finalmente uma “Última
prova”, ainda com correcções (presumivelmente da autoria de Quirino de Jesus) e
(escrita a lápis) a indicação: “25 exemplares, feitas as emendas”.
Não
há qualquer indicação sobre reuniões ou trabalhos preparatórios.
São evidentes quatro conclusões:
i)- a organização destas
pastas no Arquivo Oliveira Salazar
não é cronológica e refere-se apenas à fase final da aprovação e publicação do
texto do “Acto Colonial”;
ii)- Salazar acompanhou e
dirigiu todo o processo legislativo, mas não teve influência decisiva na
técnica e terminologia do preâmbulo e do articulado do Acto Colonial;
iii)- na fase final, a
feitura do Acto Colonial foi objecto de meticulosa preparação;
iv)- na redacção final, houve
um intenso (e exclusivo) trabalho de Quirino de Jesus.
Apreciado em Conselho de Ministros, na
generalidade em Abril e na especialidade em Junho, o Acto Colonial foi
publicado como Anexo a um extenso Decreto Preambular, em 8 de Julho, emitido no
uso da “legislação revolucionária” aprovada em 1926 e assinado pelos Ministros
de todas as Repartições do Governo. Entrou imediatamente em vigor, substituindo
o título V da Constituição de 1911 e revogando toda a legislação em contrário.
Segundo o próprio Salazar, o Acto Colonial não só estaria conforme o espírito português («histórico, nacionalista e civilizador») como, além de certas reivindicações fundamentais, traduziria «a necessidade de ordem na administração e governo das colónias»[4]. Muitos anos depois resumiu as grandes linhas de orientação que dele sobreviveram à revisão constitucional de 1951: i)- maior concentração de poderes (quer no governo central quer nos governos ultramarinos); ii)- reivindicação nacionalista; iii)- coordenação e integração das várias partes na unidade pluriforme da Nação Portuguesa (ou seja, o “princípio da solidariedade”, que, como sublinhava Armindo Monteiro, era o eixo central das relações entre Portugal e Império Colonial). Porém, a quarta grande ideia do Acto Colonial, a mística imperial – que, quando surgiu, «escandalizou alguns» e trouxe «aos espíritos uma noção de unidade e um sentimento optimista de grandeza» – teve de ser “sacrificada” no texto revisto em 1951[5].
O Acto Colonial não
servirá apenas para constitucionalizar o Império Colonial Português e uma nova
política ultramarina. Além de mais um passo na tomada do poder por Salazar,
serviu também como factor africano na génese da Constituição de 1933[6] e
do Estado Novo, assente num «nacionalismo intransigente mas equilibrado»[7].
Numa síntese encomiástica – mas que não se
impôs – o professor da Escola Superior Colonial e então também deputado,
António de Almeida, em conferência promovida pela União Nacional e pronunciada
na Sociedade de Geografia de Lisboa em 28 de Maio de 1942, avançará mesmo que,
dentro do «mais salutar nacionalismo», Salazar, através do Acto Colonial,
«fundava juridicamente o quarto Império Colonial Português»[8].
Exagerou na numeração dos impérios, até porque Salazar só do Terreiro do Paço
(“a cabeça do Império”) via as colónias e nunca seria um “colonial” ou um
“africanista”, nem sequer um luso-tropicalista. Foi simplesmente um (nacional)
colonialista.
António
Duarte Silva
[1] Douglas L.
Wheeler, “Portugal em África: uma sociedade colonial em transformação
(1880-1930”, in Carlos Gaspar, Fátima Patriarca e Luís Salgado de Matos (org.),
Estado, Regimes e Revoluções – Estudos em
homenagem a Manuel de Lucena, Lisboa, ICS, 2012, p. 348.
[2] Rolão Preto,
entrevista, in João Medina, Salazar e os
Fascistas – Salazarismo e Nacional-Sindicalismo, a história dum conflito,
1932/1935, Lisboa, Livraria Bertrand, 1978, pp. 165/166.
[4] Oliveira
Salazar, “Ditadura Administrativa e Revolução Política”, in Discursos, Vol. I, 5.ª edição revista,
Coimbra Editora, 1961, pp. 56/57.
[5] Idem, Discursos e Notas Políticas, Vol. V,
Coimbra Editora, 1959, pp. 270/271 (trata-se do discurso pronunciado na
Assembleia Nacional, em 30 de Novembro de 1954, sobre “O caso de Goa”).
[7] Oliveira
Salazar, Como se levanta um Estado, 2.ª
ed., Lisboa, Editora moblis in
mobile, 1991, p. 75.
[8] António de
Almeida, Política colonial portuguesa no
passado e no presente, Lisboa, Agência Geral das Colónias, 1942, p. 23.
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