impulso!
100 discos de jazz para cativar os leigos e vencer os cépticos !
# 15 - COLEMAN
HAWKINS
As datas foram concebidas para celebrar
as grandes batalhas e os heróis que nelas triunfaram. Acatando esta norma, no
calendário do jazz o 11 de Outubro é feriado, rigorosamente observado desde
1939. Seja então rememorada a senda de Coleman Hawkins até resplandecer nesse
dia.
No princípio, é sabido, o trompete e o
clarinete, a potência e a maleabilidade, predominavam no jazz. O saxofone era
um instrumento útil para encorpar a linha rítmica, com um timbre obscuro e sem
afinação para se chegar à frente. Aos poucos, conseguiram alguma evidência o
saxofone alto, dado o seu parentesco sonoro com o clarinete, e o barítono, em
função da sua gravidade. Foi então, que por volta da segunda metade da década
de 20 (há quem seja taxativo em afirmar que foi em 1926), na orquestra de
Fletcher Henderson, quando nela se forjavam os preceitos do swing, nos
compassos habitualmente oferecidos aos solistas dos sopros um saxofonista
surpreendia com a fluência do legato, com a robustez do tom e com a largura
melódica que conseguia extrair do seu tenor. Tal foi a sensação que à puridade
se considerou resgatada a memória de Adolphe Sax, o criador de um instrumento
até aí secundarizado; outros entusiastas proclamaram – em sentido literal ou
figurado fica por discernir – que Coleman Hawkins havia inventado o saxofone
tenor. Ainda não se revelaram factos que os desmentissem.
No seu melhor, os músicos de jazz têm
comportamentos de alcateia. Se Hawkins foi pioneiro, logo, num período de tempo
extraordinariamente curto, irrompeu aquele misto de discípulos e adversários,
que no passo em que o seguiam também o desafiavam. Chu Berry e Roy Eldridge,
puseram-se de imediato à sua asa e no seio da formação de Fletcher, entre 1930
e 1931, o saxofonista alto Benny Carter, não se cansou de o interpelar. Em
contraponto ao estilo e padrão harmónico de Coleman Hawkins, dando muita razão
às dialécticas, Ben Webster e Lester Young constituíram com ele e para todo o
sempre a santíssima trindade do saxofone tenor, donde defluiu todo o jazz
posterior.
Em 1934 Hawkins é convidado para umas
actuações em Londres. Tão bem o receberam na Europa, onde o jazz era admirado
pelas classes cultas sem o estigma do racismo, que se deixou ficar no Velho
Continente. Durante esse tempo acompanhou um pouco o que se ia tocando do outro
lado do Atlântico, mas na América quase lhe perderam o rasto. Em 1939 os ares
europeus tornaram-se por demais insalubres e Coleman Hawkins concluiu que era
tempo de retornar a casa. Não foi, nem esperava ser, recebido como um césar;
houve deferência, mas também expectativa: Webster preenchera a sua cátedra na
orquestra de Henderson com distinção e louvor e o tipo de tenorismo de Lester
provava-se mais influente que o dele.
Body & Soul
1939
(2004)
BMG
- ND85717
Coleman Hawkins (saxophone tenor), Tommy
Lindsay (trompete), Joe Guy (trompete), Early Hardy (trombone), Jackie Fields
(saxophone alto), Eustis Moore (saxophone alto), Gene Rodgers (piano), William
Oscar Smith (conctrabaixo), Arthur Herbert (bateria), Thelma Carpenter (voz).
O produtor mostrou-se respeitoso mas não
entusiástico quando Coleman Hawkins, trazendo um repertório sem rasgo, entrou
em estúdio com o octeto de músicos de pequeno cartel, com o qual não
deslumbrara nos concertos no clube Kelly’s Stables na semana anterior; factores
que antecipavam uma sessão limitadamente promissora, sobretudo para quem
desejava recuperar o ceptro. A gravação decorreu de maneira perfunctória e
mesmo no final, para complementar a última bobine, Hawkins foi convencido a
interpretar a balada “Body and Soul” – bastava uma take despachada sem ensaio.
Após os dois compassos de abertura da
melodia original o saxofonista vai-se embora. Quer dizer: parte para uma
progressão harmónica e para um encadeado de variações melódicas, que se sucedem
com inspiração e lógica implacáveis, como se revelassem um oculto princípio de
necessidade. Isto era mais do que um improviso, esse arco bem medido que os
solistas desenvolviam dentro das orquestras, isto era uma rapsódia de volutas,
a elevarem-se numa espiral que, apesar de terem uma sequência com início, meio
e fim, ninguém adivinhava onde iria aterrar.
Retrospectivamente
ouvir-se-á nesta sublime especulação de “Body and Soul”, talvez o standard mais
interpretado da história do jazz, a génese do que viria a ser o bebop, espigado
um lustro mais tarde. O solo de Hawkins foi também escalpelizado e explorado
como nenhum outro, por aprendizes e veteranos, porque nele se escuta um molde,
puro, perfeito, irrepetível.
E
foi assim que em menos de 4 minutos Coleman Hawkins revolucionou o jazz. No dia
11 de Outubro de 1939, uma semana depois de os tanques nazis e soviéticos terem
extinguido a Polónia.
José Navarro de Andrade
Mais um excelente texto.
ResponderEliminarMuito se aprende por aqui.
Vou hoje colocar um disco que reúne dele o melhor.